julho de 2011

DESVENDANDO JOÃO

Nabor Jr.

 

 

 

 

 

“Modernizar o passado é uma evolução musical”, eternizou o cantor e compositor olindense Chico Sciense (1966 – 1997) na música Samba Makossa, presente no essencial Da Lama ao Caos (1994).

 

Ícone do manguebeat (movimento musical surgido no início da década de 90 no Recife, e que mistura ritmos regionais como o maracatu, rock, hip hop, funk e música eletrônica), o pernambucano levou ao pé da letra o discurso presente na canção e, não apenas modernizou o tempo transposto como aprofundou-se, compreendeu e respeitou o rico passado musical brasileiro antes de transmiti-lo as novas gerações.  Eclética e bem sucedia mistura de ritmos dos seus álbuns comprovam isso.

 

Também foi modernizando o passado que no início dos anos 2000, durante uma apresentação do grupo carioca Forroçacana, liderado pelo multinstrumentista Duani Martins, que tomei contato com a obra de João Batista do Vale (1934 – 1996).

 

A pulsante e explosiva música Morena do Grotão (composta por João em parceria com Zé Cândido), revestida por uma linguagem mais dançante e percussiva, saiu da garganta do versátil músico direto para os meus ouvidos como uma bala de canhão. Fiquei hipnotizado.

 

Quem era aquele sensível compositor capaz de traduzir tal qual o sofisticado baião político-social de Luiz Gonzaga e o samba de breque da música nordestina de Jackson de Pandeiro, a refinada simplicidade da poética e transcendência rítmica do cancioneiro nordestino?

 

Descobri um sujeito tímido, sertanejo do norte, escuro como a noite. Neto de escravos, semi-analfabeto (apesar de exímio compositor, não sabia escrever, assim guardava músicas e letras na cabeça) e de hábitos simples: vivia andando descalço e não eram raras a vezes que circulava sem camisa.

 

Enquanto a maioria dos compositores da chamada música nordestina explorou o drama da seca, João do Vale cantou as desigualdades sociais, foi pioneiro em abordar, sem demagogia, o tema da reforma agrária: “É só me dar terra pra ver como é que é / Eu planto feijão, arroz e café… Eu sou bom lavrador / Mas plantar pra dividir / Não faço isso mais não” (Sina de Cabloco, com Jocastro Bezerra de Aquino).

 

Nascido na cidade de Pedreiras (cantada em verso e prosa em músicas como Morena do Grotão e Pisa na Fulô), interior do Maranhão, em 1934, João, do Vale no nome, mas do povo em sua rica poesia, era o quinto filho de uma família de oito irmãos. Freqüentou a escola até o terceiro ano primário, quando teve de interromper os estudos – não para trabalhar, mas para ceder lugar ao filho de um coletor recém-nomeado para trabalhar em Pedreiras. “Na época em que cursava o primário, foi nomeado um coletor novo para Pedreiras. Ele levou um filho em idade escolar. Tinha uns trezentos alunos, mas escolheram logo eu para dar lugar ao filho do homem. Hoje eles botaram rua com meu nome, me homenageiam, só para desmanchar o que fizeram… Mas nem Deus querendo eu esqueço” relembrou o artista durante uma entrevista.

 

 

A escola, ou falta dela, não foi capaz de impedir que João, formado na vida, transformasse em arte as dificuldades do sertanejo pobre (trabalhou de forma única as palavras, deixando fácil para o ouvinte o esclarecimento de suas idéias), realidade esta que tão bem conheceu: “Eu vendia pirulito, arroz doce, mungunzá / Enquanto eu ia vender doce, meus colegas iam estudar”. (Minha História).

 

Autor de grandes sucessos da música popular brasileira como: Carcará, Pisa na Fulô, Coroné Antônio Bento, Estrela Miúda, Na Asa do Vento, No Pé do Lajeiro, o artista, apesar de desconhecido do grande público, é reverenciado por ícones da classe artística nacional. Entre eles estão nomes como Chico Buarque, Fagner, Bibi Ferreira, Nara Leão e Ferreira Gullar.

 

“João do Vale é uma árvore frondosa, onde cada um vai e colhe um fruto”, disse certa vez Chico Buarque, que em 1981, ao lado dos amigos Fagner e Fernando Faro, produziu o álbum João do Vale convida (com as participações de Nara Leão, Tom Jobim, Gonzaguinha e Zé Ramalho). Em 1982, o mesmo Chico Buarque gravou um disco ao lado de João e, em 1994, voltou a reverenciar o amigo, reunindo artistas para gravar o disco João Batista do Vale.

 

João do Vale começou a trabalhar ainda menino (ajudava em casa vendendo balas e doces feitos pela mãe). Aos 13 anos mudou-se com a família para São Luís, onde participou de um grupo de bumba-meu-boi já compondo versos. Aos 14 veio morar no Sul – sonhava com o Rio de Janeiro. Como seus pais não o deixariam partir, fugiu de trem para Teresina onde arranjou emprego como ajudante de caminhão. Viajava de Fortaleza a Teresina, um dia chegou a Salvador, primeira cidade grande que conheceu, e em seguida foi para Minas Gerais. Chegou ao Rio de Janeiro, de carona, aos 17 anos e foi ser ajudante de pedreiro.

Com músicas e letras na cabeça (uma vez que não sabia ler nem escrever) começou a freqüentar as rádios cariocas com a intenção de mostrá-las a artistas. Em 1950, conseguiu que Zé Gonzaga (irmão de Luiz) gravasse Cesário Pinto, que faria sucesso no nordeste. E em 1953, foi apresentado a uma das “rainhas do rádio”, Marlene, que gravou Estrela Miúda que, tocada nas rádios, fez sucesso no Rio. João contaria depois que, ao ouvir a música no rádio, comentou com os colegas de trabalho, na obra, que era uma música de sua autoria. Eles duvidaram e lhe disseram que o sol quente estava prejudicando seu juízo.

 

 

Dois outros períodos foram muito marcantes em sua carreira. No início dos anos de 1960, conheceu Zé Kéti que o levou para se apresentar no ZiCartola, bar-restaurante de Cartola e Dona Zica que reunia artistas e músicos. Lá foi convidado a participar do show Opinião, ao lado de Zé Kéti e Nara Leão.

 

Idealizado por Vianinha (Oduvaldo Viana Filho), Paulo Pontes e Armando Costa e dirigido por Augusto Boal, o show Opinião estreou em dezembro de 1964, foi assistido por mais de 25 mil pessoas só no Rio de Janeiro, e levado a outros estados, constitui-se num marco de resistência artística ao regime ditatorial vigente no país. Este show, que lançou também Maria Bethânia (que substituiu Nara), com sua marcante interpretação de Carcará, foi relançado anos depois em 1975, com Zé Kéti e Maria Medalha, sob direção de Bibi Ferreira.

 

Apesar de o show Opinião representar o seu grande momento como compositor, a melhor fase da vida do artista ocorreu no final dos anos 70, quando ele foi o mestre-de-cerimônia da casa de shows Forró Forrado, na Rua do Catete, no Rio de Janeiro. Chico Buarque, Luiz Gonzaga, Elza Soares, Jackson do Pandeiro, Miúcha, Moreira da Silva, Clementina de Jesus, Clara Nunes, Jamelão, Djavan e até a trovadora argentina Mercedes Sosa se apresentaram na casa a convite de João.

 

Vivendo com uma pensão de cinco salários mínimos e de direitos autorais, em 22 de novembro de 1996, já com a saúde bastante debilitada, o músico sofreu seu segundo acidente vascular cerebral (o primeiro aconteceu em 1987, quando ficou internado por dois anos para tratar da semi-paralisia do lado direito do seu corpo). No dia 4 de dezembro teve o seu terceiro e fatal derrame, o que o levou ao coma. E no dia 06 de dezembro de 1996, sexta-feira, às 13h30min, com falência múltipla dos órgãos, morria João Batista Vale, o poeta do povo.

 

As músicas de João, que narram a história da sua infância pobre no Maranhão, da vida de migrante no Sudeste, o prazer pelo forró e, sobretudo, o orgulho da cultura nordestina, continuam vivas e seguem influenciando artistas em todo o país.

 

 

 

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NOVAS VERSÕES

Maria Bethânia e Chico Buarque que nos perdoem, mas é do grupo de percussão corporal Barbatuques, a mais brilhante releitura do grande clássico de João do Vale, a música Carcará. Gravada em 2005, no álbum O Seguinte É Esse, a fulminante versão é a mais pura representação da vitalidade da música popular brasileira. Letra, melodia e a característica intensidade percussiva do povo tupinquim ali estão representados com pujança.

Destaque também para a interpretação de Pé do Lajeiro, na voz da cantora e compositora carioca Teresa Cristina, que e em parceria com o Grupo Semente, gravou a música no disco Delicada (2007).

 

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ZICARTOLA

Acrônimo de Zica e Cartola, foi um restaurante aberto na cidade do Rio de Janeiro pelo compositor e sambista Angenor de Oliveira, o Cartola, e sua mulher Euzébia Silva do Nascimento, a Dona Zica. Foi ponto de encontro de sambistas de destaque na cultura brasileira, como Elton Medeiros, Nelson Cavaquinho, Ismael Silva e Aracy de Almeida, e grandes nomes da bossa nova, como Carlos Lyra e Nara Leão. Também foi palco do lançamento de Paulinho da Viola.

 

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FORRÓ FORRADO

A melhor fase da vida do artista ocorreu no final dos anos 70, quando ele era o mestre-de-cerimônia da casa de shows Forró Forrado, na Rua do Catete, no Rio de Janeiro. Chico Buarque, Luiz Gonzaga, Elza Soares, Jackson do Pandeiro, Miúcha, Moreira da Silva, Clementina de Jesus, Clara Nunes, Jamelão, Djavan e até a trovadora argentina Mercedes Sosa se apresentaram na casa a convite de João.

 

 

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DISCOGRAFIA

João Batista do Vale
BMG Ariola/ 1995

 

João do Vale
CBS/ 1981

 

Show Opinião – Nara Leão, Zé Kéti e João do Vale
Philips/ 1965

 

O Poeta do Povo
Philips/ 1965

 

 

 

Nabor Jr.

Nabor Jr. é fundador-diretor da Revista O Menelick 2° Ato. Jornalista com especialização em Jornalismo Cultural e História da Arte, também atua como fotógrafo com o pseudônimo MANDELACREW.

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.