agosto de 2013

MICHELLE MATTIUZZI: CORPO, FESTA E DOR

Alexandre Araujo Bispo

 

 

 

fotos Fernando Lopes

 

 

 

 

Visitar a página do Facebook de Michelle Mattiuzzi pode nos dar alguma ideia do seu trabalho ativista, no qual o corpo, o seu corpo, ocupa lugar importante, central, polissêmico e bélico. Esse texto é uma tentativa de destacar elementos marcantes de suas ações performáticas, fruto do diálogo em diferentes níveis com fotógrafos, coletivos de arte, vídeo artistas. Esses parceiros estão afim de fazer a festa e promover o estranho, o inusitado, alinhando-se ao partido dos que tomam uma par de chutes na vida, mas ainda assim retocam a maquiagem e, como mostra um post da Michelle que eu curti, não sem antes rir bastante:  a atriz Regina Duarte, segura uma placa, enquanto que a Mônica, da Turma da Mônica, agora com um pênis, tem perto de si um balãozinho informando : “Um beijo pra quem é travesti”. Nisso as duas figuras femininas se afinam. Ao compartilhar essa imagem, mas também a frase “travesti não é bagunça” que se difundiu nacionalmente por meio do programa Profissão Repórter, comandado pelo jornalista Caco Barcellos, Michele nos dá indicações das questões que aparecem em suas obras: corpo, identidade, raça, história, classes sociais, profissão, violência, beleza, consumo, excesso, estereótipo e sensualidade. Além, é lógico, travestismo de raça, de classe social, de gênero, de liberto em escravo, de passado em presente…

 

 

CURTIR OU COMPARTILHAR

 

 

Michele faz pós- graduação em dança na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Antes fez graduação na PUC-SP em Comunicação das Artes do Corpo, formando-se em 2010. Terminada essa etapa foi para a Europa e como ela mesma afirma, percebeu ali o que era “ser negra”, conheceu as representações sobre seu corpo na pele. Ao voltar ela afirma: “Tive que entrar no mercado de trabalho novamente, tive que experienciar o que é ser gado na cidade… nesse espaço voltei a ser o que era, aí surge uma revolta, pois fiz tudo pra ser uma “pessoa de bem” dentro das expectativas sociais e de repente era nada…tudo era nada…”

 

Tal aprendizado do corpo a levou a fazer um percurso contrário de muitos que saem de outros estados para estudarem, trabalharem e viverem suas vidas em São Paulo.  Michele nasceu em São Paulo. Depois da graduação, da viagem européia foi para a Bahia e isso diz muito sobre suas escolhas e o tipo de trabalho que vem produzindo desde então. A partir dessa tomada de decisão ela põe em jogo seu corpo, manipulando representações sobre a associação entre a cor da pele e os juízos de valor que recaem sobre o corpo negro feminino. Um de seus trabalhos recentes trata desse tema. Em “Carne Aval – Num dia de Carnaval”, Fevereiro 2013, em parceria com o fotógrafo Alex Oliveira, a artista torna-se um Diabo que, por muito pouco, poderia ser a Chapeuzinho Vermelho. Seu ar é infantil, e vista de cima, ela fragiliza-se. Sob os chifres o cabelo não liso, louro, mas curto como de um menino; sua capinha cobre, mas deixa sair um seio que, afinal é um dos símbolos mais poderosos nas representações do corpo negro feminino.

 

 

ANTECEDENTES DO TERRORISMO POÉTICO

 

 

O difícil na produção da artista é conseguirmos distinguir em quais momentos ela está fazendo arte e quais não, posto que seu corpo é o veículo que informa suas práticas artísticas. Sua máquina de guerra. Ora essa dificuldade dá-se precisamente porque o meio expressivo de Michele é o seu corpo. Assim ela afirma: “Há pelo menos 3 décadas carrego o meu corpo pelo mundo. Vivo com humor, mal humor, desamor, alegria, tristeza, felicidade, dor , amor, paixão , cores e muitas outras coisas que não cabem nas palavras”. Vejamos brevemente como sua atitude tem antecedentes na produção brasileira. O corpo como suporte plástico, expressivo entrou com força na arte moderna, quando da ascenção da performance. O que quero dizer é que o programa estético de Michele Mattiuzzi desenvolve-se na esteira de outros artistas que em seu momento produziram sua subjetividade desestabilizando as regras sociais. Assim, lembremos a poderosa atuação de Flávio de Carvalho (1899-1973), e especialmente suas intervenções públicas “Experiência n.2” performance realizada numa procissão de Corpus Christi em 1931. O desconforto de sua ação: andar de chapéu (então proibido naquela ocasião sagrada) e a contra fluxo teve como efeito a comoção negativa, passional a ponto de o público católico querer linchá-lo por sua audácia. Mais tarde em 1956 o artista novamente tomava as ruas do centro de São Paulo para exibir seu New look, ou “traje para o novo homem dos Trópicos”. Numa época em que as roupas masculinas e femininas incorporavam oposições de gênero muito marcadas, Flávio retirou momentaneamente as bases que sustentavam a diferença entre homens e mulheres, mostrando que para o calor brasileiro, essa roupa “feminina” era a mais indicada. Se Flávio de Carvalho cutucou com seu corpo o catolicismo e a identidade sexual do homem tropical, mais tarde, outro artista o ator Zózimo Bulbul (1937-2013) põe em jogo de forma aguda os investimentos negativos, pitorescos ou estereotipados sobre seu corpo negro remetendo-o à história da escravidão brasileira. Em 1973 o primeiro galã negro de nossa TV produz o radical “Alma no olho” uma complexa reflexão sobre a escravidão do corpo negro masculino. Diante da câmera o artista mostra os dentes, se auto-acaricia, dança com e sem panos “africanos”, figurando assim repressão e liberdade. Contra um fundo branco, que lembra as paredes de uma galeria de arte ele se exibi, se contorce, põe-se como esquisito, estranha-se, nos seduz. Vemos sua bunda e toda sua juventude sensual. Em 11:06 é impossível não lembrar as fotos do português Cristiano Júnior (1832-1902), e os retratos pitorescos de negros que produzia para circularem no mercado visual europeu levados por viajantes em visita ao país. Acompanhado pela espiritualizada música de John Coltrane (1926-1967), músico que tornou o jazz algo sagrado e hermético, acessível a poucos pelo elogio da forma transcendente, Bulbul sugere liberdade racial, num país em que o Movimento Negro estava de mãos atadas nesse momento de ditadura, e cuja luta racial era vista como invenção de seus militantes. Afinal, quem iria admitir que no Brasil havia racismo? As tensões vividas no corpo positivamente racializado no discurso nacional, mas rechaçado nas relações sociais e práticas cotidianas, dão a esse trabalho a gravidade plástica necessária a exprimir a situação dos negros brasileiros de forma inteligente, refletida, sem concessões e que antecipa discussões presentes no trabalho do afro-britânico Inka Shonibare (1962).

 

Dito isso, é possível agora aproximar os trabalhos de Michele Mattiuzzi, tanto do ponto de vista da representação visual a fotografia e o vídeo, presentes no trabalho de Bulbul, quanto da exibição pública tendo a rua como suporte de interação e espetacularização do seu corpo ora nú, ora pintado, ora amarrado, em movimento festivo, suado, sensual. Veja-se, por exemplo, a performance:  Merci Beaucoup, Blanco! Ou muito obrigado branco. 2012.

 

As intervenções da artista ocorrem em diferentes eventos de caráter coletivo, no qual fica claro que sua obra é o seu corpo. Se em Flávio e Bulbul o corpo era um entre outros experimentos, para Mattiuzzi ele é expressão biográfica e experiência social. Culpa do seu ativismo diário, cotidiano no qual sua presença é modificadora de sentidos e abre possibilidades. A proximidade da artista com a fotografia é enorme e ela sabe o que fazer para encontrar a pose certa, o rosto de cada persona que inventa nos deixando curiosos quanto a seu processo criativo. Ela chega e muda as coisas, interfere, aterroriza poeticamente.

 

 

MUSA MATTIUZZI

 

 

Chego ao Centro Cultural Dannemann, é hora de bate-papo. O tema é “As redes colaborativas de arte”, os debatedores são participantes de coletivos, respectivamente na ordem de apresentação: Milena Durante – EIA/SP; Patrícia Francisco – RS e Rosa Apablaza – Desislaciones/Chile. Acompanho as conversas, me distraio. Vejo um olhar, meu rosto está suado e uso óculos escuros. Ouço uma risada. Vejo e finjo que não é comigo, continuo com o mesmo semblante e sentindo meu corpo transpirar, pulsar, tremia de medo. Se lançar num ambiente, em que a discussão é intervenção urbana me causou um pequeno desconforto. Sentia os olhares de todos os presentes. (MATIUZZI, 2012. p.4)

 

O trecho acima é um relato da artista quando de sua aterrisagem no Recôncavo baiano nas cidades de São Félix e Cachoeira. Michele resolveu desarrumar os esquemas, pode-se dizer que carvalhisou como o fez Flávio de Carvalho no seu tempo. Ela tornou-se reconhecida na cena queer baiana e, pode-se afirmar, que se não ajuda a inventá-la, transforma-se em símbolo importante. Ela lembra que investimentos queer começam a emergir em Salvador desde 2006, quando a banda “Solange tô aberta” passa a discutir o conceito de queer, que nos EUA foi originalmente usado no sentido de “desvio sexual”, ou seja, tinha-se um padrão de normalidade – heterossexual – que ainda é muito poderoso -, e o que fugia ou desviava desse modelo era considerado errado, periférico. Atualmente a palavra diz respeito não apenas as sexualidades fora do eixo, mas assumiu o caráter de direitos políticos para novas identidades sexuais e de gênero. Precisamente coisas que Michele está disposta a bagunçar como o sistema de classificação: negro, branco, homem, mulher, travesti, fantasia e realidade, intimidade e vida pública, celebridade e racismo, religião e sofrimento e outros pares de oposição. Ao fazê-lo ela remexe as estruturas de poder, desorganiza esquemas por meio de micro ações, num programa de interferências que começou em solo baiano no 3° FIAR (Festival de Intervenções e Artes do Recôncavo).   A ação performática lhe deu ali a possibilidade de experimentar novos estados de espírito, provocar contaminações, reiterar o caos e gerar instabilidades de diversos graus no entorno, no espaço partilhado com os outros, pois o que fez foi apenas entrar no jogo e ver como o espanto dos outros, era na realidade cumplicidade com seu trabalho. O desconcerto diante de sua figura provocante coloca em questão os temas aos quais o corpo negro, sobretudo o feminino, vem há muito sendo tratados nas artes plásticas: branco, masculino, eurocêntrico.

 

 

O CORPO NEGR@ COMO TEMA

Foi nesse festival que ela começou a extravasar seu desejo de aterrorizar poeticamente através da manipulação dos estereótipos da feminilidade negra. Sua ação estabelece pontes com outros artistas na história da arte no Brasil que documentaram, idealizaram ou pensaram criticamente a representação dos corpos negros.  Michele Mattiuzzi com talento borra e bagunça o “perímetro temático” ao qual historicamente se procura representar o corpo dos sujeitos negros nas imagens sobre o Brasil (SLENES, Robert1995/96, p.274). Em cada performance da artista estão como que socadas diferentes representações da mulher visíveis, ou sutis na história da arte brasileira: as mulatas prostitutas sensuais de E. Di Cavalcanti (1897-1976), a feiosa, mas afetiva Negra, de Tarsila do Amaral (1886-1973), as escravas carecas, bem vestidas e descalças da aquarela “Jovens negras indo à Igreja para serem batizadas”, 1821, de Jean Baptiste Debret, o cabelo crespo sem sexo de “Caixa Brasil” de Ligia Pape (1927-2004), as “Amas de leite” (2005), “Bastidores” (1996-1997) ou “Assentamento” (2012) da paulistana Rosana Paulino (1967), no qual o corpo representado é múltiplo: fonte de alimento, ação manual, ancestralidade e natureza sacralizada, de muitas sociedades africanas.  Adicionalmente conversa com “Também quero ser sexy” 2012, performance da artista Renata Felinto  (1978) que questiona a figuração do luxo espacializado na cidade de São Paulo. Ampliando ainda mais os limites dessas relações sugiro também que o desejo de rua de Michele Mattiuzzi aproxima-se por contraste das próteses domésticas de Janaína Barros (1978), para quem a cultura material doméstica precisa de roupas, capas que protejam os objetos sagrados da subjetividade matrimonial feminina.

 

Essa presença das mulheres como tema recorrente nas artes visuais tem seus antecedentes na Europa da Idade Média, quando aparecem as figuras da Virgem e da Vênus Negra. A primeira está ligada a Virgem Maria e outras mulheres bíblicas, como Maria, a Egipcíaca, e a Rainha de Sabá. A atração erótica do corpo da mulher negra, ao contrário surgiu a partir da segunda metade do século XVI, como afirma Eddy Stols,  para personificar a África nas alegorias dos quatro continentes. A partir desse século ganharam enorme circulação na Europa e na América. O pintor Anthony Van Dick (1599-1641) mostra uma mulher negra que aponta para o casal branco no quadro “Amaryllis e Mirtillo” (1631). (STOLS, Eddy; 2008 255-263).

 

Abaixo Michele em um de suas férteis parcerias, agora com o fotógrafo Fernando Lopes. Nesta fotografia de 2012 a musa deita-se no colo de uma escultura do escultor italiano Pasquale De Chirico (1873-1943) que foi para a Bahia indicado por Teodoro Sampaio (1855-1937). A escolha não poderia ser mais interessante, pois o Palácio Rio Branco, que abriga essa peça, demarca a passagem do modelo politico imperial ao republicano. Tal transição fez com que o edifício ganhasse feições neoclássicas, então o estilo escolhido para figurar os “novos tempos” da Bahia que, supostamente se modernizava. Plenamente incluída no palácio Musa Mattiuzzi fez um corpo a corpo com a estética ocidental.

 

 

FESTA E COLETIVIDADE

Outro tema cheio de história que Michelle Mattiuzzi manipula com destreza é a associação entre africanos e festas coletivas fartamente apoiadas em músicas rítmicas de percussão. O historiador Eddy Stols nos conta que entre os Habsburgo portugueses o hábito de oferecer festas com a presença de negros e mouros já aparece em 1451. Em meados de 1576, a Rainha Elizabeth se deixou divertir por músicos e dançarinos africanos. A moda das bacanais, festas em homenagem ao deus Baco, então tema corrente na Itália renascentista inspirou, segundo Stols, o pintor dos Países Baixos Maerten Van Heemskerck (1498-1574). Esse artista coloca ao lado de Baco, voltando do Oriente, cinco figuras negras, uma dançarina oriental, um menino segurando um bode, um sátiro bebendo vinho, um bêbedo sobre pernas de pau e outro com máscara referente ao cultos dos mistérios dionisíacos. O autor lembra ainda que os calvinistas nos Países Baixos setentrionais, embora  desaprovassem a “índole festeira dos africanos”, suas danças e músicas suscitaram pelo menos a curiosidade dos holandeses. A partir desses dados podemos afirmar que a participação de Matiuzzi em coletivos ativistas como o “Prato do dia”, por exemplo, trazem à tona esse imaginário inventado, sobre o qual ela e os coletivos nos quais atua dão uma boa desarrumada nos esquemas instituídos de circulação no espaço público.

 

Esse aspecto coletivo do trabalho da artista aparece no vídeo do Opa – RJ “Carrinho de bebe”. Ela nos diz: “Manipulo esse carrinho na Xepa da Feira de Cachoeira numa cidade do Recôncavo Baiano. Lá aconteceu juntamente com os coletivos OPA+ GIA a residência artística. Nesse dia em especial participamos do sambagia na feira, e o coletivo Opa lança o carrinho de bebe com bebidas típicas da região do Recôncavo baiano: licores de gengibre, jenipapo, cajá , tamarindo  e coco. Nele desfilo no fim da feira da pequena cidade com um body de oncinha e descalça como as negras escravas vistas por Debret.

 

FINALIZANDO…

Em 28 de março por ocasião das comemorações da Páscoa Michelle Mattiuzzi compartilhou a foto de Alex Oliveira na qual ela nos mostra um pedacinho de seu corpo sensual. Seu comentário:

 

BOA PÁSCOA AOS CRISTÃOS!
Pra quem gosta de ovo de chocolate
e fomenta essa merda toda,
meL cu de chocolate!

 

Termino esse esforço interprativo do trabalho desta que considero uma das mais importantes artistas contemporâneas da atualidade, com um texto dela que reflete sobre as potencialidades das palavras de dizer as ações: “Elas, as palavras não dão conta de comunicar o que estou sentindo e/ou que sinto. As palavras são incapazes, às vezes, de comunicar o que está no meu corpo, nas minhas ações e intenções. As palavras são impossíveis; muitas vezes improváveis e em outras vezes incomunicáveis. As palavras são ambíguas, como os nossos sentimentos: como a vida”.

 

 

 

 

 

Alexandre Araujo Bispo

ALEXANDRE ARAÚJO BISPO é doutor e mestre em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo. Bacharel e licenciado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo. Vive e trabalha em São Paulo. Atua com curadoria, crítica de arte, arte educação e produção cultural. Foi curador artístico, entre outras, das exposições: Aline Motta: Em três tempos: memória, viagem e água (2019); Medo, fascínio e repressão na Missão de Pesquisas Folclóricas, 1938-2015 (2015-2016); Negro Imaginário (2008). Curador educativo entre outras, das exposições: Todo poder ao povo: Emory Douglas e os Panteras Negras (2017) e Bienal Naïfs do Brasil (2018). Possui textos em publicações como Contemporary And América Latina; Revista Omenelick 2º Ato; Art Bazaar; Revista ZUM; SP-Arte; Pivô; Co-autor de Cidades sul americanas como arenas culturais (2019); Metrópole: experiência paulistana (2017) e Vida e Grafias: narrativas antropológicas entre biografia e etnografia (2015).

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.