setembro de 2016

LITERATURA PRETA, PERIFÉRICA? CARÍCIA AO NOSSO LEITOR JÁ CANSADO DE PORRADA OU CHAMAR PRO MEL DE LABIRINTOS INCERTOS?

Allan da Rosa

 

 

 

 

Este texto foi originalmente publicado na edição especial da
Revista Contemporary And (C&)/O Menelick 2º Ato, em 2016,
com vistas a 32ª edição da Bienal Internacional de Artes de São Paulo.

 

 

 

 

ilustração Alexandre de Maio

 

 

 

 

 

 

Texto bordado por mãos pretas e que se esgueira e se finca em frestas urbanas, que assina do alto do escadão ou com os pés rente à lameira. Periférica em asfalto fértil, lutando pela história que contemple o ser maloqueiro, essa água de muitas bacias. Literatura atenta com o esquema tático da época, o que torna tudo vitrine. Que não tombe fácil ao intenso elogio da velocidade que hoje voga de ponta a ponta na linha de trem, nos teclados, na impaciência. (Delicada a época que textos de 10 ou 30 linhas são chamados de “textão”… logo voltaremos aos grunhidos…).

 

Literatura que contemple nossas contradições, nosso amor pelo quintal e pela rua, nossos rosnados e nossas lambidas na pata, porque seguir a matilha sem pensar o faro não é difícil. Há um ditado kongo que ensina: “Em grupo somos fortes, em multidão somos hipócritas”. Literatura que quebre as beiradas do previsível, que brinque na forma, prima da carta enviada da detenção, da charada, do gole cuspido amargo, da observação do mar. Que dance no ser pessoa, entre as pétalas e farpas daquilo que voga entre o tal “indivíduo” e a sociedade. Que não se vergue à pressão cavalar do momento: a de escrever pra ser ‘curtido’. Ou seja, uma literatura que não se contente com a foto no cartaz, mas sim com o texto nas veias. Uma letra que chama pra mãos dadas na feira, pro sol na manhã do domingo na favela, pro silêncio dos relâmpagos que brotam na intimidade da biblioteca, esta horta. Que se recitada nos saraus conduza também às dúvidas maceradas na raiva, em plena era de soberania das exclamações. Que se umedeça no cantar, na harmonia entre trompete e repinique, mas que busque melodia e ritmo nas próprias palavras do texto e faça de instrumento a eletricidade da imaginação e os labirintos do peito de quem lê.

 

Miséria populista é escrever apenas pra agradar. Tentação já tradicional da arte preta, compreensível de sul a norte após a escravidão oficial, é se enrugar e ressecar no chavão militante. Verbo pode ser primo dum toque de cavalaria no berimbau? O que em seu timbre, tom e ressonância abre sentidos variados para a diferença de cada pessoa que escuta, seja por seu tempo de roda e de pele ou pela condição na cidade, toque de baqueta, arame, moeda e cabaça avisando que é pra zarpar ou pra guarnecer, pra jogar manhoso ou matar na rajada de calcanhar. Jeito preto esse de revelar o segredo sem matar o mistério.

 

Literatura que dê contas às reflexões sobre o que seja comunidade, tão idealizada como se nalgum momento da história tivesse sido homogênea, apresentada como se fosse pouco complexa. São tantas as miras, é vasto o leque entre crença pura e ceticismo, texto pode ser sua morada? Se sim, teto eterno ou apenas pernoite de hotel?

 

 

São muitas sapiências e derrames que afloram na malocage dos textos de Akins Kinte, nas crônicas de lâmina cintilante de Jenyffer Nascimento, nas armadilhas da ironia lacônica de Dinha, na caneta de Fábio Mandingo e seus labirintos tripudiando com amargor ou traquinagem os cartões postais de Salvador, na malícia balançando contra a passagem do tempo das peças de Walner Danzinger, na majestosa molecagem e nas mágoas dos becos que conheceram os pés inchados de Maria Tereza. Isso que se mira e tanto se congela quando o entendimento é dificultado pela fala de um pedaço da gente preta que entra em universidades e passa a não ser entendido, dada a tanta quadradice na forma ou no vicio de usar termos quilômetros distantes das orelhas das ladeiras, becos e vagões. Vida que pintamos, que nos leva, nos arrebata e brilha na intimidade e que na literatura nos enreda pelo estilo, este imã, este gozo. O que traduz uma época ou um dedão que martelamos quando fabricamos nossas escrivaninhas. O que mora na pele do texto, nítida e sem segredos a desvendar, sem verdade que se esconda sob toneladas de detritos ou de enfeites. O que traz as encruzilhadas das perguntas elementares e que os cartazes da vitrine ou do facebook no máximo resvalam.

 

Literatura que pise, que pese e desatole mais cristalina da terra molhada e do asfalto duro de nossos fervos mais de dentro. Que no âmago da solidão nos demonstre como estamos emaranhados por dentro em muitos tempos de amanhã e de ontem. Comparar, identificar e estranhar com o que é do chão daqui e encarar a treta do que não cabe na simetria. Treta imensa mas necessária na faca do pensar. Pra além da pretice cartão postal ou da que chacoalha e arranca aplausos da plateia, pra além da “militância” que se arregaça em tempos de SIM X NÃO no facebook e seus linchamentos.

 

Tem hora que Ku Klux Klan e apartheid sul-africano explicam timtim por timtim o que enforca aqui, e tem vez que não. E é nesses pepinos que estão as tocaias, as argumentiras de quem ainda vomita a mesma e já antiga lógica que tudo é questão de classe. Os abismos entre o subjetivo, a “impressão” e a algema, tão concreta e apertada. A violência obstétrica que tem cor e sotaque e também CEP e pé rapado. Topar nossas contradições. Aí a literatura talvez seja uma fonte, uma vitamina, com seus enredos, giros e imprevistos. Somar às nossas orelhas calejadas e fortalecidas com o sangue dos raps, blues e jazz de lá, somar ao pulso dos batuques e poesias de incêndio e de sereno das quilombagens daqui, o que é história de africanias nas Américas, cheia de vãos que não cabem em bandeira fácil. E fortalecer nossas dúvidas. Refletir junto. Sem dar mais ouro pros barões, nem na ideia nem no bolso. Em caminhos brasileiros, nem a fuleragem das ideias de “democracia racial”, de mestiçagem harmoniosa e do “não somos racistas”, que não guentam dois minutos de realidade e não sustentam dois milímetros de cemitério, de porta giratória, cadeia, livros didáticos ou programas de TV. E também nem a ideia simplista (?) de sociedade bi-racial que talvez dê conta de realidades e discursos nos EUA mas que nem sempre contemplam a fervura e as mil frestas e saliências daqui, desses Brasis, de nossas quebradas e espelhos.

 

Diante da engrenagem que a todo instante aponta que somos algo entre animais, robôs e mercadorias pelos espinhos entre o controle remoto e os cassetetes fardados, a letra preta dança no desafio ancestral de organizar a roda e partilhar valores, éticas e filosofias, conjugar a missão de exclamar com a dádiva de poder perguntar. Limpar o embaço e fomentar compreensão dos porquês e dos jeitos de estarmos aqui, fazendo o que fazemos, trançando com razão e espírito as coordenadas de lugar e de hora, as partituras do peito e os mapas do desejo. Com sutileza na rasteira ou com a machadinha entalhada com primor e cuidado a cada linha. Como tanto debateu a negrada escritora já nos anos 80, em seus encontros com fome de construir crítica realizados em escolas ou nas cozinhas da Funabem carioca, que rendeu o livro “Criação crioula. Nu elefante branco”. Esse chute numa literatura que se enlaçasse em discursos prontos ou que se emporcalhasse com chavão, por curvas e imprevistos, também rendeu a soberania e grandeza das obras de Cuti e de Conceição Evaristo, que hoje nos apresentam as quenturas de quem pisou estradas só é acompanhado por quem não se vê, mas se lê.

 

Literatura preta e periférica encontre, perca, erre, embaralhe e se esparrame em gotas de encanto, do fedido no banheiro ao perfumado pro baile, do alegre de suor ao moído nos tornozelos de quem volta de longe com o beijo ainda nos lábios, do uniforme pegajoso de graxa ao aprender comer de palitinho, a literatura se faz literatura, vital, manga doce em que lambuzamos nossa inteligência e que é sempre a primeira vez, quando emaranha peito e cabeça, pulso e barriga, calos dos dedos e cabelos eriçados. Pelas teias vigorosas ou pelos fragmentos de diáspora negra, tesos ou murchos, aqui e ali as linhagens, a composição, a possibilidade de se largar do chavão com a observação, a criação, o estilizar. E aprofundarmos com gosto e 27tição nas muitas esferas de um revide e na história de cada palha dos nossos ninhos.

 

 

 

 

 

 

 

Allan da Rosa

ALLAN DA ROSA é historiador, angoleiro e pedagogo. Criador das Edições Toró. Autor de "Da Cabula" (Teatro), "Vão" (Poesia), entre outros títulos.

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.