dezembro de 2014

UMA ARQUEOLOGIA COM EL HADJI SY: HISTÓRIAS QUE NÃO AFUNDAM NO MAR

Luciane Ramos Silva

 

 

 

 

fotos Ana Paula Leôncio

 

 

 

 

 

 

Um painel suspenso com aplicações em cordas que trazem desenhos de corpos enfileirados em desconforto.  Um  corredor vazio, semelhante a uma passarela…  do outro lado um baobá cujos galhos gigantescos pareciam os tentáculos de um polvo. Penso nas raízes profundas dessa árvore que alcança séculos… Penso no mar – sinônimo de movimento…

 

Aqui, minha fotografia imaginária da Arqueologia Marítima, obra do artista visual e curador El Hadji Sy (1954). Em sua estadia na paulicéia, esse senhor elegante e de olhar sereno,  deixou algumas pegadas: Um pensamento concretizado em criaartística, boas conversas que só os mestres sabem delinear no tempo da ampulheta e uma importante lembrança: a necessidade de termos memória de futuro – expressão que à princípio parece aludir a uma inversão de tempos, mas que aponta para a potência de recriarmos em corpo vivo as lembranças e  nos lançarmos adiante.

 

As composições de El Sy são comumente entidades colaborativas. Buscando expandir as relações entre as diferentes linguagens, ele propõe conexões que fortaleçam a existência dos seus trabalhos. Compartilhei com o mestre uma ativação cênica, conduzindo um grupo de 21 bailarin@s que capturaram as paisagens da obra, os rastros internos individuais e transformaram tudo isso em dança. “Buscamos vestígios de outros de nós”, palavras de uma companheira do processo. Ao encontrar esses outros nos reconhecemos neles e nos habitamos com força.

 

Aquele corredor vazio da fotografia imaginária existe para ser ocupado, para o público interpretar suas estranhezas ou feições óbvias a partir do seu próprio corpo, da sua história. A participação pública no cerne da obra, longe de constituir mero atrativo, é parte do discurso e preocupação fundamental do artista senegalês,  que lá pros idos dos anos 70, em Dakar, capital do Senegal, integrou um importante coletivo artístico: o Laboratoire Agit’Art.

 

 

 

ARTE COMO AÇÃO

 

 

 

No final dos anos 60 diversos países do continente africano viram suas estruturas político-sociais fragilizadas e seus projetos de reconstrução calcados em ideais pan africanistas  em decadência. Após o período de fervor político e cultural impulsionado pelos movimentos de descolonização, essas nações assistiram à ascensão de regimes ditatoriais e outras chagas.  No campo cultural, os nacionalismos calcados em ideias artificiais sobre tradição já não cabiam mais no pote.

 

Nesse cenário de quebra de estruturas, posteriormente agravadas pela imposição da cartilha do BM (Banco Mundial) e do FMI (Fundo Monetário Internacional),  o Senegal, regido pela batuta de Leopold Sedar Senghor (1906-2011), célebre por suas políticas de incentivo à cultura e pela difusão da Négritude, poderosa e controversa proposta que intentava criar conexões e ressaltar os traços comuns de povos africanos e da diáspora negra,  vê brotar um coletivo interdisciplinar composto por poetas, cineastas, pintores, escultores músicos que propunham um diálogo social crítico a partir de suas práticas artísticas baseadas no improviso, na experimentação e na percepção do público como participante fundamental de seus processos.

 

O grupo, que além de El Sy, agregava figuras como o pintor, escritor e filósofo Issa Samb (1945), o cineasta Djibril Diop Mambety (1945-1998), o dramaturgo Youssoufa Dione, o artista visual Amadou Sow (1951) o fotógrafo Bouna Seye (1956), entre outros artistas, caminhava no contra fluxo das estruturas oficiais de fomento, formação e difusão da arte, valorizando a fugacidade mais que a permanência e os processos, mais que os produtos, criticando o modus operandi formalista da École des Beaux-Arts, criada por Senghor dentro do projeto de transformar Dakar numa capital das artes.

 

A concepção porosa do Agit´Art  não impunha exigências ou regras para filiação. Qualquer pessoa poderia se tornar membro. O grupo propunha espaços abertos para realização e exposição das obras, trazendo a vida cotidiana para o centro dos acontecimentos. Esses espaços podiam ser quintais  que ficavam disponíveis para circulação e intervenção do publico. Elementos como canos, plásticos, barras de metal e garrafas eram matéria prima vigorosa para as criações do grupo. Seria uma alusão direta à reciclagem? Ou uma prática cotidiana relacionada à arte tradicional africana que, muitas vezes, concebe a obra a partir da junção de diversos materiais agregados, referindo-se à ideia de totalidade e a conexão das forças da natureza com o cosmos?

 

Ao proporem o distanciamento em relação às artes decorativas e apolíticas os artistas do coletivo motivavam outros criadores a imprimirem perspectivas mais críticas às suas práticas.

 

 

 

OUTRAS PONTES

 

 

Na obra Foot painting (1977), El Sy apresenta um discurso incisivo ao compor a pintura usando os próprios pés, em ironia à ideia de mão exímia e à própria noção de assinatura, criticando também as imagens turísticas difundidas pelos órgãos de propaganda que serviam o governo.  Essa composição circulou por galerias  de Nova York, Boston, Toronto e Washington DC, entre outras localidades, quando a produção do artista começava a ganhar espaços internacionais.

 

Ao cruzar fronteiras e ocupar instituições dos centros legitimadores das artes, El Sy amplia a potência expressiva de seu pensamento artístico quando o apresenta a outros públicos.  A juta que o artista utilizou nos anos 80 e cuja textura e feição rustica era um contraponto à custosa tapeçaria produzida no Centro de Artes Decorativas de Thiès, outra obra estatal do então governo senegalês, é revisitada na concepção do  baobá-polvo, integrante da  31ª. Bienal de SP, ganhando outros significados quando cruzada com percursos brasileiros.

 

O cenário da arte contemporânea para os criadores oriundos do continente africano mudou substancialmente nos últimos tempos na medida em que esses artistas tornam-se propulsores de seus próprios discursos.  É certo que há um caminho pedregoso para o reconhecimento desses pensamentos estéticos em suas pluralidades no panorama mais amplo das artes.  Mas, de fato, outras portas começam a se abrir  – distintas dos museus etnográficos e coloniais.

 

 

 

SOBRE COISAS QUE NÃO EXISTEM

 

 

Entrelaçando arte e política, a edição deste ano da Bienal de Artes de São Paulo propõe extensa programação que além das obras em exposição busca extravasar os muros da instituição, historicamente pouco permeáveis às gentes comuns, através de rodas de conversas, saraus, simpósios, shows, exibições de filmes, plantões educativos e outras atividades que tecem conexões com contextos socioculturais diversos, como os fazeres e saberes de coletivos populares e das periferias. Será essa uma aproximação comprometida não apenas com o calor da hora e a engrenagem do grande mercado cultural, mas com uma real mudança de relações capaz de cutucar e propor situações de reflexão? Capaz de catalisar públicos diversos, que possam se reconhecer ou se incomodar, sobretudo aqueles que normalmente tem pouco acesso e relação com a arte contemporânea, elitista por natureza?

 

Do continente africano fincaram terreno na Bienal a artista visual e performer nigeriana  Otobong Nkanga (1974), os  artistas visuais Tiago Borges (1973) e Yonamine (1975), ambos nascidos em Angola e o senegalês, El Hadji Sy, mote destas páginas, que,  permaneceu um tempo em residência em São Paulo para compor sua  Arqueologia Marítima.

 

A obra propõe ao público brasileiro um exercício de mergulho em memórias que tem como ponto de partida a experiência da travessia atlântica, mas não se encerra nela. É preciso interpretar suas cores, formas e texturas, com o corpo no presente, refletindo sobre nossa brasilidade.

 

A referência ao “holocausto da escravidão negra” não resume a proposta da obra, que anuncia detalhes, camadas de sedimentos que foram recriadas na diáspora. O painel com cordas que reproduzem figuras humanas poderia ser interpretado como simples alusão ao navio negreiro, se não tivéssemos realidades ironicamente atualizadas nos cotidianos de corpos amontoados nos transportes coletivos, nos camburões da Polícia Militar.  Sem coincidências, são corpos quase sempre negros.

 

O saco de juta com marcas de pés e carimbos do “Café do Brasil” aponta para fatores diversos que continuam a queimar nossas línguas. São narrativas dos tempos áureos dos barões que prosperaram em palacetes nas célebres avenidas paulistanas. São referências da substituição da mão-de-obra negra pelo braço de migrantes europeus –  face do projeto civilizatório que mirava o branqueamento da nação. É o café que produzimos, mas que não bebemos, porque  é “tipo exportação”. São os  novos ciclos de exploração negra, indígena e  nordestina que mantém as  gentes de melanina acentuada invisíveis,  atrás de balcões, vassouras e demais subserviências. A Arqueologia Marítima nos chama atenção para a relação entre história, memória e esquecimento. E não trata-se de reforçar a tragédia escravista como uma ladainha sem melodia. Perceber a escravidão africana sem refletir sobre suas mazelas contemporâneas é saco furado.

 

Visualmente a Arqueologia talvez não dê conta de anunciar isto tudo, mas sua plasticidade pode compensar esse desequilíbrio.  Assim, para aprofundar a percepção dos significados é preciso mergulhamos nela. Quando os 21 bailarin@s de histórias corporais diversas ocuparam seu espaço, a obra evocou em voz alta sentidos e tornou-se lente ampliadora da vida social.

 

 

‘Inácia Bororo. Morreu abraçada com a pequena Paloma, esmagada por um caminhão. Índia, cacique, mãe. Danço em sua homenagem, sempre”.

“Irani mandacaru – De onde venho a terra é seca e fértil”.

“Meu nome é Dona gorda, tenho cascatas de gordura. Venho da poça d´agua que o mar faz com a rocha”.

“”Ela vai entrando, cumprindo uma coragem. Avançando, abre o mar pelo meio. Ela brinca com a água. Com a concha das mãos cheia de água, bebe em goles grandes.”

(Narrativas criadas pelas bailarinas/os  como parte do processo de criação para a Ativação Cênica da Arqueologia Marítima. Autorias: Fredyson Cunha, Jaqueline Duni, Beatriz Aranha e Ana Maira Favacho).

 

 

A compreensão do legado civilizatório das populações de matrizes africanas no Brasil é ainda um livro longo a ser escrito. Os temas presentes na Arqueologia Marítima são abordados em inúmeros trabalhos produzidos por uma intelectualidade liberta das estruturas de dominação e comprometida com uma discussão que aborde as complexidades, contradições e urgências do assunto.  Oxalá o educativo da Bienal tenha preparado seus educadores com essas letras profundas.  Leda Maria Martins, Beatriz Nascimento, Joel Rufino dos Santos, Nei Lopes e tantos outros- boas leituras pra sair da mesmice.

 

E na estreia da exposição, quando nossa pele suava satisfeita com a sensação de missão cumprida, logo após a ativação cênica, El Sy afirmou, apontando para as figuras dos corpos do painel:  Il son les  morts, vous êtes les vivants.  (Eles são os mortos, vocês são os vivos).

 

A Arqueologia nos provoca para confrontarmos as águas, lodos e espinhos da experiência diaspórica – mar profundo. Para decantar os mistérios, topar os desafios e escurecer as páginas deixadas em branco.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Luciane Ramos Silva

Luciane Ramos Silva é antropóloga, artista da dança e mobilizadora cultural. Doutora em Artes da Cena e mestre em antropologia pela UNICAMP. Bacharel em Ciências Sociais pela USP. Atua nas áreas de artes da cena, estudos africanos e educação.

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.