janeiro de 2023

LEGADO DA SAMBISTA MADRINHA EUNICE E ESCOLA LAVAPÉS REVELAM POTÊNCIA DA PRESENÇA NEGRA NA EDIFICAÇÃO DA CIDADE DE SP

Beatriz de Oliveira

 

 

 

 

 

 

 

fotos beatriz de oliveira
capa
escultura em homenagem à Madrinha Eunice,
de autoria da artista Lídia Lisboa e instalada no bairro da Liberdade, em SP

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Quem anda pelas ruas do bairro da Liberdade, no centro de São Paulo, e se depara com os diversos símbolos da cultura japonesa, pode não imaginar que o território carrega em sua origem uma forte história da população negra. Aliado ao processo de gentrificação da vários pontos da capital paulista, o apagamento da história do povo negro faz com que desconheçamos episódios marcantes da cidade. A Rua da Liberdade, atual Avenida da Liberdade, por exemplo, já abrigou a sede da Frente Negra Brasileira, considerada a mais importante entidade do movimento negro brasileiro da primeira metade do século XX. Mas a verdade é que o bairro também foi durante décadas local de morada da sambista Madrinha Eunice (1909-1995), fundadora da primeira escola de samba ainda em atividade de São Paulo: a Lavapés. Ruas do território, foram diversas vezes palcos para ensaios da escola.

 

Nascida na cidade de Piracicaba, interior de São Paulo, Madrinha Eunice viveu até os 87 anos de idade. Ainda criança, se mudou com a família para a capital paulista, onde estabeleceu morada no bairro da Liberdade. Nascida Deolinda Madre, a sambista ganhou o apelido de Madrinha Eunice por batizar dezenas de crianças.

 

Com o costume de participar de festas religiosas e carnavalescas, Madrinha Eunice conheceu o carnaval da Praça Onze, no Rio de Janeiro. Daí veio a ideia de criar algo parecido em São Paulo. Então, em 1937, fundou a Sociedade Recreativa Beneficente Esportiva da Escola de Samba Lavapés. Com as cores vermelho e branco, a escola segue ativa, e em 2022 completou 85 anos de existência.

 

 

Madrinha Eunice, a “dona da rua”

 

 

 

Com o passar das décadas, muitas coisas mudaram, como o local de ensaio da escola, seu desempenho nas competições de carnaval e até seu nome, que em 2019 recebeu o acréscimo de mais duas palavras “Pirata Negro”. A história da escola evidencia também a trajetória de ocupação da população negra na cidade de São Paulo.

 

Segundo o doutor em História, professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) e autor do livro Sambas, Quintais e Arranha-Céus: as micro-áfricas em São Paulo, Amailton Azevedo, o samba e as escolas de samba são criações negras inseridas em um projeto de sociedade onde a afetividade tem lugar central. “O negro e negra brasileiros são fundadores de outro Brasil: antirracista, anti colonial e anti-apartheid”, afirma o professor, e continua “esses modelos ‘civilizatórios’ redefiniram o espaço urbano e a própria ideia de cidade”. A partir disso, é possível pensar em uma São Paulo negra, na contramão da cidade branca e racista.

 

A São Paulo negra se fez e se faz nas ruas. Eram nas ruas do bairro da Liberdade que os integrantes da escola Lavapés ensaiavam seus desfiles. “Desde o período colonial a rua sempre foi o espaço público dominado pelo negro”, conta Azevedo.

 

No entanto, como sabemos, na história deste país a presença de corpos negros é rodeada da violência imposta por brancos, e com a ocupação nas ruas não foi diferente. “Evidente que essa cultura negra na rua sempre foi alvo de perseguição por parte da polícia, da igreja e do poder político. No entanto, a resistência negra também estabeleceu um contra poder que impediu o embranquecimento estético da cultura brasileira”, afirma o professor. “O negro e a negra sãos os donos da rua brasileira”, resume.

 

 

 

Rosemeire Marcondes, neta de Madrinha Eunice: “Meu avô mandou ela escolher entre ele e a escola. Ela preferiu a escola”.

 

 

 

Assumindo seu papel de ‘dona da rua’, Madrinha Eunice promovia os ensaios de sua escola no entroncamento de ruas conhecido como ‘as cinco esquinas’: rua da Glória, Tamandaré, Bueno de Andrade, Lavapés e Glicério. Nos anos 1960, a sambista ganhou um espaço para a sede da escola, na Rua Barão de Iguape. Lá permaneceu durante quatro décadas. As últimas duas, foram comandadas por Rosemeire Marcondes, neta de Madrinha Eunice, que assumiu a presidência após a morte da avó.

“Ela era uma mulher muito guerreira, batalhadora, totalmente independente. Ela tinha firmeza na palavra. Uma mulher negra em meio as dificuldades daquela época, com quatro barracas de limão espalhadas pela cidade para sustentar a família”, lembra Rose. O amor de Madrinha Eunice pelo samba e pela escola Lavapés estão evidentes na memória da neta. “Meu avô mandou ela escolher entre ele e a escola. Ela preferiu a escola”, afirma.

 

O professor Amailton Azevedo explica que Madrinha Eunice foi uma liderança cultural e assume o que a historiografia define como “protagonismo da mulher negra no pós-abolição”. “As mulheres negras se destacaram na religião de matriz africana e no catolicismo, no samba como lideranças culturais e nas artes da dança do corpo. Madrinha Eunice personifica essa imagem majestosa, matriarcal e ancestral na cultura negra do Brasil”, diz.

 

“O negro e negra brasileiros são fundadores de outro Brasil: antirracista, anti colonial e anti-apartheid (…) esses modelos ‘civilizatórios’ redefiniram o espaço urbano e a própria ideia de cidade”, Amaílton Azevedo

Com o falecimento de Madrinha Eunice, em 1995, Rose colocou seu primeiro carnaval na rua no ano seguinte. “Nós falamos sobre crianças, o desfile foi bem diferente, colocamos chapéus, ombreiras, coisas que ela [Madrinha Eunice] não colocava”.

 

Nos anos 2000, a escola Lavapés perde sua sede, o local é reivindicado pela Dataprev, a Empresa de Tecnologia e Informações da Previdência Social. Ficam então 15 anos sem um espaço próprio para os ensaios. “Foi um período ruim, para onde eu mudava, a escola tinha que mudar comigo. Morei em vários lugares, até em apartamento. Fazer uma escola de samba dentro de um apartamento é uma loucura, eu fui convidada a me mudar”, diz aos risos.

 

As mudanças de Rose foram todas dentro do bairro da Liberdade, mas para muitos integrantes da escola a situação foi diferente: se mudaram para bairros afastados do centro da cidade à medida que Liberdade se tornava ponto de atenção de lojas e empreendimentos.

 

O ano de 2019 inaugura um novo capítulo da história da Lavapés. Após duas décadas no comando da escola, Rose colocou seu último carnaval na rua. “A gente desfilou, foi uma chuva muito grande, atrapalhou o carnaval de muita gente. Naquele ano, todas as escolas de tradição, Vai-Vai, Nenê, Camisa, Peruche, caíram de grupo”, lamenta. Seu lamento foi parar também no Facebook, em um post que a sambista sugere encerrar as atividades da Lavapés.

 

Ela explica que a sugestão veio devido ao seu estado de saúde, estava com problemas de mobilidade e já não se sentia bem para liderar a escola de samba. Além disso, até aquele momento, não havia encontrado ninguém que pudesse dar continuidade ao legado iniciado por Madrinha Eunice.

 

Até que, no fim daquele ano, “recebi uns quatro telefonemas de uma moça que chamava Adriana”. A moça pedia para marcar um encontro com o intuito de ajudar a Lavapés. Rose estava sem esperança, já havia recebido vários outros telefonemas parecidos e que não resultaram de fato em ajuda para a escola. Após insistência do marido, Rose marcou uma data para receber a mulher em sua casa.

 

No dia e horário marcado, Miguel, filho de Rose, abre a porta de casa e vê um carro estacionado em frente.

 

  • Mãe, é o padre!
  • Padre? Que padre?
  • O padre da novela!

 

Era o ator Ailton Graça, que à época interpretava um padre na novela O sétimo guardião. Com todos da casa surpresos, Ailton “entra e cumprimenta meus santos”. Entregou um buquê de flores a Rose e começaram a conversar.

 

  • Foi Exu que me trouxe
  • Não, foi o meu Exu que te trouxe!

 

Dias antes, Rose havia “chorado nos pés de Exu” pedindo que ele lhe mostrasse um caminho para que a Lavapés continuasse ativa. Após muito choro e emoção, ficou definido que Ailton Graça seria o novo presidente da escola, que a partir dali se chamaria Lavapés Pirata Negro. Rose passou a ser presidente de honra. As únicas condições da sambista para o ator foram: “não abandone os patronos da escola, Seu Veludo e Dona Padilha, mantenha a memória da minha avó viva e eu passo a escola para você”.

 

 

 

Alegoria na quadra da Sociedade Recreativa Beneficente e Esportiva do Lavapés Pirata Negro, no Jabaquara

 

 

 

No ano seguinte, já sob a nova gestão, a Lavapés conquista o título de campeã do Grupo de Acesso de Bairros 2 de São Paulo, com o enredo O mundo a partir da África e o tambor que faz a gira girar. Com a vitória, a escola foi para o Grupo de Acesso de Bairros 1. Em 2022, o desfile levou o enredo Mamãe Oxum – A Deusa do amor, o ventre da humanidade, traz as boas novas na primavera.

 

Ailton Graça deu para a escola uma nova sede para os ensaios. Distante do local de origem, na Liberdade, o novo espaço é no bairro Jabaquara, zona sul da cidade de São Paulo. “Mudar a escola do Lavapés para o Jabaquara resulta dos processos de pressão sobre as famílias negras para abandonar a região central” comenta o professor Amailton Azevedo.

 

Apesar da mudança, um item permanece inalterado: o legado da presença negra na cidade. “Os estudos revelam, que tanto o Lavapes, com sua escola e presença negra, como o Jabaquara, com o quilombo fundado pelo negros, constituem aquilo que chamei de cidade negra. O espaço pode ser branco, mas os estilos culturais são negros”, afirma o historiador.

 

“A mudança da escola do Lavapés para o  bairro do Jabaquara é resultado dos processos de pressão sobre as famílias negras para abandonar a região central da cidade”

 

Além de estar vivo através das atividades da escola, o legado de Madrinha Eunice foi marcado em forma de monumento. Em abril de 2022, foi inaugurada a estátua da matriarca do samba em São Paulo, no bairro da Liberdade, mais especificamente na Praça da Liberdade, logo em frente à Estação Japão-Liberdade do metrô.

 

Com saia rodada, turbante, colares e pulseiras, a escultura de Madrinha Eunice tem 1,70 m de altura e é de autoria da artista Lidia Lisboa. O monumento integra uma iniciativa da Prefeitura de São Paulo que buscou homenagear cinco personalidades negras em variados pontos da cidade. Ganharam monumento também: a escritora Carolina Maria de Jesus, o músico Geraldo Filme, o atleta olímpico Adhemar Ferreira da Silva e o cantor Itamar Assumpção.

 

A ação da prefeitura ocorreu após uma onda de protestos antirracistas pelo mundo iniciados nos Estados Unidos com o assassinato de George Floyd pelo policial Derek Chauvin, em maio de 2020. Nos protestos ganhou destaque o ato de derrubar estátuas de escravocratas. A discussão reverberou no Brasil e muitos passaram a questionar as homenagens feitas em forma de estátua no país: em sua maioria de homens brancos. Em São Paulo, por exemplo, sobram homenagens aos bandeirantes, homens que no período colonial escravizaram indígenas e dizimaram negros escravizados.

 

 

 

Escultura em homenagem à Madrinha Eunice, feita pela artista Lídia Lisboa e instalada no bairro da Liberdade

 

 

 

Rose foi procurada pela prefeitura quando a estátua estava sendo feita. Foi consultada sobre o lugar que a homenagem seria colocada. A ideia inicial era a Praça Nina Rodrigues, também na Liberdade, porém um local menos movimentado que a Praça da Liberdade. No ímpeto de lutar contra o apagamento da história de sua avó, Rose reivindicou que queria a estátua na Praça da Liberdade.

 

“Quando você sai do metrô, dá de frente com ela [estátua]. Ela está no movimento, está com todo mundo ali. Isso é emocionante, é gratificante”, diz Rose sorrindo.

 

Para Amailton Azevedo, homenagens a nomes como o de Madrinha Eunice são fundamentais para construir novas referências sobre a História do Brasil. “Madrinha Eunice deve ser tema de estudo para que não só possamos redefinir conceitos como patrimônio cultural e material com seus monumentos públicos, como também a própria memória da sociedade brasileira”, afirma.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Beatriz de Oliveira

Beatriz de Oliveira é formada em Jornalismo pela PUC-SP. Já passou pelas redações da TV Cultura e Jornal DCI, hoje atua como repórter no Nós, Mulheres da Periferia. Tem como foco pautas de memória, sociedade e cultura.

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.