julho de 2014

ARTE COMO INSTRUMENTO DE MOBILIZAÇÃO: SOBRE A FORÇA DO ATO CULTURAL A PAIXÃO DE CLÁUDIA

Renata Felinto

 

 

 

pintura Caio Vitor
fotos Ana Paula Leoncio / Ana Zumas
Lúbia Figueiredo / Patrícia C. Ribeiro / Nego
Júnior

 

 

 

 

 

Causou-me um enorme sentimento de fragilidade e de impotência diante do mundo a notícia do assassinato da mulher Claudia Silva Ferreira, pela Polícia Militar, aos 38 anos de idade, na cidade maravilhosa, em 16 de março deste ano enquanto à mesma comprava café e pão para alimentar sua família. Mais uma vez acidental, porém, neste caso, causado por uma seqüência de negligências e omissões do poder público em relação àquela que ele deveria servir e salvaguardar o bem estar e a vida.

 

Acidentes que têm locais certos para ocorrerem: os morros e as periferias. Acidentes que possuem vítimas preferenciais de balas perdidas: negras e negros. Acidentes que são parte do plano para preparação dos grandes centros urbanos brasileiros  para a festa da COPA, a fim de se garantir o bem estar e a preservação das vidas dos milhares de turistas que aportarão por aqui para prestigiar os jogos.

 

Turistas ávidos por jogos, por bebidas, por iguarias, por música, por gente, por cultura brasileira. Essa cultura brasileira festiva e carnavalesca vendida pelas agências de turismo. Onde, dentro dos pacotes turísticos, oferecemos nosso melhor: a feijoada, o samba, o homem negro tocador de batuques, a mulher negra travestida de “mulata”. Cultura, em sua origem, tão negra quanto a “mulher arrastada”.

 

Causou-me uma inconfundível sensação de não pertencimento à essa sociedade brasileira, e confirmou-me o pertencimento somente à população, à população sem face das estatísticas. Nem todas as mulheres e homens negros pouco assistidos pelo Estado em suas necessidades básicas, sucumbem à tentação fácil de vestirem o traje social nos reservado. No caso das mulheres os trajes de mulatas ou funcionárias do lar, e para os homens, de malandros ou funcionários da força, como seguranças.

 

 

Não era mais uma morte de uma mulher, uma mulher negra. Sem conservadorismo, entretanto, contrariando todas as estatísticas e, especialmente, vivências do povo negro, havia ali um rompimento com um círculo histórico-familiar que acomete o segmento negro da população. Ali existia uma família, um núcleo familiar nos padrões tradicionais com mãe, pai, filhos e agregados. Contrariando a realidade de mulheres negras mães sozinhas; de crianças negras abandonadas; de pais negros alcoólatras, presidiários ou desempregados,. Ali havia uma rara família negra estruturada, ainda que, com poucos recursos financeiros, e que à despeito de todos os dispositivos do sistema para  eliminar negros e negras, seja psicologicamente, seja carnalmente, eles conseguiram se manter unidos.

 

Causou-me imensa dor assistir calada, com o peito apertado a essa tragédia. Quantas vezes mais assistiremos nossos irmãos e irmãos serem eliminados no nosso país? Fazia-se e se faz urgente que a sociedade brasileira nos veja. Pensada por e para brancos e que não incluiu em seus planos de nação a incorporação de negros e negras, somos apenas estatísticas ou as pessoas que compõem a base da pirâmide social que possibilita, com sua força de trabalho, que a “sociedade” exerça a sua cidadania cotidiana.

 

Por meio das redes sociais, o sentimento de fragilidade e impotência; a sensação de não pertencimento e essa dor no peito foi compartilhada e ecoou em outros seres humanos que sentiam-se de forma similar.

 

Majoritariamente mulheres, negras e brancas, e alguns homens, negros e brancos, somaram-se em poucas semanas para organizar uma manifestação pública um ato cultural que expressasse a nossa indignação, dor e amor, tendo a arte como viés estético, conceitual e reivindicador. Dedicamos algumas poucas horas das nossas vidas a pensarmos em como realizar um ato cultural sem verba ou apoio financeiro das entidades tradicionais do movimento humano. Até mesmo elas estão anestesiadas ou paralisadas?

 

 

Em poucos dias o coletivo constituiu-se. Encontros em residências, estúdios, ONGs. Contribuições presenciais, financeiras, afetivas, efetivas, inesperadas, desesperadas. A autorização para a realização do ato que saiu na tarde de 17 de abril. O ato marcado para 18 de abril. Será que estamos empreendendo energia em algo que faz sentido? Será que, apesar do feriado prolongado, as pessoas estarão conosco no ato por Cláudia, por nós, por nossos filhos? Será que Alexandre, marido de Cláudia aceitará vir e chegará em tempo? Será que as pessoas entenderão a subversão proposta pelo título do ato? A Paixão de Cláudia… E constituiu-se o ato.

 

As pessoas vieram, chegando aos poucos. Mulheres, homens. Crianças, adolescentes, adultos, idosos. Negros e negras. Brancos e brancas. De preto, cor que em algumas culturas tradicionais africanas se refere ao lar, à casa. De branco, cor que nas mesmas culturas diz respeito à ancestralidade, ao luto e, entre os iorubas especialmente, é a cor do orixá criador  da criatividade, Oxalá. Sexta-feira Santa, dia de Oxalá. Oxalá possamos viver e sermos respeitados na nossa natureza.

 

Os batuqueiros convidados não estavam lá. Na ausência dos batuqueiros dos coletivos musicais de percussão e cultura popular que fazem uso do conhecimento ancestral africano, mas que não foram apoiar os descendentes de africanos em suas reivindicações por cidadania e humanidade, foram as mulheres que assumiram a sonoridade da caminhada silenciosa.

 

Estimamos que 800 pessoas tenham participado do ato cultural. De nossa saída da Igreja de Nossa Senhora da Consolação, até a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, andamos lentamente com nossos amigos, mães, pais, filhos, companheiros, conhecidos, desconhecidos, todos demasiadamente humanos.  Lágrimas salgaram o caminho. Sal de limpeza. Sentimento de solidariedade, de fraternidade e sororidade, de amor, sim de amor.

 

Certamente não éramos 800. Considerando a espiritualidade que permeia as culturas tradicionais africanas, estavam presentes outras pessoas durante esse trajeto. Acredito sim, antepassados nossos que andaram por essas ruas e que não tiveram uma despedida respeitosa, estavam conosco. Sentiram conosco.

 

A performance, a poesia, as artes visuais, a música, a dança, as artes cênicas, as expressões tradicionais transmitiram a mensagem que precisávamos. Alguns entenderam como uma festa, de forma depreciativa. Alguns que se dizem os guardiões dos saberes culturais dos povos tradicionais africanos e que se esqueceram que, em África, nascimento, vida e morte, são cantados, dançados, tocados, e que esse conjunto de ações garantem conexões entre o mundo visível e o mundo invisível; entre nós e os que nos cuidam e nos aguardam.

 

Éramos e somos cidadãs e cidadãos usando um instrumento de transformação muito eficaz, a arte; desejo de celebrar nossos antepassados que sim, construíram esse Brasil com mãos, pés, sangue e suor.

 

Há muito mais a dizer, ver e fazer, aqui fica um começo. Não, ninguém recebeu nada além de uma consciência tranquila, sentimento de cidadania em restauração, sentimento de humanidade pulsando.

 

Em 18 de abril de 2014, armados de rosas vermelhas, rodeamos a Mãe Preta de Júlio Guerra de gratidão pela existência dessas mulheres.

 

Sentimos que agora sim essa mulher vai descansar em paz, vai de encontro aos nossos.

 

Foi uma celebração da vida, da valiosa vida que cada um de nós têm e que o Estado identifica apenas como números.

 

Reaprendemos que juntos somos fortes.

 

         









Renata Felinto

RENATA FELINTO é professora adjunta de Teoria da Arte da URCA/CE. Doutora e mestra em Artes Visuais pelo IA/UNESP, bacharel em Artes Plásticas pela mesma instituição. Licenciada em Artes Plásticas pelo Centro Belas Artes. Especialista em Curadoria e Educação em Museus de Arte pelo MAC/USP.

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.