setembro de 2011

TRAJETOS*

Cuti

 

 

 

Jordi Burch
Sem título
Da série O rosto da paisagem
2009

 

 

 

 

Caminhávamos por entre as risadas afiadas. Naquele túmulo, nossa respiração era o sinal da teimosia que irritava o coveiro e os donos do nosso enterro. Estes exercitavam exorcismos os mais variados. Cada passo rumo ao Não-Ser era fabricado fora de nossa cova.

 

João hesitava, Nino resmungava, chutando a esperança que se enrolava faceira, ameaçando botes no chão escorregadio, e eu pensava em todas as possibilidades de não fenecer.

 

Caminhávamos, entretanto, respirando de teimosos por entre a densidade neblinosa do caminho.

 

Num dado momento encontramos um velho que fumava o amor num cachimbinho de barro feito com prazer. Dava passadas, ginga leve, em direção contrária à nossa. Sorriu e iniciou uma fala mansa, porém segura:

“Eles disseram tudo e vocês acreditaram. Só uma ponta que eles esconderam é que a respiração de vocês conseguiu segurar. Assim é a chamada civilização deles. Camisa-de-força no sentimento e cinto de castidade no gozo. Fizeram vocês remar a própria doença que se foi apropriar de vocês mesmos. Eu venho de lá do Não-Ser. Subi na vida, deixei de sambar, cantar, rir alto, dançar o interior, gozar no deslimite, meti a gravata na ganância… Se não fosse a teimosia do pulmão, tinha pegado uma doença ruim qualquer, daquelas que nem o dinheiro retido nos cofres da pobreza de se dar teriam dado jeito. Se quiserem continuar, continuem. Eu, de minha parte, estou voltando. Creio que ainda acho o caminho do cemitério. Chegando lá, vou escrever o seguinte epitáfio: Para de morrer. Só assim a humanidade renasce. O caminho tá cheio de piso falso, areia movediça, laço na espreita. Aprendi no tato”.

 

Dito isso, desapareceu, mergulhando na neblina em sentido contrário ao nosso. Começamos a tropeçar e a tossir. João soltou a voz e sua trajetória, de moleque engraxate à gerente de banco, contorceu-se brilhante em nossa frente, exibindo os seus tumores malignos. Filho de pai alcoólatra e mãe carola, extremamente frágil em sua expressão física, João foi desde cedo atraído pelo suicídio violento ou pelo seu contrário, o que alterava de tempos em tempos. O pai acabou sendo enterrado como indigente e a mãe morreu tuberculosa, sem antes contudo ter deixado de cumprir seu interno: meteu o filho e suas crises num colégio interno, com um tutor, a quem deu todo o dinheiro de um bilhete premiado. O desejo de viver desapareceu no garoto e a atração pelo suicídio tornou-se mórbida, lenta. Crescido, foi para o mundo. Seus desejos atrofiados logo transformaram-se em fonte de riqueza. Guardava dinheiro como se guardava para o amor. Estudava para galgar novos e mais compensadores postos. Gerente, casado, filhos-investimentos, propriedades, e eis que uma mosca-varejeira, verde, muito verde, alcançou seu peito e nele depositou os germes de uma paixão. Enfartou-se e foi ter comigo e Nino em um hospital.

 

A trajetória de João apagou-se, e ele se pôs a chorar. A minha acendeu-se rebolando. Tinha eu nascido num berço de lata dourada. Desde cedo, incentivado pela família, procurava o mundo branco. Nunca saí em escola de samba. Macumba? Gastei muito dinheiro em psicanalista, mas não dei obrigação de santo. Depois que comecei a namorar garotas brancas, passei a introjetar a paijoanitude que, logo após ter esposado uma daquelas, passou a ser uma profissão de fé. Eu era um negro bom. E foi com violência que ataquei meu filho mais novo naquela noite, quando ele trouxe a proposta de consciência racial para dentro de casa. Aquilo ameaçou-me por inteiro. Era uma ofensa à sua própria mãe. Ele seguiu seu caminho e eu continuei odiando meu destino de descendente de escravos, e tentando ajustar cada vez mais a forca do esquecimento. Até que a sístole se irritou com a diástole e fiquei entrevado. Minha trajetória se foi e fiquei frente a meus dois companheiros, com meu choro acumulado e antigo.

 

Nino, sua trajetória não surgiu? Perguntei.
– Nem vai surgir. Vocês estão enganados. Eu sempre alisei o cabelo com ferro quente. Alisei tanto que o ferro marcou o íntimo de mim mesmo. Preciso caminhar.
– Você viu, ouviu as palavras do velho que retornava? Viu sim! E por que insiste?

 

João tinha temor molhado nas palavras.

 

– Se vocês quiserem voltar que voltem. Eu preciso morrer. Não consigo. Vocês se esqueceram de que eu fui um comunista? Nunca, nunca vocês vão me convencer a fazer racismo às avessas. É contra a revolução, será que não entendem?
– Você está enganado! Gritamos.
– Não. Tudo que sinto contra os brancos é puro racismo. Eu não posso ser contra os princípios… Não, não adianta querer justificar nossa inferioridade racial tentando redescobrir a África, seja dentro ou fora de nós. Ela não passa de uma ignorante e atrasada que adormeceu muito em sua preguiça. Deixe-me em paz!

 

Foi um berro navalha a cortar o laço que nos unia a ele. Foi-se, os passos apressados, ao Não-Ser. Eu e João iniciamos o difícil caminho de volta. No percurso ouvimos vozes adolescentes. Uns diziam “vamos”, outros respondiam “não vou”. Havia choro entre as brumas. Pensamos nas armadilhas e artimanhas das alvas trevas, sobre as quais o velho havia nos alertado. Seguimos. Quando chegamos, depois de muito andar, debaixo de nossa cova, juntamos os ossos, pedimos à terra e aos insetos que nos desenvolvessem o banquete para o qual tinham sido convidados e procuramos a saída. Não demoramos. O velho nos havia deixado uma fenda iluminada para passar. Entramos, tropeçando em nossos espantos e demos por fim sob um asfalto. Escutávamos agitação de muitos passos. Rompemos o cascalho e o piche e saímos. Era 20 de novembro. Explodia um protesto contra o massacre de treze crianças de rua. Gente, muita gente. Um jovem de cabelo Black-power, fora de moda, gritava palavras de ordem.

 

Era meu filho.

 

 

 

 

 

 

 

*Texto publicado originalmente em 1995, na edição número 08 da série Cadernos Negros.

 

 

 

 

 

Cuti

CUTI (LUIZ SILVA) é doutor em literatura brasileira, poeta, dramaturgo, escritor e co-fundador do Quilombhoje. Publicou, dentre outros, os livros Contos crespos; Literatura negro-brasileira (ensaio); Negroesia (poemas) e Dois nós na noite (teatro).

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.