abril de 2020

TÉCNICAS DE VIDA E MORTE: BREVES NOTAS PARA DANÇAR

Carmen Luz

 

 

 

 

 

 

 

fotos Cláudia Ferreira /
Temistocles Halfed

 

 

 

 

 

 

 

1

Com o intuito de produzir o primeiro de uma série de filmes documentários sobre os temas Dança Afro, Danças Negras e Para uma outra história da dança, realizei, em 2010, 2011, 2012 e 2013, um conjunto de depoimentos com artistas negras e negros de diferentes gerações, territórios, trajetórias e perspectivas acerca do corpo negro e de sua própria dança. Nesse período, em mais de uma ocasião, entrevistei Clyde Morgan, o lendário bailarino, músico, artista plástico, coreógrafo e professor afro-estadunidense, referência da dança moderna e contemporânea da Bahia nos anos 1970. O percurso de Clyde Morgan é constituído pelos conhecimentos e práticas corporais e etnográficas experimentadas nos continentes africano, sul e norte- americano; nele se destaca a profunda integração aos modos de vida, meio artístico e instituições baianas: ele esteve como diretor à frente do Grupo de Dança Contemporânea da Universidade Federal da Bahia, de 1971 a 1980, é filho de Oxalá, consagrado Ogan no Ilê Axè Opô Afonjá e membro-diretor do Afoxé Filhos de Gandhi. A beleza de seu percurso singular, relatado com serenidade e firmeza, foi se afirmando desde a primeira de nossas entrevistas até que de repente, uma pergunta não planejada, veio à tona em uma delas:

 

“Por que dançar?”
Ele respondeu prontamente:
“Por que dançar? Para não esquecer ou para lembrar”.

 

Um imediato silêncio finalizou a conversa.

 

É difícil sentir a força dessa resposta sintética, profunda, e a suspensão que ela deixou, sem pensar o seu chão ético, o seu enigma, a sua encruzilhada, a sua redundância afirmativa, que pode ser ouvida como apelo, até mesmo um grito, se levarmos em conta a contínua crueldade impingida aos corpos das pessoas negras, se atentarmos para a escamoteação secular de suas invenções, se considerarmos a exotização e a desqualificação de suas histórias, se mirarmos o estímulo à sua autonegação e, ainda, se observarmos o deliberado gosto brasileiro pelas formas coloniais de viver e de matar.

 

Pode-se verificar a grande quantidade de ideias, reflexões, articulações, tinta, saliva, imagens que, ao longo do tempo, têm sido produzidas para revelar e manipular a recusa do Brasil ao que vê quando se olha no espelho: uma imagem não-branca, não-europeia. Como também o muito que se fez e se faz para analisar e denunciar as artimanhas institucionais que elaboraram e edificaram políticas nacionais de embranquecimento, para mostrar como se continua imaginando, estimulando e impondo o uso permanente do branco como quadro de referências.

 

 

Mercedes Baptista (1921-2014): a primeira bailarina negra do corpo de baile do Teatro Municpal do Rio de Janeiro. 

 

 

Mencionar essas abordagens aqui, ainda que de maneira genérica, significa reconhecer o legado de suas contribuições ao esforço de interpretar a complexa realidade racial brasileira; significa deixar escapar “um riso irônico no canto da boca”, porque, mesmo sem citar, elas nos evocam o sistema branco-norte-europeu de dança cênica colonizadora há muito tempo praticado, disseminado e financiado no Brasil; elas nos trazem à memória o ano de 1946, quando a jovem negra Consuelo Rios, reconhecidamente talentosa, desejou, ousou, mas foi impedida de candidatar-se ao posto de bailarina do Teatro Municipal do Rio de Janeiro; assim como o ano de 1948, que marca a entrada da primeira bailarina autodeclarada negra a ser admitida e a suportar, não sem protestos, as cotidianas violências racistas nessa mesma instituição: Mercedes Batista; elas nos lembram, também, da crescente desigualdade social, econômica, cognitiva que estrutura a vida da maioria das pessoas negras, e dos diversos modos de operar a hegemonia com a dança:

“ Só a cultura leva à paz. Menina assassinada.

A gente coloca o filho para fazer inglês e balé, mas nem isso adianta. Meu pai sempre quis que eu fizesse balé. Eu sou a filha mais velha e então imaginava ele ver a filha de rosa, tutu…mesmo muito pequena eu tenho a lembrança do meu pai dizendo que ia me colocar no balé. Acho que guardei a lembrança porque era algo que eu também queria. O balé nos eleva, nos torna diferentes. O balé permanece o mesmo, mesmo centenas de anos depois. A meta do lugar a se chegar, o céu. Atingir os deuses.” (Lisboa, 2019).

 

Elas também nos levam a refletir sobre os usos e abusos das danças de favela, sobre a disseminação de imagens corporativas, ao fabrico desumanizador de corpos e coreografias descartáveis, as apropriações exotizadas da criatividade, da ousadia e seu poder regenerador para uso doméstico, ao seu refluxo: a explosão da insolência e a invenção e reinvenção constante de técnicas de dança.

 

 

Trecho de “Um filme de dança” (2013), documentário dirigido e produzido por Carmen Luz.

 

 

Portanto, tais abordagens não nos deixam esquecer: ao lado de tudo o que nos mira e nos atinge com suas técnicas de morte, um conjunto de outras práticas, de ataque e resistência, marcam as existências com suas presenças e fundam mundos. Quando não são elas mesmas estéticas, é por esse campo que se esparramam; lentamente as vemos deslocando postos que se queriam fixos, se insinuando por entre regras e valores que não raro as desprezam, instituindo permanentemente políticas de movimento constante. Elas são, ao mesmo tempo, reveladoras e revelam “outras formas de vida, outras tradições de representação”.

 

 

2

A “solução” de Clyde Morgan para a pergunta “Por que dançar?” nos coloca imediatamente diante de alternâncias e alternativas: dança-se por um princípio que se desloca entre a obrigação como retribuição e a comemoração, ou entre a reivindicação e a retrospectiva. A resposta do dançarino nos situa, também, frente à intensificação do lembrar, um lembrar fortalecido pela ação afirmativa sobre a negatividade do esquecer. Não esquecer, então, pode ser entendido como um alerta, uma chamada à responsabilidade para que a pessoa portadora da tecnologia e das técnicas que levam o corpo a dançar o faça de acordo com este preceito. Não esquecer seria o toque da razão, o argumento forte que carrega a obrigação, o compromisso com a vida que para se concretizar necessita trazer de volta, ao tempo presente e de forma compartilhada, o que se tornou passado ou, ainda, o que habita o presente, mas invisivelmente.

 

“Por que dançar? Para não esquecer ou para lembrar”, Clyde Morgan.

Há, portanto, uma ética pela qual e com a qual se dança ou se deve dançar, uma ética da memória incorporada naquele e naquela que dança no instante em que se dança. Uma ética corporal que evoca, repassa, celebra e expõe o que não pode ser esquecido, que atualiza os antepassados, dá a ver a herança recebida, fortalece as possibilidades de se manter e, ao mesmo tempo, de se ir adiante. Desse modo, não se pode esquecer e deve-se lembrar da força comunitária e de tudo o que lhe dá fundamento.

 

 

Cena de “Um filme de dança” (2013).

 

 

A variedade de práticas desse dançar pode ser verificada, por exemplo, na vida vivida pelas tradicionais famílias negras brasileiras em seus diversos e diferentes espaços de convivência, especialmente em seus espaços litúrgicos; ou ainda dentre tantos exemplos – nas práticas da dança kigodoro (Tanzânia) e mapouka (Costa do Marfim), ancestrais das complexas formas negras contemporâneas de rebolar e afrontar, a partir da retroversão/anteversão – deslocamento da pelve para trás e para frente e da exibição calculada da hiperlordose lombar; e, ainda, das técnicas que deixa à mostra a singularidade do corpo – geralmente feminino que dança, ao mesmo tempo, que propicia alto rendimento anatômico, estético, de celebração e de ousadia.

 

“É muito importante saber quem somos, de onde viemos, do que somos compostos para poder estender de maneira ampla e corajosa a nossa relação com o universo, senão eu posso correr o risco de me perder”, Rui Moreira (Bailarino, coreógrafo e investigador de culturas).

 

Dança-se com a comunidade, para a comunidade e pela manutenção de sua existência. Dança-se para celebrar, propiciar e ser propiciado por encontros amplos, para estabelecer e manter laços intergeracionais, interpessoais, de afeto, para ativar, enfim, espaços de convivência sensível. Dança-se pela consciência de ser filho ou filha, neta, neto, bisneto, bisneta… e pela certeza de se vir antes daqueles que seguem: o coletivo é o centro da experiência, a comunidade, um corpo único e o relacionamento entre os vivos e os mortos, sua imanência. Os indivíduos existem porque a relação dinâmica com o grupo no espaço e no tempo os constitui e os fortalece. Dança-se, então, por fazer parte e porque dançar integra o jogo de retribuições e o equilíbrio comunitário.

 

 

 

 

 

3

São muitos os enigmas, as perversidades coloniais e encruzilhadas pós-coloniais a transitarem na dança de um corpo negro, desde sua criação à sua recepção. As estratégias negras de resistência, de ataque às invisibilidades, formuladoras de críticas “de fronteira” e tudo o que subsidia os desejos de libertação, o autoconhecimento, a construção e a reconstrução das pessoas negras passam pela noção de ancestralidade.

 

A ancestralidade se estabelece, assim, como uma categoria marcante em parte significativa da produção (performance, coreografia, discurso oral e escrito) de artistas negros e negras profissionais de dança cujas trajetórias foram iniciadas ou consolidadas nas duas últimas décadas, sejam as suas “linhas” as chamadas dança afro, dança contemporânea, dança pop-urbana1 ou dança popular. A ancestralidade se apresenta nas referências explícitas às origens africanas e à diáspora negra, na adesão à mitologia e à religiosidade afro-brasileiras, na busca por saber-se e reconhecer-se negro ou negra e, também, africano/africana, de refazer elos rompidos através de processos de cura que agregam trabalho artístico, de pesquisa em rede, conscientização e empoderamento. A necessidade de conhecer suas origens e de cultuar os antepassados se espalha por pesquisas artísticas em torno de movimentos, gestos e personalidades, bem como uma identificação e, de modo prático, uma certa continuidade na relação com as formas de fazer herdadas. Pois:

 

 

Cia. Étnica de Dança (RJ).

 

 

“É muito importante saber quem somos, de onde viemos, do que somos compostos para poder estender de maneira ampla e corajosa a nossa relação com o universo, senão eu posso correr o risco de me perder”. (Rui Moreira, 2013)

 

Deve-se assim, e para além, não esquecer e lembrar a necessidade e o desejo de encontrar (-se), operação indissociável da vida plena no presente, da construção de futuros, de equidade e justiça. As políticas da ancestralidade, o relacionamento dinâmico e amplo com diferentes dimensões de ancestralidades diversas, evidenciam a ideologia comum que orienta a conduta e a multifacetada produção contemporânea de artistas negras e negros de dança.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

notas

1 Dança pop-urbana: Nomeio assim as danças de alta performance e grande disseminação, criadas a partir da apropriação e bricolagem de danças ancestrais popularizadas pela tradição, oriundas de territórios negros e periféricos, recriadas, ressignificadas e mercantilizadas nos contextos das cidades e processos de globalização.

 

 

 

 

 

 

 

Carmen Luz

CARMEN LUZ é coreógrafa, realizadora audiovisual, diretora de teatro, autora e gestora de projetos de arte-educação e artivismo. É mestre em Arte e Cultura Contemporânea pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Foi diretora artística do Centro Coreográfico da Cidade do Rio de Janeiro. É docente na Escola de Cinema Darcy Ribeiro e na Faculdade de Dança Angel Vianna. É curadora do Encontro de Cinema Zózimo Bulbul. É fundadora, coreógrafa e diretora artística da Cia. Étnica de Dança e integrante da Orquestra dos Pretxs Novxs.

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.