maio de 2025
SALLISA ROSA: DO BARRO AO CAOS, DO CAOS AO BARRO
Nabor Jr.
FOTOS mandelacrew
(capa) Terra que volta a terra
Esculturas de piso em cerâmica
Dimensões variadas
2024
A cultura, compreendida em seu sentido lato, enquanto um conceito que estimula a convivência e a sociabilidade entre as pessoas, estrutura todo o pensamento vanguardista que alicerça o premiado projeto arquitetônico do SESC Pompeia, em São Paulo, idealizado por Lina Bo Bardi e sua equipe, que transformaram uma antiga fábrica de tambores que ali existia para criar o imponente complexo cultural tal qual o conhecemos hoje. De certo modo, Eixo Terra, exposição de Sallisa Rosa (1986), em exibição no mesmo SESC Pompeia, também reflete sobre a questão do convívio. Porém, partindo de uma proposição que transcende a relação entre seres humanos para questionar o extrativismo desordenado, inconsequente – e por vezes criminoso – de uma pseudo-modernidade que, ao desrespeitar a fundamental fruição entre a “convivência humana” e os elementos primários – e primordiais – da natureza, como a água e a terra, fragilizam, com maior intensidade, a viabilidade da existência dos povos que ocupam a base da pirâmide social (pobres, pretos, indígenas, ribeirinhos e rurais).
A crise climática e seus profundos impactos na vida contemporânea são temas recorrentes – mas ainda assim urgentes – nas reflexões de diversos artistas visuais ao redor do mundo no século XXI. Eixo Terra é uma provocação estética e conceitual que se edifica a partir do ambientalismo, porém, Sallisa consegue iluminar o debate sobre a proteção e conservação do meio ambiente de modo criativo, sensível e coerente com sua trajetória artística e pessoal.
Detalhe da obra Desvio (2024), instalação em hiperadobe (234 X 127 X 534 cm).
Importante ressaltar que a exposição está inserida dentro do projeto Ofício (edição Barro), idealizado pelo próprio SESC, e que prevê na utilização dos corredores do Galpão das Oficinas (onde a exposição de apresenta), a possibilidade de estimular nos visitantes, além da apreciação das obras em si, a investigação em torno do amalgama dos processos artesanais de criação.
Natural de Goiânia, mas há um bom tempo radicada em uma aldeia indígena urbana e vertical, no bairro do Estácio, na cidade do Rio de Janeiro, onde a vida em comunidade é o marcador que define a relação entre seus habitantes, Sallisa, inspirada pela sofisticada tradição indígena na cerâmica brasileira – mesmo que esta não seja uma proposição presente em sua fala – materializa em Eixo Terra o viver comunitário e a artesania em várias camadas. Seja na construção das obras em si, fruto do trabalho coletivo, como no preparo estritamente manual dos materiais orgânicos que as compõe. Há também em Eixo Terra uma intenção expográfica onde a relação obra/visitante é mediada pela sensibilidade do toque e do cheiro, tal qual a experiência sensitiva proporcionada no interior de uma oficina propriamente dita (lugar onde se cria, elabora, fabrica e/ou conserta coisas).
Sallisa Rosa
Essa proposição expositiva sem fronteiras entre obra e visitante nada mais é do que a materialização do conceito de imersão, recorrente em exposições de arte contemporânea, mas na paisagem terracota edificada em Eixo Terra, essa intenção não soa forçada ou desnecessária. Deslizar as mãos pelas texturas das obras e sentir os cheiros dos trabalhos é imergir no discurso proposto pela artista, onde a (re)conexão com a ancestralidade do território e suas organicidades se apresentam como uma perspectiva de futuro possível.
“a cultura do barro se manifesta no universo que vai das relações sociais, à natureza e a cosmologia. É a memória da terra com a memória da gente”
Ao questionar o extrativismo predatório de recursos naturais do meio ambiente (apontando especialmente para as grandes empresas e nações) utilizando para tal a materialidade dos elementos da terra; tendo o barro, o pau a pique, os tijolos de adobe, as taipas de pilão e o hiperadobe enquanto símbolos da constituição ancestral do território, Sallisa subverte e alerta. Pois tenciona, ora em contraposição, ora em diálogo com a arquitetura do Galpão de Ofícios, a própria urbanidade claustrofóbica da cidade de São Paulo e a viabilidade da vida nas grandes cidades, onde o concreto abundante e o uso desenfreado da água e da energia elétrica mediam a existência humana.
Registro feito no dia da entrevista com Sallisa Rosa, semanas antes da abertura da exposição Eixo Terra. Na imagem, detalhe da obra Natureza via vingar (2024). Pedaços de cerâmica costurados com fios de cobre (150 cm de diâmetro).
Logo na entrada da exposição, somos recepcionados por um grande instalação circular que sugere representar um globo terrestre. Todo craquelado, de aparência seca e áspera, composto por uma série de pequenos pedaços de cerâmica costurados uns aos outros com fios de cobre, anunciando a agressividade da relação humana predatória diante da utilização dos recursos da natureza. O mundo seco que se apresenta em A Natureza vai vingar, nome da obra em questão, não somente é o cartão de visitas da exposição como também inaugura a proposição conceitual de tudo o que está por vir.
Rio de adobe
Instalação em tijolos de adobe
1,42 X 2,90 X 3,56 cm
Rio de adobe, que simula um rio que “nasce” dos tijolos aparentes do galpão para percorrer os corredores da oficina, “A selva é eterna”, uma composição espiralar erguida com pequenas esculturas em cerâmica, e A natureza fica, uma instalação em paredes de pau a pique com vídeo mapping são obras onde Sallisa, por mais subjetivo que seja o conceito de belo, consegue estabelecer uma composição harmônica ao olhar. Há volume, proporção, movimento e equilíbrio das formas, em uma homenagem a longa tradição da cerâmica indígena brasileira.
Outro ponto de inflexão de Eixo Terra é o diálogo com a escrita sofisticada e potente de Tatiana Nascimento, responsável pelo acompanhamento curatorial da exposição. No folder que acompanha a exposição, Nascimento sublinha: “a memória de américa foi, feito água, se esvaindo, virando nuvem, virando rio suspenso. a memória de américa é uma história sólida, desgastada, colonizada como a terra. a memória de américa é a própria terra: seu território. as ruínas da memória. a água que vai arruinando os perais de terra despida de raízes. metodicamente. a cidade que vai arruinando lençóis freáticos vestindo a terra de manilhas. ruidosamente. é com potaria volumosa que sallisa rosa investiga em matéria de terra e de água caminhos simultaneamente hiperexpostos e invisibilizados de um projeto que se aponta civilizatório, progressista, mas que é de degradação”.
Eixo Terra e sua paisagem laranja terracota erguem-se como um gesto de vigilância e convite para a construção de uma outra relação com os elementos fundamentais para a vida de todas as formas de vida. Do barro ao caos. E do caos ao barro novamente.
RASTROS DO PERCURSO DE UMA ARTISTA NÃO ARTISTA
Interessante observar que o prestígio conquistado por Sallisa no contexto da artes brasileiras hoje, foi rápido. Formada em Jornalismo, a artista passou a compartilhar seus trabalhos nas redes de forma mais rotineira a menos de dez anos. Suas primeiras exposições datam de pouco mais de cinco anos. O fato de não ter um aprendizado formal em artes visuais, somada as suas origens no cerrado e sua vivência híbrida entre territórios rurais e indígenas, semearam raízes profundas em seu fazer artístico que, mesmo se abastecendo de referenciais ancestrais (e existenciais) pré-industriais, não se furta as questões do nosso tempo. Muito pelo contrário.
Detalhe de uma das obras da série Facões, inspirada na historia de resistência da liderança indígena Tuíra Kayapó (1969-2024)
Pesquisando sobre Sallisa, encontramos o ready made como uma das portas de entrada para um pensamento estético que homenageia os saberes e as tecnologias dos povos originários, tanto enquanto projeto político de existência coletiva, como também na defesa das questões ambientais e na relação com a natureza enquanto inspiração criativa. Na série Facões (2019), conjunto de fotografias de facões que, em formato de lambe-lambes foram colados nas ruas, esse amalgama começa a despontar. ”O facão é popularmente um símbolo de resistência, mas também de sobrevivência, porém pode ser usado para ferir, mas também para abrir caminhos nas matas, é muito utilizado para trabalhos rurais e colheitas, é u tipo de utensílio dos mais antigos que existem. Inspirada na índigena Tuíra Kayapó, que em 1989 colocou um facão no rosto do presidente da Eletronorte como ato contra o impacto ambiental da construção da usina Belo Monte, no Pará, recorro a diversos outros facões que são utilizados por pessoas que conheço para marcar a cidade e que acredito que, de alguma maneira são capazes de afetar a ordem pública em diversos sentidos”, disse a época. Curiosamente, este instrumento (o facão) também viria a exercer fundamental importância na construção de suas futuras instalações em madeira.
Tuíra Kayapó coloca um facão no rosto de um diretor da Eletronorte em 1989, na emblemática fotografia mencionada por Sallisa. (Foto: Protássio Nêne/Estadão Conteúdo)
“(…) na arte povera, não a forma, mas os próprios materiais com que a obra é feita tornam-se os verdadeiros protagonistas dos discurso”, Olívio Tavares de Araújo. O OLHAR AMOROSO – Textos sobre arte brasileira (2002).
Ainda em 2019, durante a 2° Bienal do Barro, em Caruaru, Saliisa viria a apresentar a vertente artística que, por ora, melhor sustenta as intenções funcionais de suas obras, e que hoje podemos ver em Eixo Terra, a arte povera produzida de modo coletivo, de espírito comunitário e afetivo. “A cultura do barro se manifesta no universo que vai das relações sociais, a natureza e a cosmologia, é a memória da terra com a memória da gente. Com a obra raízes a intenção é criar um lugar de memoria por meio de um enraizamento participativo. A obra começa no corpo e a partir do manuseio do barro as raízes vão compor fluxos energéticos entre corpo e terra”, disse a época da criação da obra apresentada na 2° Bienal do Barro.
Processo de criação da obra raízes, apresentada na 2° Bienal do Barro, em Caruaru: “intenção foi criar um lugar de memória por meio do enraizamento participativo”
Tendência artística que atingiu relativa predominância na primeira metade dos anos 1970, e que apresenta similitudes com a cerâmica, a arte povera, movimento artístico de origem italiana, se caracteriza pelo uso de materiais cotidianos, como terra, pedras, madeira, galhos, retalhos e outros materiais do dia a dia considerados menos nobres. Além de igualmente rejeitar ao máximo a utilização de materiais industrializados, Sallisa se une em conceito com a arte povera por entender a obra de arte como um processo, não como um produto final, tendo a manipulação das matérias como fundamental experiência para o exercício das reflexões que propõe. A escultura e a instalação, portanto, apresentam-se enquanto manifestações artísticas propícias a essa intenção que, inclusive, questiona a própria objetificação da obra de arte enquanto mercadoria para, em contraposição, valorizar a relação vivencial com a arte.
A selva é eterna
Esculturas em cerâmica
24 unidades de 20 X 20 cm
ENTREVISTA
Nas semanas que antecederam a abertura da exposição Eixo Terra, Sallisa Rosa estava a mil, pra lá e pra cá pelos corredores do galpão das Oficinas de Criatividade do SESC Pompeia. Atualmente vivendo em Amsterdam, na Holanda, onde desde 2024 participa de uma residência artística no Rijksakademie van beeldende kunsten (Academia Nacional de Artes Visuais), Sallisa passou algumas semanas dos meses de janeiro e fevereiro em São Paulo, produzindo obras inéditas e montando a exposição Eixo Terra. Foi neste contexto de efervescência criativa e muito trabalho que Sallisa nos recebeu na ensolarada manhã do dia 13 de fevereiro para uma conversa que transcrevemos a seguir.
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OMENELICK2ATO: SALLISA, POR FAVOR, NOS CONTE UM POUCO SOBRE O PROCESSO DE GERMINAÇÃO E CULTIVO DESSA EXPOSIÇÃO, COMO SURGIU A IDEIA DE TRAZER A QUESTÃO AMBIENTAL DO MOVIMENTO DAS ÁGUAS SUBTERRÂNEAS COMO CENTRALIDADE CONCEITUAL DA PROPOSTA EXPOSITIVA E COMO ESTÃO SENDO ESSES DIAS DE PREPARO E FABULAÇÃO DESSE TERRITÓRIO.
SALLISA ROSA: Há uns dois anos atrás eu li uma matéria na revista Science que falava sobre o movimento das águas subterrâneas no planeta. E essa matéria trazia muito a relação de como a humanidade poderia estar alterando o eixo de rotação da Terra por causa do processo de irrigação. Por que durante o processo de irrigação do solo são movidas, artificialmente, gigatoneladas de água de um lugar para outro. E eu acho que, especialmente, pelo fato de eu ser de um território como Goiás, tenho na memória uma paisagem visual muito vinculada ao agronegócio. E essa é uma referência que trago para pensar a relação humana com a terra. Não sou uma cientista, não entendo nada desse assunto, mas fiquei pensando muito sobre essas águas do interior do planeta. Quando a gente pensa em aquecimento global, por exemplo, a gente pensa nas calotas polares derretendo, nas queimadas… coisas visíveis. E aí eu fiquei pensando muito nos aquíferos, assim, como lugares mágicos. Por que quando eu li essa palavra “gigatoneladas”, ou melhor, “dezenas de gigatoneladas de água” sendo movimentadas, eu pensei: “gente, isso é uma violência muito grande!”. Fiquei imaginando o maquinário agrícola necessário pra mover tanta água de um lugar para outro. E isso está alterando o peso do planeta. Mas essa movimentação subterrânea, ao mesmo tempo, é uma coisa muito invisível, porque a gente não está vendo. Mas a gente consegue ver, por exemplo, que tem um rio em um lugar e que, tempos depois, esse rio seca. Mas a gente não está vendo o que esse processo de produção de alimento está movimentando de fato nessas águas internas. Ao mesmo tempo, fico pensando nesse espaço no interior do planeta e o que vai acontecer com esse vácuo que fica dessa água que é jogada de um lugar para o outro, que ao mesmo tempo cria um processo de desertificação que a gente está vendo. Muitas voçorocas também estão aumentando em várias cidades nessas crateras, enfim…
OM2ATO: E SOBRE AS ESCOLHAS DOS MATERIAIS QUE UTILIZOU PARA CRIAÇÃO DAS OBRAS E DO PROCESSO DE CRIAÇÃO DOS TRABALHOS EM SI, PODE NOS CONTAR UM POUCO?
SR: Fiquei pensando muito sobre como mexer com a água é, também, mexer com a terra. Porque, quando eu penso o planeta Terra, mesmo que olhando de longe a gente veja um planeta azul, ele não é um planeta água. Então eu estou pensando muito também como a própria materialidade da terra, do barro, não é somente terra, e sim terra com água. O barro e a argila são terra com água. Então eu estou querendo trazer nessa exposição a terra em várias materialidades. Por exemplo, tem a cerâmica nesse planeta craquelado (a artista aponta para a obra Natureza vai vingar, 2024), feita com esses cacos de cerâmica de trabalhos anteriores que eu estou reaproveitando pra essa obra. E também faço esse trabalho que é o trabalho de coleta de terra. Toda argila que eu uso, eu coleto em algum lugar. Então eu sempre sei de onde que vem a terra. Eu não compro a argila num saquinho plástico, numa lojinha que eu não sei de onde que vem, que está todo processado. Teve até uma vez que brotou alguma coisa de uma argila que eu deixei num canto. Eu falei: “nossa, é muito vivo!”. É uma terra também que dá muito trabalho de manusear, porque a gente tem que fazer essa coisa de tirar as pedras, a matéria orgânica, o lixo que também tem nessa terra, mas é uma terra muito viva. Nesse momento estou fazendo uma residência artística em Amsterdam, e lá, pela primeira vez, fui comprar essa argila de saquinho. (…) mas aí eu fui pegar essa argila no saquinho e falei: “gente, nem sujou a minha mão”. E não tinha cheiro de terra. Realmente é chocante a diferença dessa terra coletada na natureza com essa terra plástica, ela é muito mais fácil de trabalhar, limpinha e tal, mas é outra materialidade. A terra que a gente está trabalhando aqui foi toda coletada, a terra do tijolinho de adobe, por exemplo, veio do acampamento do MST (Movimento Sem Terra). Então tem essa parceria que eu faço com a galera do MST com quem já trabalho há alguns anos. A arquiteta que trabalha comigo, que é a Bianca Walber, a gente já tá juntas há 5 anos, então ela sempre faz a expografia. E ela é do assentamento do MST, a família dela também, então a gente tem essa parceria de coletar a terra lá, as pessoas que estão me ajudando também são pessoas do MST e da aldeia aqui do Jaraguá, então tem sempre uma preocupação de estar com pessoas que pensam e vivem o território de modo coletivo também.
OM2ATO: ALÉM DE VOCÊ JÁ TER NOS DITO QUE ESTÁ VINDO AO SESC TODOS OS DIAS DESDE QUE CHEGOU À SÃO PAULO, É NÍTIDA SUA PARTICIPAÇÃO ATIVA NO PROCESSO DE MONTAGEM DESSA EXPOSIÇÃO. DIGO ISSO POIS OBSERVEI SUA INTERAÇÃO COM AS PESSOAS E A ESPAÇO DESDE QUE CHEGAMOS AQUI HOJE CEDO. ENFIM, GOSTARIA QUE NOS FALASSE SOBRE A SUA RELAÇÃO COM A MONTAGEM DA EXPOSIÇÃO, QUE NÃO DEIXA DE SER UM MOMENTO DE CRIAÇÃO TAMBÉM, DE ADAPTAÇÃO, RESILIÊNCIA…
SR: Estou trabalhando com várias materialidades da terra. Que são a cerâmica, o tijolo de adobe, o pau-a-pique, a taipa de pilão e o imperador. Então são cinco materialidades diferentes de trabalhar a terra e a água que acabam por formar um novo território também. As pessoas falam assim: “suas obras são muito grandes, muito espaçosas, muito imersivas…”, e fiquei pensando mesmo que eu estou criando territórios, assim. Mesmo que seja fictício, temporário, eu estou criando um território. As pessoas falam que é o prédio da Lina. Mas agora é o prédio da Lina e da Sallisa. Então, estou intervindo na arquitetura de alguma maneira.
A terra centra e expande
Esculturas de parede em cerâmica
8 unidades de dimensões variadas
2024
Já o trabalho de montagem é muito artesanal. E é sempre uma negociação muito grande. Porque, as vezes, quando eu vou fazer um trabalho em um museu, geralmente a instituição tem uma equipe de montagem, e eu que trago a minha própria equipe de montagem. Porque é algo muito específico. Usamos muito pau-a-pique, e a galera do MST faz mutirão toda hora, toda hora estão construindo casas, então, assim, é uma outra lógica coletiva de montar. Então eu trouxe a galera e a gente está montando juntos. Não tem um “equipe de montagem”, é uma equipe múltipla que faz uma coisa muito específica, mas é uma equipe de amigos, e a gente já está juntos há alguns anos, temos uma intimidade com a materialidade que eu acho que é bastante diferente.
OM2ATO: PORQUE DA PROPOSIÇÃO DE UMA EXPOSIÇÃO IMERSIVA?
SR: Quando eu pensei em fazer esse rio de adobe, eu pensei: “as pessoas vão poder sentar também”. Acho importante as pessoas entrarem em contato assim. Poder sentar, usar… saber que não é só para ver e apreciar de longe, mas realmente interagir com a materialidade. Especialmente no SESC, que não é bem um museu. Tipo, as pessoas que passam aqui estão indo no dentista, por exemplo, e passa aqui e vê a exposição, outras trazem as crianças para brincar, nadar, sei lá, fazer um monte de coisa… então é um público muito diverso, e eu acho isso interessante pra pensar uma exposição. Também tem um trabalho do educativo no desenvolvimento da mediação aqui bem legal, então estou bem feliz em fazer essa exposição nesse território. E também porque aqui nessa parte tem a coisa dos ofícios, das oficinas… e eu gosto muito de pensar a arte como ofício porque eu gosto de fazer as coisas do início ao fim. A gente coleta a terra, a gente transporta a terra, a gente pega uma madeira reaproveitada e faz a forminha de adobe e aí tem essa coisa que eu acho que é muito do ofício mesmo, da manualidade, da artesania… a gente faz tudo do início ao fim. O bambu, por exemplo, a gente colhe o bambu, faz um tratamento no bambu, cortamos e montamos o bambu. Então tem uma coisa que é muito do ofício. Trazer essa exposição pra cá é muito interessante.
Hiperadobe: técnica de bioconstrução que utiliza sacos de terra compactada para construir paredes, oferecendo uma alternativa sustentável e econômica à construção convencional.
Uma outra coisa interessante é que nós estamos montando muita coisa aqui mesmo, direto no espaço. Então, a exposição já começou na verdade. Tem gente que vem sempre ao SESC e ontem, quando nos terminamos as esferas, as pessoas comemoraram: “Vocês terminaram! Depois de tantos dias”. Então nós estamos trabalhando no local, tem a parte de cerâmica que eu já fiz, mas a parte de instalação as pessoas tem acompanhado a gente. Essa convivência com o espaço é bem legal. Tipo, a gente está morando aqui. Já conhecemos as pessoas que vem, as senhorinhas e senhorzinhos que frequentam aqui pela manhã…. a gente já conhece todo mundo e estamos de fato ocupando o espaço aqui durante esse tempo.
OM2ATO: VOCÊ PODE NOS CONTAR UM POUCO MAIS SOBRE O PROCESSO DE PESQUISA E COLETA DE DADOS PARA A MATERIALIZAÇÃO DA SUA PROPOSIÇÃO EM “EIXO TERRA”, ESPECIALMENYE APÓS TOMAR CONHECIMENTO DESSA QUESTÃO DAS MOVIMENTAÇÕES SUBTERRÂNEAS DE ÁGUA PELO HOMEM?
SR: Eu fiquei pensando muito nesse movimento, nesse desequilíbrio térmico, da água, dessa gigatonelada de água que é jogada de um lugar pro outro. Tem um preenchimento de água em determinado espaço, e quando essa água é retirada de lá, fica um buraco. É uma coisa muito invisível, a gente não está vendo, não temos a dimensão. Eu fiquei procurando muito esses maquinários agrícolas para ver a dimensão desses tubos, canos… e fiquei pensando. Até por isso muitas das obras eu fiz a partir dessa referência tubular. E eu chamei a Tatiane Nascimento para fazer o texto curatorial, e achei muito interessante o texto dela porque ela trás essa violência que invade a terra… praticamente um estupro mesmo, que entra, que tira, então é um texto bonito ao mesmo tempo. Por ela também ser de Goiás, a gente tem essa referência do agronegócio muito presente. E eu quis fazer obras grandes mesmo, porque eu acho o agronegócio muito grande e de alguma maneira tem uma briga conceitual dessa tecnologia, e o tijolo de adobe funciona, a taipa de pilão funciona, o pau-a-pique é uma tecnologia que funciona. Então, todas essas tecnologias com a terra que eu estou trazendo criam também um conflito com a própria arquitetura da Lina Bobardi. Por que o cimento, o concreto, a gente não sabe quanto tempo vai ficar. E essa tecnologia da natureza tem a durabilidade necessária pra gente viver e depois voltar tudo pra terra. Quer dizer, não tem lixo aqui na nossa montagem. E isso é muito raro. Geralmente em uma montagem de arte, você tem que botar caçamba, um monte de lixo especial e outras coisas. Aqui, tudo o que sobra a gente coloca no saco de ráfia e manda de volta pra terra. Então é uma tecnologia muito grande. Outro dia uma pessoa falou: “Nossa, é muito arcaico”. Mas eu falei pra pessoa que na verdade é futurista. Nós não estamos gerando lixo. E a gente está assim… a gente é jovem, e de repente vem um senhorzinho aqui e diz: “nossa, eu já mexi com isso quando eu era jovem. Dá muito trabalho”. Eu acho muito forte você pensar que, na verdade, o arcaico é futurista.
Eixos
Esculturas em cerâmica
Esferas com 20 cm de diâmetro
OM2ATO: NA OBRA LABIRINTO, QUE VOCÊ CHAMOU DE INSTALAÇÃO PARTICIPATIVA, APRESENTADA NA EDIÇÃO DE 2022 DA FRESTAS TRIENAL DE ARTES, EM SOROCABA, É POSSÍVEL OBSERVAR TANTO SEU INTERESSE PELA COLETA DE MATERIAIS VARIADOS COMO MATÉRIA-PRIMA PARA A EDIFICAÇÃO DAS SUAS OBRAS, COMO TAMBÉM SUA RELAÇÃO COM ELEMENTOS DA NATUREZA, TAIS COMO BAMBU, CIPÓ, GALHOS, FOLHAS, ARGILA… COMO É PARA VOCÊ TRABALHAR COM ESSAS MATERIALIDADES, TEXTURAS E CHEIROS QUE SÃO VIVOS E POTENTES POR SI SÓ?
SR: Eu gosto muito da textura da terra. Eu sou uma coletora. E aqui na exposição a gente trabalha com pau-a-pique, madeira, bambu… tudo que tem aqui veio desse trabalho de coleta. Pra fazer o labirinto de “Eixo Terra”, por exemplo, a gente decidiu comprar só parafuso, e o resto tudo a gente foi coletar, andando pela cidade, mexendo nas caçambas e coletando tudo.
Sobre o manuseio do material, eu considero que estou aprendendo. Tem uma coisa de prática, e sempre que alguém vai construir uma casa eu tento colar junto para aprender… então é uma coisa que eu estou aprendendo. Meu pai também tem essa coisa de ser meio catador. Então eu estou fazendo e estou aprendendo na realidade. Não é uma coisa que eu já sei. Tem uma questão coletiva também, de muitas mãos, que agregam muitas outras experiências. Tem essa galera do MST que eu já trabalho, a galera constrói casa toda hora. Tem o Luquinha, da Aldeia do Jaraguá, que veio fazer uma esfera redonda que disse: “ah, na aldeia a gente fez uma agora há pouco tempo de 8 metros”. Então a gente vai trocando e aprendendo. Até porque não é um tipo de formação artística da universidade, e eu trabalho muito com pessoas que não são da área das artes também. E isso é uma outra coisa muito interessante, porque é um outro conhecimento. São pessoas muito da prática e não estão relacionadas a universidade. E as pessoas até me perguntam quando querem indicar assistente e eu pergunto: “essa pessoa sabe usar o facão? Sabe subir uma parede?”. Porque tem que usar outras ferramentas e saber outras coisas. O que é muito interessante de pensar dentro desse lugar do fazer artístico que vem de um outro lugar. Todo mundo é artista aqui na equipe, mas com outros tipos de prática. E isso compõe legal pra gente pensar as obras, o cuidado com a materialidade…
OM2ATO: QUAIS OS DESAFIOS DE CRIAR TERRITÓRIOS DENTRO DE TERRITÓRIOS JÁ CONSTITUÍDOS? QUER DIZER, COMO EDIFICAR UMA PROPOSIÇÃO ARTÍSTICA QUE SE DESEJA CONTÍNUA, A PARTIR DO EFÊMERO, DO PASSAGEIRO, VISTO QUE AS EXPOSIÇÕES TEM COMEÇO, MEIO E FIM, MAS A IDEIA LANÇADA ALMEJA A CONSTÂNCIA?
SR: É um desafio muito grande. E acho que essa pode ser uma tecnologia que a gente tem. Estar em movimento, seja por contexto de migração, diáspora, nos temos que criar o nosso ninho onde a gente está, até por questão de sobrevivência. E São Paulo precisa muito refletir sobre outras formas de pensar a habitação, o território, a vida em comum, onde a gente vive. Assim que cheguei na cidade estava a maior chuva, vários alagamentos, enfim… A gente vê que está insustentável. Já a terra tem um diálogo melhor, uma convivência melhor com a água, ela suga a água… Uma convivência que o asfalto não tem. Faz mais sentido ainda construir esses espaços em lugares para a gente pensar sobre isso.
Terra que volta a terra
Esculturas de piso em cerâmica
Dimensões variadas
2024
Costumo dizer que a terra chama. Você vê uma parede de cimento você não quer pegar. Agora, você vê qualquer coisa de barro, de terra, você que pegar. E eu fiz coisas para as pessoas poderem pegar mesmo. E a terra tem uma termodinâmica, uma temperatura… meu corpo está com uma temperatura, a terra, o tijolo, estão com outra e a gente troca essa energia, que é térmica, e aí quando a terra tem essa informação, que é do lugar, que é do acampamento do MST aqui de São Paulo, é uma troca de informação mesmo. As senhoras, os senhores que passam aqui, quando eles veem tudo isso, eles começam a lembrar do filtro de barro, da moringa, do forno que eles faziam, da casa de pau-a-pique que eles moravam… então tem muita memória também de muitas pessoas que são de outros estados, de outros lugares, do interior… Acho que a terra chama essa memória, mesmo. As pessoas se lembram, as pessoas parecem ter essa necessidade mesmo instintiva, de ver a terra e querer se conectar com essa terra. Querer tocar, pegar, sentir…
Uma coisa interessante que as pessoas tem falado aqui é do cheiro da terra. As pessoas falam: “nossa! Senti um cheiro de terra e vim ver”. O cheiro da terra, nesses ambientes imersivos, está provocando uma sensação nas pessoas.
Enfim, pensar tudo isso e essas relações não é uma coisa do passado. É uma coisa do futuro. O futuro vai ser possível se voltarmos a isso o que as pessoas estão chamando de passado. Porque está insustentável. Eu gosto de pensar nesse insustentável, nesse desequilíbrio, compensando nessa água e nessa terra que está sustentando os nossos pés nesse lugar onde estamos pisando. A exposição se chama “Eixo Terra” justamente para pensar esse desequilíbrio do planeta.