novembro de 2014

NOSSOS ANTEPASSADOS EM ARTE NO MASP

Renata Felinto

 

 

 

 

 

 

Fachada do MASP, prédio finalizado em 1968,
e projeto arquitetônico de Lina Bo Bardi.
Fotografia de Hans Gunter Flieg.

 

 

 

 

 

 

 

O Museu de Arte de São Paulo, o MASP, um dos mais importantes da América Latina, recebeu neste agosto último uma doação de obras de arte de origem iorubana, ou do povo ioruba, situados, principalmente, nos atuais territórios do Benim e da Nigéria, na África Ocidental. Fato inédito e de grande importância para se pensar sobre a instituição e suas exibições. A Revista Menelick 2º Ato, que há tempos traz informações sobre cultura e arte – africana e afrodescendente – dedicou uma tarde à visitação dessa pequena mostra. Observamos e refletimos acerca da expografia, que é a maneira como as obras estão dispostas no espaço da exposição; sobre que tipos de obras exibidas dentro da infinidade possível de objetos estéticos de origem africana; como os mesmos estão apresentados ao público visitante a partir do texto curatorial; enfim, tentamos trazer para nossos leitores e leitoras uma apreciação acerca da exposição Do Coração da África: Arte Iorubá, da Coleção Robilotta do MASP, concomitantemente à uma retomada histórica despretensiosa de como a arte chamada “negra” por muitos críticos de arte brasileiros ainda hoje, foi e vem sendo recebida e apresentada. É imprescindível lançarmos esse olhar mais amoroso e cuidadoso, afinal de contas, nossos antepassados não retratavam a si, aos seus costumes, deuses, anseios e desejos por meio de pinturas à óleo, mas sim, tendo como ferramenta de materialização a escultura em madeira, ferro e latão, e em alguns casos isolados, como no caso dos panos apliques do Benim, em tecido, quase que como num pachtwork. Dessa forma, essa imaginária escultórica nos representa enquanto iorubano-descendentes, reverenciando nossos antepassados.

 

Bem, para tratar com maior atenção desse acontecimento que traz a público pela primeira vez a arte dos nossos antepassados num museu que apresenta majoritariamente arte ocidental desde a sua fundação e são essas mesmas que estão em seu prestigiado acervo, temos que retornar um pouco no tempo para tratar da história da constituição dessa instituição.

 

O MASP foi idealizado e fundado em 1947, pelo então jornalista e empresário Assis Chateaubriand (1892 – 1968) e pelo jornalista e crítico de arte italiano Pietro Maria Bardi (1900 – 1999), ambos homens visionários e de extrema importância para a sedimentação de instituições culturais de arte em São Paulo. Primeiramente a instituição fixou-se em alguns andares do edifico onde Pietro Maria Bardi tocava seus muitos negócios, à saber, 34 jornais, 36 emissoras de rádio, 18 estações de televisão, editora e a revista O Cruzeiro.

 

O acervo do MASP, com destaque para suas valiosas obras de arte européia, com foco nas italianas e francesas, foi adquirido pessoalmente por Pietro Maria Bardi em viagens à Europa num período de reconstrução do continente e do restabelecimento da ordem: o pós Segunda Guerra Mundial (1939 – 1945). Tenhamos em mente que milhares de famílias judias que tinham posses e, mesmo famílias não judias, foram absolutamente desestruturadas durante a guerra e muitas se viram ou foram obrigadas a se desfazerem de seus patrimônios. Entre os bens que essas famílias perderam estavam as obras de arte. Esse fato é controverso, obviamente que uma instituição do calibre do MASP, nunca admitiria que parte considerável das raridades da arte européia de seu acervo foram adquiridas tendo como vantagem os malefícios causados pelo pós-guerra a muitas famílias. O fato é que parte dessas obras estavam disponíveis devido a esse contexto de destruição.

 

Os recursos para arrecadação de verba para aquisição deste acervo fora levantado junto ao empresariado pelo influente Chatô, como era conhecido o famoso mecenas Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Mello (1892 – 1968). São Paulo, escolhida para sediar a instituição que fora projetada pela esposa de Bardi, tornar-se-ia, dessa forma, além de capital financeira devido à produção e comércio cafeeiro, também capital cultural.  A nova sede projetada pela arquiteta Lina Bo Bardi (1914 – 1992), italiana naturalizada brasileira, como uma caixa suspensa de vidro sobre quatro pilares de concreto, revolucionou os conceitos de arquitetura até então, não somente pelo moderno desenho, mas também pela vista que dá para a Avenida 09 de julho, que foi preservada com a concepção do chamado “vão livre”, lugar que atualmente é ponto de encontro das mais diversas manifestações populares da cidade. Tornou-se emblemático, bem como gostaria a visionária e democrática Lina se a mesma estivesse viva. Entretanto, essa também foi uma das condições impostas à arquiteta pelo doador do terreno:

 

“Foram 12 anos entre projeto e execução. Lina trabalhou sob uma condição imposta pelo doador do terreno à prefeitura de São Paulo: a vista para o Centro da cidade e para a Serra da Cantareira teria de ser preservada, através do vale da avenida 9 de Julho”.

 

O Museu foi inaugurado em 1968, contando com a ilustre presença de personalidades como a Rainha Elizabeth II da Inglaterra, além das maiores autoridades brasileiras da época e uma grande participação popular em frente ao edifício.

 

Em seu acervo tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) desde 1969, que conta com  8.000 peças, estão obras de artistas como o renascentista Rafael Sanzio (1483 – 1520), o impressionista  Claude  Monet (1840 – 1926)), o cubista e um dos artistas mais vigorosos do século 20, Pablo Picasso ( 1881 – 1973), e de brasileiros como o acadêmico Almeida Júnior (1850 – 1899) e Cândido Portinari (1903 – 1962). Após esse panorama sobre o MASP você pode concluir com mais dados o porte da instituição.

 

Durante muito tempo a arte feita pelos povos tradicionais africanos, que entre os especialistas dos dias de hoje não é mais nomeada de “arte negra” e sim de arte tradicional africana, foi estudada e apresentada na historiografia ocidental, que é a que estudamos nas escolas e universidades, mesmos nas graduações de Artes Visuais, como a arte que influenciou os artistas europeus de fins do século 19 para início do século 20. Ela era introduzida como sendo referencial estético para o desenvolvimento da maior revolução pictórica ocorrida até então: o cubismo elaborado por Picasso juntamente com Georges Braque (1882 – 1963), em 1907. De certa forma, a incompreensão desses artistas acerca do que significam as estatuetas e máscaras aos quais estavam tendo acesso devido ao grande número desses objetos que chegavam ao continente europeu, tanto via saque quanto via escambos realizados junto aos povos africanos, despertou um imenso fascínio por essas formas originais cujos criadores se pautavam em outros cânones que não os clássicos e acadêmicos para desenvolverem as suas obras.

 

Era mais do que comum que intelectuais e artistas europeus, no início do século 20, tivessem as suas coleções particulares de arte tradicional africana, são os casos do já citado Picasso e do pintor Henri Matisse (1869 – 1954). Ao observarmos com mais cuidado a produção “picassiana” desse período, encontraremos mais do que semelhanças entre as linhas e cores de suas pinturas e as estruturas de estatuetas e máscaras, alguns são quase, digamos, releituras. Afinal de contas, para muitos dos artistas europeus era consenso que essas obras não tinham uma autoria, uma vez que haviam sido feitas por “selvagens” e “primitivos”, povos sem cultura.

 

Les Demoiselles DÁvignon (1907), óleo sobre tela de Pablo Picasso. A baixo, máscara da etnia Fang, do Gabão, século XIX, madeira policromada. Observando a tela que rompeu com os paradigmas de representação da figura humana, das relações entre figura e fundo, torna-se evidente a referência africana no processo criativo de Picasso. As duas figuras da direita tem os rostos constituídos por releituras de máscaras africanas. Repare nas distâncias entre olhos e boca.

 

 

 

 

 

 

Era nesse contexto que esses objetos chegavam à Europa e eram cooptados enquanto referencial criativo para muitos artistas. Essas “exóticas” peças de arte absolutamente desproporcionais eram por demais inovadoras. Cabeça, tronco e membros seguiam a mesma proporção, os artistas estavam livres dos cânones gregos. Devemos pensar no que vem a ser a proporção, ou seja, quando as partes de um objeto, de um corpo, se encaixam ou se adéquam de forma considerada harmoniosa. Para a arte ocidental, pautada na arte grega que, por sua vez, foi pautada na egípcia (vejam a África na origem de tudo, de certa forma), na representação do corpo humano, um corpo perfeito é constituído de sete vezes as medidas de uma cabeça. Ou seja, após se esculpir ou desenhar uma cabeça, o pescoço, tronco, quadris, pernas e pés, os demais membros, deveriam ocupar mais seis vezes a medida daquela cabeça. Essa é a idéia que nos é imposta, ainda crianças quando começamos a desenhar, de figura humana proporcional, do saber ou não desenhar, ilustrar ou esculpir. O saber desenhar estava condicionado aos paradigmas do que os gregos estabeleceram como belo, e esta beleza grega veiculava a proporcionalidade e a simetria.

 

Após a tomada do Reino do Benim pelos ingleses (1897), foram encontradas pelo pesquisador alemão Leo Frobenius (1873 – 1938 ), na cidade de Ifé, 14 cabeças em terracota, um tipo de argila queimada em baixa temperatura. As cabeças em estilo realista e de grande delicadeza e riqueza de detalhes foram, rapidamente, identificadas como “produto de uma colônia da Grécia antiga em plena floresta africana (…)”, pois, segundo o antropólogo Peter Junge, “as cabeças em barro mostram-se maravilhosamente acabadas. São de um realismo que pressupõe o retrato. Mas não é só isso o que as isola na arte subsaariana. Nesta há também uma vertente realista, que vem de bem longe e chega aos nossos dias (…) O que faz das esculturas de Ifé ímpar na África negra são os cânones a que obedece esse realismo”.

 

Até aquele momento, tudo o que havia sido encontrado sobre as produções dos  povos africanos eram objetos que não seguiam esses cânones, não se assemelhavam a nada disso. Muitos dos objetos encontrados por Frobenius fazem parte da coleção que leva seu nome no acervo do Museu Etnológico de Berlim.

 

Cabeça de Ifê, séculos XII a XV, terracota, altura média de 19 cm. Coleção Leo Frobenius, acervo do Museu Etnológico de Berlim. Os estriados na face podem ser interpretados como escarificações, marcas faciais feitas a partir de cortes que servem para identificar as pessoas na hierarquia de um grupo social. Os olhos amendoados atestam que essa pessoa é uma antepassada da região do Benim e Nigéria, pois, assemelha-se ao fenótipo local.

 

 

 

 

 

 

Inclusive, a maior parte de obras de arte tradicional africana encontra-se em museus externos ao continente. Segundo Peter Junge,  que realizou a curadoria da grande mostra desenhada a partir do acervo desse museu, Arte da África, exibida no Centro Cultural Banco do Brasil, em 2003/ 2004:

 

“(…) nas culturas tradicionais da África , as obras de arte não foram criadas com vistas a elas mesmas, mas somente seriam compreensíveis a partir de seu fundo religioso ou social. (…) de acordo com essa tese, objetos artísticos africanos são, em primeiro lugar, relato da história da cultura – inclusive da História da arte – de uma determinada civilização”.

 

Isso ocorre também em relação a outro tesouro da arte tradicional africana, as placas em relevo do Reino do Benim, feitas em latão e que estão entre as mais extraordinárias obras de arte tradicional da África. Produzidas a partir da técnica africana de fundição chamada de cera perdida, largamente utilizada no continente africano antes do contato com os europeus. As placas em relevos eram modeladas em cera; em seguida, estes moldes eram revestidos de argila para a fundição do metal. Após a fundição, os moldes eram quebrados. As placas trazem representações de seres isolados, animais, pessoas. A maioria das que apresentam figuras humanas representam o oba, os chefes e seus séquitos, em visão frontal e postura rígida. Assim como as Cabeças de Ifé, que pesquisadores identificaram como sendo retratos de reis, rainhas, príncipes e princesas.

 

É difícil mensurar em que medida as placas possuem caráter narrativo. Entretanto, em algumas cenas são narradas guerras vitoriosas com os povos vizinhos ao Reino do Benim: Igala e Igbo. A forma artística é bastante variada: há relevos planos, mas também alguns em que as figuras sobressaem quase que inteiramente em relação ao fundo. Assim como na conceituação da arte egípcia, as figuras maiores são as mais importantes na representação da cena, um oba ou chefe guerreiro aparece maior do que seus acompanhantes.

 

O latão era um material importado junto aos portugueses e que atingiu grande valorização. A fabricação das placas cessou no início do século 18.

Placa Comemorativa, séculos 16 ao 18, Latão, acervo do Museu Britânico. Aqui é bem interessante observar a proporção dos corpos das três figuras humanas da peça à esquerda, em destaque. Cabeças e pernas possuem as mesmas dimensões, enquanto que os troncos são mais alongados. Ao fundo, observamos duas figuras de europeus, os identificamos devido aos cabelos compridos e tipo de chapéu.

 

 

 

 

 

 

Aqui temos uma breve introdução acerca de obras de arte provenientes da mesma região das obras, ou muito próximas das que se encontram no MASP. Entretanto, enquanto os objetos de arte que estão no Museu Etnológico de Berlim e no Museu Britânico são raríssimos – não há mais nada similar e provavelmente nem será encontrado, os objetos exibidos no MASP, assemelham-se a outros que podem ser apreciados em museus como a Casa do Benim (BA), Museu de Arqueologia e Etnologia da USP (MAE/USP – SP) e Museu Afro Brasil (SP). Apesar de não fazerem parte desse seleto grupo escultórico raríssimo, contudo, ainda são importantes oportunidades que temos de nos aproximarmos da arte produzida em parte da África Ocidental. Servem-nos como possibilidade de conhecer estilos e simbologias que compõem o dicionário de leitura e apreciação dessa arte única.

 

As 49 esculturas expostas na exposição Do coração da África: arte ioruba, são parte da coleção doada pelo casal Cecil e Manoel Robilotta e representam parte da arte produzida nessa região onde encontra-se a Nigéria e nos é tão cara devido, especialmente, a marcante presença iorubana na cultura afro-brasileira. Não há uma datação correta acerca de quando essas obras foram produzidas, entretanto, sabe-se que são anteriores a década de 1960.

 

Segundo o curador da exposição, Teixeira Coelho, numa clara referência ao impacto que a arte tradicional africana teve sobre a produção de arte européia chamada de “vanguarda”, do inicio do século 20, “outra vez, o velho formava o novo”. Todavia, cada vez mais devemos destacar a importância, beleza e riqueza dessas obras de arte enquanto fontes de informação que nos desvendam as nossas culturas ancestrais, evitando, preferencialmente, atestar a sua validade por meio das influências que causaram no modo de pintar e representar dos artistas europeus. Fato sabido e incontestável. Mas, já é chegado o momento no qual elas podem ser apreciadas e lidas enquanto formas autônomas, especialmente porque descoladas de seus contextos originais, passam a servir ao modus operandis da arte ocidental: arte pela arte. Isto é, ainda que com toda a carga de informações que possuam, nos museus, lá estão pelas formas que apresentam. Possuem um valor artístico em si.

 

A expografia de Do coração da África: arte iorubá, diferente de todo restante do MASP, é mais escura e o foco de luz de cada vitrine se dirige diretamente para as esculturas, acentuando seus relevos, curvas, reentrâncias e, conseqüentemente, causando impacto visual à chegada ao pequeno espaço onde está a exposição.

 

Mostrando que a curadoria estava atenta às especificidades espirituais do povo Iorubá, quem abre a mostra é um conjunto de representações de Exu, o orixá mensageiro que realiza a comunicação entre os dois mundos, o aiê, o mundo onde estamos, matérico e visível, e o orun, mundo espiritual onde habitam os orixás, ancestrais e demais espíritos. As representações de Exu provenientes de África, geralmente, possuem a cabeça do orixá com um penteado que remete a um falo, uma vez que outra atribuição desse orixá é a fertilidade. Curiosamente, o Exu que abre a exposição tem um penteado que termina num rosto, interpretado pela curadoria como uma serpente. Também há a representação de um Exu feminino, segurando um bebê em sua capulana e com uma sandália em sola plataforma, tal qual o par de Ibejis que está no acervo do Museu Afro Brasil. Nesse conjunto de figuras de Exu, estão também dois raros e curiosos casais de Exus.

 

 

 

 

Há várias vitrines dedicadas a exibir os Ibejis que, talvez, mais do que qualquer outra representação demonstra um aspecto singular da cultura iorubá: o alto índice de nascimento de gêmeos e de trigêmeos. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), a Nigéria é o país no mundo no qual mais nascem gêmeos. Portanto, está explicada a razão pela qual os irmãos são considerados sagrados e são cultuados enquanto divindades. Após o contato com os portugueses, no século 15, os mesmos, percebendo a forte devoção dedicada aos Ibejis pelos iorubanos, introduziram as figuras dos santos médicos e irmãos, São Cosme e São Damião como forma de dissuadir e substituir o objeto de culto. As figuras dos santos que eram representadas por homens adultos, aos poucos foram diminuindo de tamanho, tornando-se crianças, numa clara simbiose entre as origens africana e portuguesa dos mesmos. Se no reino Iorubá as mães alimentavam suas estatuetas de Ibejis quando um de seus filhos tinha vindo a óbito, tal qual estivessem alimentando a criança falecida, no Brasil são oferecidos doces aos santos, alimentando as crianças interiores de cada um de nós, nossos erês.

 

Dentre a profusão de pares e trios de Ibejis que estão na exposição, os trios sendo mais escassos, há exemplares maravilhosos, cujos corpos estão revestidos com vestimentas confeccionadas de pequenas miçangas coloridas com motivos geométricos ou de cauris, os búzios. Apesar da aparência de adultos, os Ibejis sempre representam crianças e na coleção Robilotta, segundo a curadoria, possuem uma parte central devido à sua variedade e quantidade. Segundo o curador: “Os Ibejis condensam uma visão de mundo peculiar, extremamente significativa na sociedade iorubá, em cujo idioma significa gêmeos, a partir de ibi, nascer (ou nascido), e eji, dois, do que resulta o sentido de nascido em dois, nascido em duas partes”.

 

E, ainda sobre essa prática e tradição de se esculpir estatuetas para o casal de gêmeos, ele completa: “O nascimento dos gêmeos obrigava os pais, ainda, a solicitarem a confecção dos ibejis, esculturas vistas como personificação de pessoas reais e, indiretamente, de uma divindade doméstica, sendo por este motivo objetos de culto a serem cuidados e expostos em casa por décadas. As esculturas deveriam proteger as famílias dos males possíveis e evitar a morte do sobrevivente, em caso de falecimento de um dos membros, bem como a esterilidade futura da mãe. O nascimento de uma criança só, sem um par gêmeo, após a geração de um ‘duplo filho’, era tomado como indício de que o mundo e a vida retornaram à normalidade”.

 

Vasilha de adivinhação
Nigéria
Madeira
28,5 X 19 X 19,5 cm

 

 

 

 

 

 

Ainda na mostra são passíveis de apreciação as estatuetas usadas como machados cerimoniais e feitas a partir de interessantes representações femininas de Xangô e Ogum, orixás que são masculinos. O machado de Xangô encimado por uma cabeça de mulher, e um machado em ferro de Ogum, também sobre a cabeça feminina, ainda que esta não seja a insígnia pela qual esse orixá é mais comumente representado.

 

Também encontram-se na exposição vasilhas de adivinhação para se guardar os búzios ou a noz de cola, fruto da palmeira, empregados nos jogos divinatórios de consulta ao Ifá. Geralmente, os babalorixás e as ialorixás usam pratos confeccionados em madeira. Segundo a curadoria da exposição, essas vasilhas de adivinhação, chamadas de ajere Ifa, são “usadas por babalaôs mais afluentes”. É sabido que os processos de adivinhação são empregados para diversos fins, para se tomar importantes decisões de cunho social, afetivo, familiar, saúde etc. E que o jogo é guiado pelo orixá Orunmila que se comunica com os humanos por meio do ifá.

 

Dois simples exemplares das famosas máscaras da sociedade Gueledés são exibidos. Confeccionados em madeira e sem muita ornamentação. Importante pontuar que somente os homens dançam com qualquer tipo de máscara em África, mesmo nos casos no qual a cerimônia anual é voltada ao grupo de mulheres mais velhas, que já passaram pela menopausa. Segundo a curadoria, após esse etapa da vida “(…) as mulheres teriam acesso a conhecimentos secretos, de natureza sobrenatural. Isso lhes dava poder, axé, que poderia ser usado para o bem da comunidade e para a bruxaria. Por isso eram reverenciadas e temidas”.

 

A irritabilidade que toma conta do humor das mulheres em geral nesta fase está associada a essa crença de que as mesmas precisavam, ser apaziguadas, a fim de que a vida em comunidade transcorresse tranquilamente.

 

Por fim, a mostra apresenta um casal de Edan produzido na já mencionada técnica da cera perdida. Num primeiro momento eles se assemelham aos Ibejis por serem um duplo, entretanto, a partir da observação de suas formas e do material, que é latão ou bronze, notam-se as diferenças. As estatuetas duplas são conectadas por uma pequena corrente, e elas representam um homem e uma mulher cultuados pela sociedade secreta Ogboni, compreendendo aqui homem e mulher enquanto princípios da vida e Terra, também cultuada via essas peças como um espírito. As estatuetas possuem uma pátina esverdeada e ficavam na posse de um sacerdote.

 

Numa instituição tradicional e eurocêntrica como o MASP é uma feliz surpresa que a curadoria, o que concluímos a partir da observação da exposição e da leitura dos textos do catálogo, tenha lançado um olhar reverenciador e aprofundado acerca dessa pequena e pertinente coleção. Afora algumas informações ou resumos breves que estiveram em circulação em alguns meios de divulgação, podemos afirmar que a exposição, a partir de suas poucas peças, contempla parte significativa do universo iorubá. O catálogo é acessível, custa R$ 20,00 e a exposição, devido ao fato das peças comporem o acervo do MASP, não tem data para finalizar. Portanto, recomendamos que dedique algum tempo ao prestigio dessa mais que necessária iniciativa deste museu referencial no Brasil, que se curva à nossa ancestralidade materializada em Arte, essa com “A” maiúsculo.

 

Boa visita!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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NOTAS DE RODAPÉ


A Conferência de Berlim foi realizada entre 19 de novembro de 1884 e 26 de Fevereiro de 1885, e teve como objetivo organizar, na forma de regras, a ocupação de África pelas potências coloniais e resultou numa divisão que não respeitou nem a história, nem as relações étnicas e mesmo familiares dos povos desse continente em causa. O congresso foi proposto por Portugal e organizado pelo Chanceler Otto von Bismarck, da Alemanha, assim como participaram ainda a Grã-Bretanha, França, Espanha, Itália, Bélgica, Holanda, Dinamarca, Estados Unidos, Suécia, Áustria-Hungria e o Império Otomano (atual Turquia).

 

 

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PARA ASSISTIR

Viagem à Lua
Georges Meliés
França, 1902

 

Vênus Negra
Abdellatif Kechiche
França, 2010

 

As estátuas também morrem
Alain Resnais e Chris Marker
França, 1953

 

 

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PARA LER

Do Coração da África (catálogo de exposição)
São Paulo: MASP
Communique Editorial, 2014.

 

African Art
Stefan EISENHOFER.
Colônia
Taschen, 2010.

 

Benin está vivo ainda lá (catálogo de exposição).
André Jolie
São Paulo
Museu Afro Brasil, 2008.

 

Arte da África (catálogo de exposição).
Peter Junge
São Paulo
Centro Cultural Banco do Brasil, 2004.

 

 

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SERVIÇO

MASP – Museu de Arte de São Paulo
Avenida Paulista, 1578 – São Paulo – SP
Telefone (55 – 11) 3251-5644 / Fax (55 – 11) 3284-0574
De terça a domingo: das 10h às 18h (bilheteria aberta até 17h30)
Quinta-feira: das 10h às 20h (bilheteria até 19h30).
Entrada R$ 15,00 inteira e R$ 7,50 meia

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Renata Felinto

RENATA FELINTO é professora adjunta de Teoria da Arte da URCA/CE. Doutora e mestra em Artes Visuais pelo IA/UNESP, bacharel em Artes Plásticas pela mesma instituição. Licenciada em Artes Plásticas pelo Centro Belas Artes. Especialista em Curadoria e Educação em Museus de Arte pelo MAC/USP.

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.