agosto de 2013

MALI: AREIA, PÓLVORA E FERTILIDADE

Luciane Ramos Silva

 

 

 

 

fotos ACERVO ÁFRICA

 

 

 

 

 

 

 

Na areia branca do deserto escaldante 
Ele nasceu, cresceu guerreando
Caminhando dia e noite
No deserto sem errar

 

Pois com muita fé ele só  para pra orar
Pois pela direção do sol e das estrelas
No oásis escondido, água ele vai achar
Pois o homem de véu azul é prometido de Aláh

 

Pois ele é guerreiro
Ele é bandoleiro
Ele é justiceiro
Ele é mandingueiro
Ele é o Tuareg

 

Galopando seu cavalo preto brilhante
Ele vem todo de azul orgulhoso e confiante
Trazendo seu rifle embalado sua adaga tira colo
Sempre pronto para o que der e o que vier
Pois ele é sentimental, é humano, é nobre,
é mouro, é muçulmano

 

 

Em 1969, Gal Costa, em seu terceiro álbum, intitulado Gal,  grava esta composição de Jorge Ben,  trazendo  um universo africano místico a partir da figura de um Tuaregue, conhecido como o  “homem azul do deserto”. Essa é uma referência rara na música brasileira acerca de um deserto que pouco conhecemos – há 40 anos atrás e mesmo hoje – mascarado por uma ideia de escassez e dificuldade que se solidificou no imaginário do Ocidente. Um deserto impenetrável, imerso em tempestades de areia que apagam rastros, histórias e obscurecem  as pistas para experiências de vitalidade e resistência.

 

Árido apenas?  Que memórias temos acerca do Saara para além da referência das pirâmides do Egito, civilização que, segundo o historiador senegalês  Cheickh Anta Diop ( 1923 – 1986) , tem origens negro-africanas? Quantos de nós não aprendemos a conceber esse Egito com uma rainha, Cleópatra, idealizada por Hollywood na figura de Elizabeth Taylor? Quanto  da produção historiográfica até mesmo omite o fato de que  essa sociedade era africana e que seu legado civilizatório se origina no próprio continente?

 

É importante atentar para essas sociedades a partir de percepções críticas sobre o que não é dito, o que implica em conhecimentos múltiplos, que passam pela cultura, história e conjunturas políticas. São informações ainda escassas, já que a produção literária em língua portuguesa sobre os assuntos africanos caminha a passos lentos, mesmo diante dos 10 anos da lei 10639. Faço então esta rápida jornada em um importante espaço da África do Oeste que adentra o Saara, aqui conhecido, de leve, a partir da produção musical de Salif Keita, Oumou Sangare, Ali Farka Touré, Toumani Diabaté, Rockya Traoré, entre outros. Uma passagem sem pretensões acadêmicas especializadas, mas preocupada em compartilhar informações que pouco circulam em nosso cotidiano.

 

 

QUE PAÍS É ESSE?

 

O atual território que hoje compreende o Mali agregou entre os séculos 11 e 14 três grandes impérios: Império do Gana, Império do Mali e Império Songhai, solos férteis no desenvolvimento das ciências e artes. Em sua imensidão territorial, por volta de 1.240.192 Km, compartilha fronteiras com sete países: Argélia, Níger, Burquina-Faso, Costa do Marfim, Guiné, Mauritânia e Senegal. Suas terras, predominantemente situadas no Saara, foram testemunhas de movimentos marcados pelas pisadas de gentes que atravessavam as areias nas grandes caravanas de comércio transaarianas, espraiando a presença árabe e o islam no norte do continente assim como na área do Sahel, zona fronteiriça entre o deserto e as áreas tropicais.

 

Impulsionadas por povos árabes durantes os séculos 8 a 19 inúmeras rotas comerciais fizeram fervilhar a região- afetos de sal, suor e metais, entre povos africanos e estrangeiros, fazendo cruzar hábitos, religiões, culturas materiais, vidas e ideias –  evidência do caráter de extroversão que caracterizou muitas das sociedades africanas, interessadas em intercambiar coisas e valores culturais. Essa abertura para o externo, que teve suas flores e chagas, pode ser percebida no processo de conversão das populações africanas ao islã, marcado pela manutenção de traços das culturas originais, ou seja, um islã africanizado.

 

A história colonial do Mali foi marcada pela presença francesa de 1880 até 1960 – rápida em termos históricos, porém complexa em impactos negativos – deixando um sistema educacional em língua oficial francesa, formas de organizar a sociedade que não consideravam as pluralidades étnicas e engrenagens de dependência econômica muito comuns em diversas nações africanas. No sistema financeiro o país participa da “Zona do Franco”, uma conexão onde a moeda nacional tem seu câmbio, o Franco CFA,  subordinado as diretrizes econômicas do Tesouro francês.  A moeda sofreu uma desvalorização gigantesca em 1994, fruto das políticas de “desenvolvimento e crescimento” impostas pelo Banco Mundial e colegas. Hoje, 1 Euro equivale a aproximadamente 658 CFA.

 

Da independência em 1960, liderada por Modibo Keita ( 1915 – 1977) , um pan-africanista fortemente influenciado pelo socialismo, seguiu-se longo período de regime repressivo e instauração da democracia em 1991, com forte presença de movimentos populares.  O estabelecimento da democracia marcou um período de expansão de noções de liberdade política, de imprensa e outras aberturas como há décadas não se via.

 

O fim do regime repressor coincidiu com a rebelião Tuaregue em 1991 – grupo que há aproximados 50 anos reivindica autonomia política e direito ao território. Mas afinal, quem são os Tuaregues e quais questões envolvem suas permanências e deslocamentos na região?

 

 

POVO QUE FORJA JÓIA E CAMINHO

 

Conhecidos no Ocidente como Tuaregues (abandonados por Deus), e autodenominados  Imohag ( homens livres) , essa população de grandes turbantes azul escuros ( por serem  tinturados com índigo, vegetal  tradicionalmente utilizado em técnicas de produção de tecidos da região)  compõe um grande grupo cultural chamado Bérbere ou Amazigh,  remanescentes dos primeiros  habitantes  da África do Norte. Falam a língua Tamachek e possuem um sistema de escrita composto por  signos geométricos conhecido como Tifinah.  De hábitos nômades, pastoralistas e  guerreiros, gerenciaram por séculos as grandes rotas comerciais que cruzavam o Saara, sobretudo as rotas do sal.   Na atualidade vivem em comunidades espalhadas por cinco nações: Líbia, Argélia, Níger, Burkina Faso e Mali.

 

Sua expertise como artesãos se revela na joalheria em prata e ligas metálicas com geometria precisa e elegante, na criação de acessórios em couro, já bem conhecidos no mercado turístico de objetos africanos, e mostram-nos um universo de cultura material ainda a ser descoberto pelo Brasil – diversidades de formas, cores, materiais e ritmos da vida.

 

A percepção das relações de gênero nas comunidades Tuaregue são outra especificidade que vale assinalar. As mulheres gozam de espaços de liberdade e autonomia pouco comuns nas sociedades da África do Oeste. Exercem grande influências nas decisões e direcionamentos comunitários, são responsáveis pela educação das crianças e, inclusive, pela transmissão do Tifinah; Tem direito garantido à propriedade , o que lhes confere autonomia em caso de divórcio,  e desfrutam de respeito social garantido, inclusive,  pelos códigos de ética locais, como o Asshak, que pune o homem que utilizar de sua vantagem física para se sobrepor à mulher, suspendendo seus direitos e o banindo da comunidade. E se na contemporaneidade temos diversas controvérsias sobre a submissão da mulher nas premissas islâmicas, é digno de nota que na sociedade Tuaregue, a poligamia, prevista pelo corão, foi rechaçada e não constitui regra nas relações conjugais. É evidente que existem inúmeros problemas que essas mulheres confrontam no dia a dia, semelhantes aos dilemas da condição feminina no resto do globo e, sobretudo, aqueles relacionados à urbanização e  falsa globalização.

 

 

TERRITÓRIO E CONVENIÊNCIAS NEOCOLONIAIS

 

As tensões e enfrentamentos entre Tuaregues e autoridades representantes do status quo se originam no século XIX, quando o comércio transaariano aguava a boca de franceses e ingleses cientes das rentabilidades que a região prometia.  Resistentes à penetração colonial, os Imuhag foram rotulados e estigmatizados por um modelo de hierarquização colonial que petrificou a imagem do grupo como bárbaros e  fanáticos, “tribalizando” o mundo Tuaregue aos olhos do Ocidente.   Da mesma forma os Estados (neo) coloniais e suas contrapartes no continente africano, reduzem e desqualificam as demandas  por autonomia, direito de representação e auto gestão – essa asfixia criada após os processos de independência, quebrou elos entre comunidades Tuaregue de diferentes regiões,  proibiu  movimentos pastoralistas e puniu severamente as reivindicações políticas.

 

As diferenças são múltiplas – desde a ideia de “nação” que funda a sociedade Tuaregue baseada em uma perspectiva de chefia onde o líder  não é supremo, mas um articulador de entidades plurais, até a própria noção de que o nomadismo é uma espécie de errância, uma maneira de viver sem base e organização. A vida nômade, ao contrário, implica em formas específicas de gestão de espaço, recursos humanos e organização política, vidas que foram historicamente mal entendidas no caso Tuaregue.

 

Longe de constituírem-se como linhas retas, tal como foi imposto pela partilha em 1884/85, as fronteiras são porosas, movediças e significam de maneira diversa para os povos que há séculos pisam, cultivam e fertilizam aquelas paragens.

 

 

CIFRAS NO SUBSOLO –  A AREIA ESCOA PELA AMPULHETA   

O Golpe militar de 2012 derruba o então presidente Amadou Toumani Touré, que já estava sob pressão  em virtude de diversas instabilidades, entre elas a importante rebelião Tuaregue que havia eclodido. Esses acontecimentos tumultuam o país a ponto de uma reunião de cúpula dos estados africanos decidir pela intervenção armada para reconquista do norte em novembro de 2012. A situação alarmante chega ao seu ápice em uma série de atentados aos direitos humanos e ao patrimônio da Humanidade, como a queima de inúmeros manuscritos das bibliotecas de Timbuktu. Toda conjuntura culminou com a intervenção militar francesa em fevereiro de 2013. Benevolência? Estratégia? Ambiguidades.

 

Importantes reservas de gás natural, petróleo e urânio ( este ultimo principalmente no Níger)  estão no centro dos interesses dos estados europeus e de  “parceiros” mais recentes como Estados Unidos, Canadá e China.  A venda de concessões de exploração de recursos em território Tuaregue  por parte dos estados africanos, ocorre paralela as reivindicações de organizações  como o MNLA – Movimento Nacional de Liberação do Azawad – uma das grandes forças de oposição ao poder central malinês  e que  após diversas mudanças e fissuras políticas,  apresentou uma proposta  de autonomia fundada  nos direitos dos povos por auto gestão e permanência em suas terras, no estado republicano  laico e no  pluricomunitarismo. Com a declaração unilateral de independência, o movimento reivindica oficialmente os territórios onde se situam as cidades de Gao, Kidal e Timbuktu, predominantemente no norte do país.

 

Importante apontar para o fato de que a investida armada Tuaregue não se relaciona à priori com os grupos extremistas que implantaram a sharia, código de leis do islamismo,  na região norte, causando estado de terror e migração da população para o sul. O que o MNLA demanda é  autonomia e direito à diferença. A implantação da sharia tem sido defendida por lideranças aliadas a Al Qaeda e que não predominam entre os Imuhag.

 

O contexto de guerra, destruição e medo  reportado pela mídia internacional sobre os últimos 12 meses no Mali, não se resume a uma guerra contra terroristas, extremistas ou  tribos , mas envolve enroscadas redes de alianças e tensões além de complexas relações de poder , grupos minoritários em representação,  um estado malinês dependente  da ex- metrópole,  influências   de um islã político que visa a hegemonia, uma comunidade de estados africanos desarticulada e dependente, além das potências neocoloniais  cientes de  recursos do  continente africano são fundamentais para a engrenagem capitalista.

 

 

TIMBUKTU –  ERUDIÇÃO EM SOLO AFRICANO

 

Rica em histórias e auras lendárias, a cidade de Timbuktu foi testemunha dos mundos que se cruzavam nas trocas comerciais estabelecidas entre Bambaras, Songhais, Fulas, Tuaregues assim como do encontro de caravanas marroquinas, espanholas, egípcias, argelinas… que intercambiavam noz de cola, temperos, tecidos, línguas, saberes e visões de mundo. A cidade, reconhecida como patrimônio da Humanidade pela UNESCO ( Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), guarda vasto legado de saberes em escolas corânicas, madrassas e bibliotecas com documentos antigos fruto de investigações  semeadas no campo da medicina, astronomia, diplomacia, história, ciências políticas e jurídicas, entre outras.

 

E nesse contexto, bibliotecas publicas e privadas  guardaram uma imensa sorte de manuscritos  das mais variadas áreas do conhecimento – da matemática à ciência oculta, da farmacologia  à retórica. Mitos e realidades  perpassam as informações sobre os conteúdos dos manuscritos. Sua quantificação não é unânime entre os pesquisadores – o que causou uma série de divergências no campo acadêmico – mas é patente a riqueza e valor desses documentos –  fontes raras   sobre as organizações políticas dos impérios emergidos naquelas sociedades africanas,  memória da pertença ao mundo da escrita numa época em que o saber era um valor tão procurado quanto o  ouro.

 

Mais que sítio turístico, Timbuktu abre portas para repensarmos o legado das contribuições africanas para o saber do mundo e coloca em questão, mais uma vez, a supremacia ocidental na construção da civilização planetária e o olhar exótico com o qual sempre foram observadas as sociedades africanas.   Retraçar o papel e lugar de importância da historia intelectual da África significa também nos apropriarmos dessas biografias e narrativas nascidas muito antes da colonização.

 

O desenho longínquo na história dos povos africanos como iletrados ou pouco instruídos,  marcou a ferro e fogo a negação de seus protagonismos na construção da história mundial, assim como relegou à inexistência as contribuições de homens e mulheres com suas sabedorias e invenções. Além de culturas ancestrais de oralidade, saberes em tinta e papel foram realidade já no século XIV em Timbuktu. Temos esta e outras mil razões para compreender África em suas civilizações.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

(Em 2009, andando pelas ruas do centro de Dakar, Senegal, conheci um jovem artesão Tuaregue de nome Aghali. Ele trabalhava em um quartinho dividindo espaço com um grupo de amigos, também Tuaregues, na forja e elaboração de bijuterias em prata. Passamos uma tarde compartilhando curiosidades e estranhezas sobre nossas culturas quando também presenciei de maneira encantada um pouco do saber-fazer de ourives do dia-a-dia. Papeamos sobre diversos assuntos e me inquietou o quanto meus novos colegas se mostravam curiosos acerca da situação política do Brasil, do governo Lula assim como a questão racial – queriam saber se realmente vivíamos aqui uma democracia racial! Hoje compreendo que aquele interesse pela vida política é pão feito em casa e vem de longe. Como lembrança estimada, guardo uma pequena folha de papel escrita à mão com o alfabeto Tifinah. Em reciprocidade, ofereço este texto ao Aghali e aos colegas Tuaregues , que me inspiraram. O caminho é longo – de curvas e encruzilhadas).

Luciane Ramos Silva

Luciane Ramos Silva é antropóloga, artista da dança e mobilizadora cultural. Doutora em Artes da Cena e mestre em antropologia pela UNICAMP. Bacharel em Ciências Sociais pela USP. Atua nas áreas de artes da cena, estudos africanos e educação.

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.