dezembro de 2015

APROXIMAÇÕES BRASIL-CARIBE VIA HAITI: OS CINEMAS DE ELICIANA NASCIMENTO E DANY LAFERRIÈRE

Liliane Braga

 

 

 

 

 

 

Eliciana Nascimento e Dany Laferrière são imigrantes. Ambos saíram de suas terras para viver em outros continentes. Ela, mulher negra brasileira; ele, homem negro haitiano. Ela partiu para os Estados Unidos; ele, para o Canadá.

 

Sendo cidadãos negros, pode-se falar em uma segunda diáspora: a primeira, com o comércio escravo pelo qual seus ancestrais foram tirados de África e levados para as Américas. A segunda, com a mudança para outros continentes onde foram buscar novas oportunidades.

 

Diásporas marcam identidades, o que faz de Eliciana e Dany artistas que compartilham algo a priori. Mas mais que isso, o intento aqui é falar das identidades marcadas por presenças de Caribe, aqui chamadas de caribeanidades. Eliciana não nasceu na região geográfica conhecida como Caribe, sendo brasileira. Mas Eliciana é baiana. O poeta e escritor martiniquenho Édouard Glissant afirmou que o Brasil é caribenho até a Bahia.  E talvez essa caribeanidade também esteja presente abaixo da linha do Nordeste…

 

Com a segunda diáspora, cada um deles logrou encontrar caminhos de que se beneficiassem e que agora marcam suas vidas/carreiras: Eliciana buscou o mestrado em Cinema na Universidade Estadual de São Francisco, e Dany se tornou jornalista, escritor, roteirista e cineasta.

 

São cineastas que produzem sem o apoio de grandes estúdios e estão circulando por mostras independentes, ou pelas bordas dos grandes festivais. Exemplos são a exibição do filme de Eliciana na mostra de curtas do festival de Cannes, em 2014, e as exibições tanto do filme dela quanto do filme de Dany Laferrière no New York African Diaspora International Film Festival (NYADIFF).

 

 

Dany já dirigiu dois filmes, além de ter colaborado nos roteiros de adaptações de livros seus já publicados em idiomas diversos – há edições brasileiras de obras de sua autoria. Nascido em 1953, ele pode estar duas gerações à frente dela – que nasceu em 1984 – mas esteve lidando com temas afins. Filme do mesmo período de How to conquer America in one night (Como conquistar a América em uma noite, 2004), tratado mais adiante, On the verge of a fever (tradução aproximada: No limite da febre, 2004) consta do mesmo box que pode ser comprado no website do NYADIFF sob o nome Films from a poet´s imagination (Filmes da imaginação de um poeta). Ambos, no entanto, sem tradução em português.

 

 

Em 2014, Eliciana concluiu o seu terceiro trabalho “solo” como diretora, o filme O Tempo dos Orixás (The Summer of Gods). Antes de rodá-lo, participou como co-produtora e cinegrafista do documentário Insurreição Rítmica (2008), dirigiu o documentário Hip-Hop in 7 lives (Hip Hop em 7 Vidas, Brasil, 2011) e, também em 2011, lançou O Dia que Matheus Nasceu, sua primeira narrativa de ficção.

 

As produções cinematográficas negras brasileiras já celebraram nomes como Zózimo Bulbul, Joel Zito Araújo, Jefferson De (para citar alguns homens de diferentes gerações do nosso cinema), Lilian Solá Santiago, e, contemporaneamente à Eliciana, Viviane Ferreira e Renata Martins.

 

Já o Haiti, teve na década de 80 a emergência do que pode ser chamado de um “cinema criolo haitiano”, com o poeta, dramaturgo, ator e diretor Rassoul Labuchin (radicado no Canadá), a também atriz e diretora Elsie Haas (formada na França) e Raoul Peck (que estudou na Alemanha), recentemente homenageado com uma mostra em São Paulo, na Galeria Olido. Este talvez o mais destacado internacionalmente. Tanto que, entre os atuais projetos de Peck, estão as filmagens da cinebiografia do jovem Karl Marx e de um documentário sobre o poeta do Harlem Renassaince, James Baldwin.

 

 

 

O TEMPO DOS ORIXÁS

 

O curta-metragem apresenta um olhar feminino sobre uma comunidade onde as cosmogonias afrodiaspóricas – que não dissociam seres humanos e natureza, mundo visível e invisível – permitem depreender outros saberes. Saberes esses protagonizados por mulheres e presentes na vida de diferentes gerações.

 

Cabe lembrar aqui que membros de comunidades de terreiros foram e são pejorativamente chamados de “bruxos”; “macumbeiros”, aprisionando a manipulação das forças da natureza em sentidos negativos a partir de perspectiva judaico-cristã-euro-ocidental. Cosmogonias africanas não mais se livraram dessa carga, usada para corroborar com a inferiorização e demonização perene das formas de ser e estar no mundo de africanos(as) e seus descendentes.

 

Apesar de serem de origem iorubá (ou ketu, na nomenclatura do candomblé), os Orixás, divindades do oeste africano cultuadas no Brasil pelos povos tradicionais de matriz africana, são cultuados também por povos de terreiro de matrizes congo-angola, provenientes da parte Centro-Sul do continente. O aspecto em questão é destacado na obra, fenômeno histórico afrodiaspórico[1] característico de filosofias africanas que buscam agregar em vez de fragmentar e separar.

 

O filme abre com a voz em off da personagem principal. A floresta, com todo o seu verde, acolhe e inclui os telespectadores. Pessoas estão reunidas, vestindo branco, a cor reverencial aos ancestrais. Uma auto-representação reparadora de imagens construídas por Ocidentes invisibilizadores de outras cosmogonias/cosmovisões. A protagonista do filme fala de memórias que a seguem por todo lugar: memórias afrodiaspóricas. Uma performance-oferenda para a Orixá Oxum envolve sons produzidos por palmas e percussão em uma cachoeira.

 

 

O mar – como lugar-símbolo do início de tudo – é reverenciado na figura de Iemanjá: “foi no mar que tudo começou e é por isso que cuidam do mar”, é a frase proferida por Lili no momento da oferenda à divindade da água salgada.

 

Em exemplo de cena em que os enigmas de Exu provocam a reflexão de Lili com relação às indissociabilidades humanos-cosmos-natureza e vida-e-morte, a câmera focaliza o chão, os pés de Exu estão pisando a terra, Lili aparece caminhando pela mata, em outro caminho. A risada alta de Exu é ouvida por ela, sem que ele possa ser visto. Lili olha ao redor e, quando vê a imagem dele e ouve sua risada, mexe a cabeça para os dois lados, usando o gesto (próprio de linguagens corporais afrodiaspóricas) em sinal de inquietação com suas atitudes.

 

Lili encontra um mokã (fio de um grosso trançado de palha) de Iemanjá na mata e o veste em seu pescoço, como em reconhecimento por um presente sagrado que a natureza-cosmos está lhe ofertando. Quartinhas de barro estão no chão da mata e aparecem no 1º plano, com Lili ao fundo. A mata no chão é de coloração roxa; já a mata atrás de Lili é verde, e a cena é composta com as mesmas cores dos fios de conta usados no pescoço pela avó de Lili, a mãe-de-santo do terreiro da comunidade retratada, Dona Rosa.

 

A cachoeira – habitat de Oxum na natureza – entra no quadro. A Oxum que se vê é uma visão de Lili – mostra a câmera que acompanha a jovem menina seguindo os passos de Oxum. Suas vestes estão envoltas em palha – vegetais já não verdes; matéria que se transfigura em nova vida, como os ancestrais – e os passos dela são mostrados em câmera lenta, com leveza, suavidade, próprias da divindade que é a dona do ouro e é relacionada com a concepção da vida (daí sua ligação com Nossa Senhora da Conceição no Brasil).

 

 

Essa cena e todo o desenrolar da história mostra ao telespectador que a criança Lili tem o dom da comunicação com o mundo invisível. E é por meio dela que Iemanjá cobra a realização de sua festa àquela comunidade, dando continuidade à tradição. Para apurar esse dom, Lili precisa passar por rituais iniciáticos pelos quais se conecta com o mundo invisível, por ensinamentos necessários para dominar esse dom. A figura de Exu no filme, com seu jogo de meias-palavras, ditos incompletos, enigmas que Lili se vê intrigada a desvendar, ajuda a desenvolver sua perspicácia diante de surpresas da vida, denotando outras formas de conhecer/acessar informações importantes.

 

Observa-se mulheres preparando farinha de mandioca artesanalmente; dona Rosa usando plantas medicinais para curar machucado em criança ferida; imagens de santos católicos compondo o altar no barracão/ambiente sagrado; reza reverenciando os caboclos (ancestrais indígenas), conhecedores das florestas… Saberes que têm como protagonistas figuras femininas e que estão espalhados em Brasil/Brasis, em Caribe(s), América(s)… Mas que lidos como “populares”, “folclóricos”, “sincréticos”, são entendidos como inferiores, são desprezados. E, com eles, são reprimidas as subjetividades de seres que foram racializados para serem segregados, para que se sentindo distantes de formas outras de estar no mundo, melhor acatassem a forma una-naturalizada do normativo humano-branco-euro-cristão-ocidental.

 

 

COMO CONQUISTAR A AMÉRICA EM UMA NOITE

 

A presença de orientações próprias da sociedade afrodiaspórica haitiana é sentida já na cena de abertura de Como conquistar a América em uma noite. Vê-se Porto Príncipe, capital do Haiti, a partir do conjunto de casas de uma comunidade que se espalha sobre uma região montanhosa. A câmera mostra um plano aberto e, em movimento ascendente, oferece a visão de toda a comunidade. Enquanto isso é o que se vê, ouve-se a música de fundo, iniciada com a percussão de um agogô, os sons das ruas, pessoas falando, carros passando, galo cantando. No interior de um cômodo, Gégé treina boxe, enquanto conversa com um amigo. Atrás de si, o parapeito da janela é usado de anteparo para um fogareiro com uma panela onde algum alimento é preparado. Do lado Norte do hemisfério, dois amigos haitianos são desafiados pelo inverno rígido e pela neve a aguentarem “mais um inverno” no estado do Quebec, Canadá, país no qual vivem como imigrantes há cerca de vinte anos².

 

O filme retorna ao Haiti: dia iluminado pelo sol dos trópicos. Sobre o que aparenta ser a laje de sua residência, Gégé está de costas para a câmera, contemplando o horizonte formado por casas que ocupam toda a extensão da montanha que há diante dele. Antes de se virar para atender ao chamado da buzina do carro que o aguarda para levá-lo ao aeroporto, Gégé salpica punhados d´água em três lugares distintos no chão. No quadro seguinte, aparece em um close na contraluz de perfil, como que fazendo parte da paisagem que está detrás de si, na qual se veem montanhas e o horizonte. A mudança é nítida: ele não mais observa o que está fora, ele está integrado ao Haiti. Nas sociedades negro-africanas, verter água ou cachaça ao solo é sinal de agradecimento, de oferenda para os ancestrais. Antes de partir para a América do Norte, Gégé manifesta sua gratidão e devoção às forças do mundo invisível, tal qual em cosmologia da África subsaariana, pela qual os reinos mineral, vegetal, animal e humano estão interconectados, dependendo todos uns dos outros.

 

As imagens de cada quadro do filme remetem a uma pedagogia da performance. O tio Fanfan prepara o jantar e, enquanto pega os utensílios, os legumes, os caranguejos que vai cozinhar, dança, canta, gesticula, faz piadas, dá risada. A dança e o canto expressam aspectos da identidade afrodiaspórica, a caribeanidade haitiana.

 

Gégé quer conquistar a mulher-loira/América – a qual revela ver com exotismo, já que as loiras “não tem a mesma raça, nem a mesma cor, nem a mesma religião” que ele. No carro, ao conduzi-la – sua primeira passageira canadense, em táxi que herdara do tio em Montreal -, Gégé responde às perguntas da passageira intrigando-a, uma vez que não lhe responde de forma direta, mas fazendo uso de charadas, pelas quais é preciso inferir a resposta. A maneira com que Gégé se comunica faz jus a essa herança da tradição oral que permeia as sociedades afrodiaspóricas, pela qual ditos, provérbios, enigmas, presságios e mitos constituem formas essenciais de comunicação. Candice, a passageira, está a caminho de uma emissora de rádio onde será entrevistada. Do carro, Gégé ouve a transmissão. Na entrevista, ela faz menção à alegria que sentira em contato com esse homem “misterioso” que a teria feito sorrir. Por esta cena, infere-se que a diferença da forma de comunicar entre afrodiaspóricos-haitianos seja impensável na ótica eurocentrada.

 

As sequências de imagens, sons e diálogos de Como conquistar a América em uma noite permitem reconhecer, aceitar e valorizar a diversidade na direção de culturas outras. A partida de Gegé, do Haiti, é embebida de movimentos: o carro trafegando na rua entre pessoas e suas formas de estar no mundo, e o movimento interno de Gegé, de olhar e traduzir sua leitura quanto aos que ficam, ao que está deixando e ao que está levando consigo, na escassa bagagem material, mas repleta em memórias e formas de ver e viver o mundo. A mulher que carrega a bacia com a sua quitanda equilibrada na cabeça; os quadros expostos em mercados a céu aberto pelas ruas; as frutas e hortaliças que circulam da terra às mãos em bancas móveis de mulheres comerciantes, desafiadoras do sistema vigente. As cosmovisões e os saberes negros-diaspóricos que emergem do filme são parte de patrimônios civilizatórios negro-africanos. Estão dentro dessa civilização expressões de comunalidades, regras de sociabilidade espontâneas. As manifestações de culturas africanas e afrodiaspóricas precisam ser lidas, ouvidas, sentidas como modos de ser, viver, estar no mundo, conformando filosofias, terapias medicinais, geografias, sociologias, historiografias.

 

O cantar e dançar de Fanfan Desroches cozinhando, não é lazer/entretenimento: é forma de estar no mundo. A pintura, a cestaria, a escultura que aparece no interior das casas e pelas ruas de Haiti, no filme, não são enfeites/souvenir: são expressões de cosmologia materializada. O livro de poemas publicado por Fanfan, na juventude, em seu país natal, e a poesia autoral abandonada no exílio norte-hemisférico, não é manifestação letrada/abstrata de sentimentos: é a essência de corpo e alma expressa com as palavras que traduzem estados de espírito para além dos léxicos.

 

 

 

CINEMA E PRÁTICAS DE REPRESENTAÇÃO

 

Como alerta o teórico cultural e sociólogo jamaicano Stuart Hall no artigo Identidade Cultural e Diáspora (1994), as práticas de representação implicam sempre em posições de onde se fala ou se escreve. E apesar de falarmos “em nosso nome”, quem fala e a pessoa de quem se fala nunca são idênticos, nunca estão no mesmo lugar. Isso porque a identidade não é um fato, mas uma “produção”, que nunca se completa, que está sempre no processo e é sempre constituída interna e não externamente à representação.

 

Por muito tempo, quem falou/escreveu sobre a população negra, não eram pessoas negras. Quem realizou filmes sobre “os negros” não eram negros. O que nos interessa agora é falar da experiência negra por meio de seus/suas realizadores(as), mas, mais que isso, desses negros e negras provenientes de países que partilham de identidades caribenhas e seguem se “diasporizando”, além de problematizar a participação brasileira nessas identidades.

 

O pensador jamaicano nos diz que identidades “são apenas os nomes que aplicamos às diferentes maneiras que nos posicionam, e por meio de que nos posicionamos, nas narrativas do passado”. Para ele, as maneiras pelas quais os negros foram sujeitados nos regimes dominantes de representação surgiram como efeitos de um exercício de poder cultural e normalização. Hall acentua: “fomos construídos por esses regimes [de dominação], nas categorias de conhecimento do Ocidente, como diferentes e outros”.  As histórias desses “outros”, contados pelos próprios, incluem narrativas cinematográficas que predominaram no país da indústria cinematográfica, Estados Unidos, e em países da Europa, mas feitas também por realizadores(as) africanos(as) e da diáspora africana. Identidades de diáspora são as que estão constantemente produzindo-se e reproduzindo-se na transformação e na diferença. E o caribenho está nas misturas de cor, pigmentação, tipos fisionômicos, de sabores, é o que está na cozinha (caribenha), em afirmações do autor. Trata-se de estética de cruzamentos que, afirma-se aqui, vê-se no Caribe geográfico e também no Caribe cultural desse nosso imenso Brasil, para além do Nordeste de que fala Glissant.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

NOTAS DE RODAPÉ

1  O adjetivo é usado em referência a proveniências de Diásporas Africanas: seres humanos e patrimônios culturais produzidos com os deslocamentos involuntários a partir do continente africano.

² Entre 1960 (período da ditadura de Duvalier) e 2006, o Québec (parte canadense de colonização francesa) teria recebido cerca de 75 mil haitianos. Após o terremoto, estima-se que 10 mil haitianos tenham imigrado para o Canadá (incluindo-se a parte inglesa do país). Fonte: http://www.mhaiti.org/media/communaute-haitienne (acesso em 31 de agosto de 2015).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Liliane Braga

LILIANE BRAGA é jornalista, mestre em Psicologia Social (PUC-SP), produtora cultural e fundadora da Quisqueya Brasil (projetos afro-diaspóricos de cultura e educação) www.quisqueyabrasil.com.br

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.