abril de 2010
A “GISELLE”, DE DADA MASILO: UMA ESTÓRIA DE AMOR DECOLONIAL
Rainy Demerson
fotos John Hogg
No apagar das luzes do ano de 2024, uma triste notícia rompeu o mundo das artes: a precoce passagem da jovem e brilhante dançarina e coreógrafa sul-africana Dada Masilo (1985-2024). Em sua memória, apresentamos um excerto do texto A Giselle de Dada Masilo: uma estória de amor decolonial, escrito pela artista da dança e pesquisadora Rainy Demerson, atualmente professora no Departamento de Artes Criativas e Cênicas da Universidade das Índias Ocidentais, em Barbados, país insular da região caribenha.
Demerson analisa a reinterpretação feita por Dada Masilo da obra Giselle, originalmente apresentada em 1840 pela Ópera Nacional de Paris e que recebeu diversas interpretações ao longo da história da dança cênica. A autora destaca como Masilo adota uma abordagem decolonial na narração da história e dá ênfase à perspectiva feminina. Em vez de seguir a representação tradicional de Giselle como uma vítima frágil e autossacrificial do amor, Dada a transforma em uma ancestral africana forte, em busca de vingança e autodeterminação.
O gesto decolonial de Dada Masilo permanece entre nós!
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A GISELLE, DE DADA MASILO: UMA ESTÓRIA DE AMOR DECOLONIAL
A Giselle, de Dada Masilo, faz com que o público aplauda não a renúncia a si própria da heroína, mas sua autodeterminacão. Na versão de Masilo da história, Giselle é abandonada por sua comunidade, mas é acolhida pelas wilis, que a ajudam a se vingar de seu antigo amado, Albrecht. Embora ela morra com o coração partido, no reino ancestral ela se torna mais poderosa do que em vida. A combinação de movimentos fortes, precisos e brilhantemente executados com uma narrativa empoderadora torna a performance eletricamente vibrante.
Ao transformar Giselle de vítima frágil do amor incondicional em uma poderosa ancestral africana, Masilo cria uma heroína que é ao mesmo tempo familiar e fantástica. É importante notar que o vocabulário de movimento de sua produção não é ballet. Masilo utiliza passos das danças Tswana, da África do Sul, vocabulários de dança moderna e pós-moderna americana e europeia, gestos cotidianos e suas próprias criações de movimento. Reinventado por Masilo, o amor-próprio de Giselle, forjado em relação com tradições indígenas e diaspóricas, transforma o romance europeu em uma história de amor decolonial.
Dada Masilo, no The Dance Factory, em Joanesburgo, em ensaio do espetáculo Giselle (abril, 2017).
Assim como a Giselle de Coralli e Perrot era um arquétipo feminino de sua era romântica, a Giselle de Masilo representa a mulher sul-africana ideal na era #Fall. Sua Giselle não está interessada em seguir regras ou se oferecer como sacrifício. Ela é determinada, e sua vingança reflete a raiva de uma geração que vivencia os fracassos socioeconômicos da Verdade e Reconciliação.
A Giselle, de Masilo, usa seu corpo para experimentar prazer e estabelecer limites. No primeiro ato, o amado Albrecht, de Masilo, caminha pelo palco, e um grupo de mulheres flerta com ele. Com sorrisos maliciosos, elas estendem os braços em sua direção, inclinam a cabeça para trás e deixam suas mandíbulas caírem de forma sedutora enquanto ele recua, afastando-se delas. Elas riem e batem as saias, executando uma série de chassés para frente e para trás, impulsionados com a pelve.
“(…) Masilo propõe um personagem cuja sexualidade e curiosidade sexual são componentes de seu amor e devoção, mas também aspectos de sua força como pessoa. A Giselle de Masilo rompe com a Giselle clássica, cuja paixão leva à sua queda”.
Dançarinas fora do palco até se juntam com sons provocantes. Masilo deixa claro que Albrecht é desejado, mas também que as mulheres possuem desejo sexual e autonomia sobre esse desejo. Isso não é algo promovido nos ballets do século XIX e representa uma revisão dramatúrgica que reflete um feminismo africano.
Em uma frase recorrente, Masilo e as dançarinas movem as mãos e os quadris da esquerda para a direita várias vezes antes de rodar a cabeça e os quadris em um círculo percussivo, como mãos marcando no relógio. Os braços seguram as saias que sobem sobre os joelhos enquanto giram. Ao nomear a dança como “o flerte” e atribuir os movimentos liderados pela pelve a Giselle, Masilo propõe um personagem cuja sexualidade e curiosidade sexual são componentes de seu amor e devoção, mas também aspectos de sua força como pessoa. A Giselle, de Masilo, rompe com a Giselle clássica, cuja paixão leva à sua queda.
A Giselle de Masilo substitui o estereótipo da jovem desprezada e sacrificada por um chamado aos ancestrais para fortalecer uma mulher guerreira.
Coreografada por Dada Masilo, Giselle teve sua estreia mundial em Oslo, na Noruega, no dia 4 de maio de 2017 e, além de Masilo, foi performa pelos dançarinos Kyle Rossouw, Llewellyn Mnguni, Tshepo Zasekhaya, Khaya Ndlovu, Liyabuya Gongo, Ipeleng Merafe, Nadine Buys, Zandile Constable, Thabani Ntuli, Thami Tshabalala e Thami Majela.
Em todo o mundo, a cultura expressiva negra é fluida e dinâmica por natureza e necessidade, revelando como os métodos de criação pré-coloniais se tornam métodos de resistência pós-coloniais. A Giselle, de Dada Masilo, exemplifica isso com suas expressões complexas da vida contemporânea sul-africana. Masilo indigena Giselle ao incorporar vocabulário indígena, mas também decoloniza a performance ao centrar filosofias e práticas sociais africanas. Através do jogo de significados, da invocação de ancestrais, da alusão a sangomas, da desconstrução de gênero e do empoderamento das mulheres negras, essa obra altera radicalmente o efeito da narrativa do ballet. Como um dos seus intérpretes me disse, “essas estratégias coreográficas permitiram que as dançarinas fossem elas mesmas na obra”. Brilhantemente construída, a obra demonstra o amor de Masilo pela narração de histórias através da dança, algo que ela vivenciou tanto na Europa quanto na África. No entanto, a Giselle, de Dada Masilo, vai além de uma mera reiteração de um velho conto romântico. Ao centrar as formas de saber e ser da África do Sul negra sob ameaça neocolonial constante, essa obra personifica o amor decolonial.
#fall – Hashtag oriunda da era de manifestações que começam em março de 2015 , originalmente dirigido a derrubada da estátua comemora a figura de Cecil Rodes, na universidade de Cape Town. Tal campanha tornou-se conhecida ao redor do mundo e liderou um movimento global pela descolonização da educação na África do Sul.
OBS: Esta é uma versão editada e reduzida do texto originalmente publicado no Dance Research Journal e autorizada pela autora.