abril de 2013

LENNA BAHULE: SER, ESTAR E PERTENCER

Nabor Jr.

 

 

 

fotos Addiodato Gomes
Anna Kumamoto

 

 

 

 

 

Conectando o ocidente negro e decodificando as mil e uma áfricas espalhadas mundo a fora, jorrando em paredes, palcos e notas musicais a melanina que colore, incomoda e fascina, apresentamos hoje uma entrevista com a jovem cantora moçambicana Lenna Bahule. Desde de novembro de 2012 no Brasil, onde passa por uma temporada de estudos e apresentações na cidade de São Paulo, semeando novas conexões, descobrindo sonoridades, cheiros e sabores do sempre relusente pomar musical tupiniquim, ela fala sobre sua experiência – como moçambicana – em ser, estar e também pertencer a cultura afrobrasileira, pelo menos por ora, entre outros afins, achados e porquês. São as Áfricas que por aí existem, para além do próprio continente africano, influenciando e inspirando a cena artística mundial quase que em sua totalidade.

 

 

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O MENELICK 2° ATO – Lenna, primeiro gostaria que se apresentasse, falasse um pouco sobre sua vida antes de chegar ao Brasil, suas influências e referências artísticas na infância e adolescência.

LENNA BAHULE – Nasci em Maputo, capital de Moçambique, em maio de 1989. Ainda consegui encontrar a década de 80 (rs). O meu pai sempre foi um bom ouvinte de música. E além de ter sido Engenheiro de Som nos anos 80, foi também colecionador de discos em vinil, cd’s e fitas cassetes de grandes nomes da musica daquela época (e antes). Desde Michael Jackson, Quincy Jones, George Duke, Lionel Richie, Supertramp, Pink Floyd, Spyro Gyra, até composições clássico-modernas tocadas por orquestras sinfônicas e música moçambicana da velha guarda, que nos seus gigs de engenharia de som ele conseguiu registar.

 

E quando nasci meu pai fez de mim a sua “companheira de partilha musical”. Lembro-me bem que – as vezes até com uma certa relutância da minha parte, mas que hoje agradeço – passar horas e horas, até altas horas da madrugada a ouvir musica com ele na sala de casa. Até minha mãe (muitas vezes) vir chamar nossa atenção pelo horário, pelo barulho e porque eu tinha que dormir cedo.

 

Ele me explicava com muito entusiasmo cada um dos instrumentos que faziam parte das músicas. A diferença entre um instrumento e outro, a sonoridade, a estrutura, e eu ficava ali a criar imagens no meu subconsciente de como seriam esses instrumentos na realidade. Isso para mim foi um treino infalível porque mais tarde comecei a fazer essas sessões sozinha, e passava tardes e noites inteiras fechada na sala a escutar música, a aprender as letras e a conhecer melhor os instrumentos. Na verdade, isso também contribuiu muito para o meu aprendizado do inglês, pois a maioria das músicas estavam em inglês.

 

Quando mais tarde fui a escola de música, a ENM (Escola Nacional de Música de Moçambique), aos 5 anos, inscrita pela minha mãe, que tinha esse sonho, foi tudo um pouco mais “meio preguiçoso”. Sempre fui meio relaxada para estudar, com dificuldades de concentração e superar isso foi um desafio enorme na escola de música. Até que no 4o ano parei de ir sem que meus pais soubessem. Foi o meu professor de piano, Tiago Langa, quem ligou para eles os avisando sobre minhas ausências. Assim, voltei a fazer as aulas muito contra a minha vontade, até que finalmente (para meu alivio na época) terminei o 7o ano, e não queria saber de música para nada. Porque achava tudo muito difícil.

 

Eu queria na verdade é ser médica cirurgiã e abrir uma clínica privada com uma amiga para atender as pessoas necessitadas! (rsrs). Que bom lembrar disso!

 

Foi então que no Dia Internacional da Música, tive que fazer uma apresentação com o elenco da escola de música na associação dos músicos de Maputo. Um rapaz me ouviu cantar e convidou-me para ser uma das vocalistas da banda que ele estava a formar com outros amigos. A banda chamava-se NDZILO, e eu fazia o lead vocal em dueto. Ficamos juntos por cerca de 3 anos.

 

Desde então foi só caminhada e curiosidade em descobrir mais sobre a música, mesmo sem saber se era realmente isso que queria para mim. A ideia de fazer algo que agradasse as pessoas e sentir satisfação ao fazê-lo já me parecia bastante interessante até então e decidi continuar a “fingir- me” de cantora.

 

Fui fazendo vários trabalhos de colaboração com outros artistas moçambicanos até que finalmente ganhei asas para experimentar um trabalho meu, solo. Foi no dia 10 de novembro de 2006, no Café Bar Gil Vicente, uma tradicional casa que promove noites de música ao vivo na cidade de Maputo. A partir daí, não parei mais! Com muitos desafios, decepções e grande força de vontade fui continuando porque sentia um prazer enorme naquilo que estava a fazer. Na verdade cheguei até a entrar em grandes choques com os meus pais por causa de horários tardios e notas baixas na escola. Os papéis se inverteram: a escola estava a ficar em segundo lugar e a música pouco a pouco a conquistar o primeiro.

 

Em 2008, entrei para uma uma banda chamada TP50 da qual faço parte (mesmo à distância, agora) até hoje. Formada por moçambicanos e que toca música brasileira. Desde MPB à chorinho misturando um pouco de teatro, poesia e danças moçambicanas. Nessa banda tive o meu primeiro contato com a música brasileira. E meu primeiro desafio foi cantar Desafinado, de Tom Jobim, que tive que aprender em uma semana. Estar nessa banda me incentivou a levar a música um pouco mais a sério. Então comecei a construir uma carreira de forma mais formal, ainda que estivesse na UEM (Universidade Eduardo Mondlane) cursando Ciências Biológicas.

 

Cada vez mais fui me dedicando a música e perdendo o interesse pelo meu curso, então, em 2011, escondida de meus pais, tranquei a minha vaga na universidade e fiquei o ano inteiro a fazer música. Foi neste ano que por uma bênção (porque não tinha a mínima ideia de por onde começar nessa nova área), entrei para a banda Nkhuvu – a banda que acompanha o Stewart Sukuma (premiado cantor e instrumentista moçambicano). Foi um ano extremamente bom. Viajei o ano todo, consegui investir mais tempo na minha carreira de cantora e na ideia de viver apenas de música. E firmei-me como artista. Criei independência total dos meus pais… até que ganhei asas e coragem pra decidir expandir os meus horizontes e conhecer o mundo.

 

 

OM2°ATO – Esta não é a primeira vez que vem ao brasil profissionalmente. Conte um pouco sobre sua experiência anterior por aqui e por qual motivo regressou?

LB – Em setembro de 2011, estive em Maceió (AL) com o Stewart para participar da II Festa Literária de Marechal Deodoro. Embora estivéssemos em numero reduzido – complementamos a banda com músicos locais – foi uma ótima experiência.

 

Retornei em novembro de 2012. E vim agora por vários motivos mas, principalmente, além da simples curiosidade pelo país, vim pela música. A harmonia, composição e rítmica da música brasileira. Desenvolver o canto em função dessas áreas, aprender a música corporal, conhecer as vivências brasileiras e suas relações com Moçambique e, acima de tudo, criar um intercâmbio cultural.

 

 

OM2°ATO – Sei que você tem planos de lançar um EP em breve, com músicas próprias e com a participação de músicos de Moçambique e da Europa. Fale um pouco sobre este trabalho, quando ele será lançado e quais artistas participarão?

LB – Bem, este Ep (Extended play) é uma forma das pessoas poderem conhecer a música da Lenna Bahule. Gravar um álbum leva o seu tempo e sua gestão. Não só financeira como também de recursos logísticos. Estou também no momento a enriquecer o meu repertorio e quero que o meu primeiro bebé oficial seja a minha marca, a minha cara e que eu me identifique 100% com ele, assim como quem for ouví-lo.

 

Então, este Ep será uma espécie de introdução, onde irão constar algumas das minhas primeiras composições e trará uma mistura de afro- jazz, vocal e improvisação que é também um foco meu como vocalista. Será um Ep com cinco faixas produzido pela Siquir Music. Num set-upcom Helder Gonzaga (baixo), Celso Paco (percussão), Deodato Siquir (bateria) e David Bäck (piano). O Siquir e o David Bäck moram em Estocolmo, na Suécia. O Siquir é também o produtor do Ep e fundador da Siquir Music.

 

Pretendemos lançá-lo no final do mês de abril e as faixas estarão disponíveis para quem quiser ouvir e comprar na internet. O Ep ainda não tem nome. Estou aberta a sugestões! (rsrs). Nunca fui boa de dar nomes. Até mesmo as músicas que componho acabam ganhando nomes bastante aleatórios. Ou nomes do que a música me faz lembrar pela sua exigência técnica, enfim.

 

 

OM2°ATO – Atualmente, o que os moçambicanos, de uma maneira geral, conhecem e consomem da produção cultural brasileira?

LB – Bem, o sertanejo universitário, o funk carioca, o axé. Artistas como As Meninas, É o Tchan, Ivete Sangalo, Michel Teló, alguns Mc´s de funk, Mulher Melância – que teve um show numa das renomadas discotecas do país com bilheteria esgotada e tudo -fazem parte do repertório dos djs moçambicanos em festas.

 

Em termos de televisão, eu diria que cerca de 50% a 60% do que passa nas televisões moçambicanas é produto brasileiro. Desde os programas de entretenimento como Ana Hickman, Gugu, Rodrigo Faro, Raul Gil (há muito tempo). Tem os infantis tais como Sítio do Picapau Amarelo e alguns desenhos animados dublados em português do Brasil.

 

Há também as novelas e seriados (da Globo e da Record, principalmente) que ocupam grande parte dos horários da TV moçambicana durante o dia. As mexicanas também, embora não sendo brasileiras, mas pela dublagem ser em português do Brasil, nós meio que as associamos como um produto brasileiro. Na verdade nós temos um canal chamado Record Moçambique (rsrs), como se fosse um genérico do canal brasileiro, mas com o conteúdo e realidades moçambicanas.

 

A igreja protestante Universal está a tomar conta do país! Estou dramatizando, mas é real. Cada vez mais canais nacionais aderem cerca de 3 a 4 horas por dia da sua programação com a Igreja Universal. Não sei o quanto esta igreja faz parte da cultura brasileira, mas é o que a gente recebe do Brasil e associamos automaticamente. Mas também, não é de todo um drama. Música romântica (uma categorização nossa) como Roberta Miranda, Roberto Carlos, Joana, Alcione chegam lá. Até porque a Roberta e a Alcione já fizeram shows super concorridos em Moçambique.

 

Enfim, artistas como Chico Buarque, João Bosco, Hermeto Pascoal, Gal Costa, Adriana Calcanhoto, Tom Jobim, Seu Jorge e outros, são conhecidos pela maioria dos apreciadores de música, músicos e pesquisadores em geral. Infelizmente o pouco se sabe da cultura afrobrasileira, que é na verdade, pelo que senti desde que aqui cheguei, a verdadeira identidade do Brasil, é meio encoberta por de baixo do tapete. Ainda assim o Brasil é visto com muito bons olhos. E a comunidade brasileira que lá tem – que não é pequena – é muito bem acolhida.

 

 

 

OM2°ATO – Como foi a experiência de trabalhar com o Stewart Sukuma, um artista consagrado em Moçambique e que também possui uma bem-sucedida carreira internacional?

LB – Trabalhar com o Stewart foi uma das melhores escolas que tive. Em todos os sentidos. Desde a musicalidade, a arte de ser artista, ao lado business da arte, a diferença artista-indivíduo, as relações interpessoais, como gerir uma banda, situações adversas, e como se auto “resgatar“.

 

Além de ter aprendido muito com ele e com a banda Nkhuvu – que é a banda que lhe acompanha (na minha opinião uma das melhores, senão a melhor banda de Moçambique), pude no tempo em que estive na banda descobrir o meu caminho como vocalista e artista de uma forma geral. Estar no Nkhuvu foi crucial, se não determinante para minha decisão em seguir na música. Estive na banda por um ano e meio e tomei notas de como certas coisas deviam ser feitas adaptando-as aos meus planos. Isso foi importante demais, pois quando tomei a decisão de sair da banda, não foi de todo um drama e medo de ‘Oh! O que farei da vida, agora?’. Saí mesmo e no momento certo. Já sabia o que devia fazer a seguir para dar continuidade a minha carreira.

 

 

OM2°ATO – Voltando a sua experiência no Brasil, como está sendo estudar canto no Conservatório Souza Lima?

LB – É quase um sonho realizado. Pois o Souza Lima também é uma escola que ambicionava muito fazer parte dela. Ainda que seja uma bolsa curta, só o fato de estar naquele ambiente já me faz sentir muito mais confiante e produtiva. Na verdade é mais a sensação de poder estudar o que sempre quis estudar, música, canto e voz como instrumento. A sensação é muito boa.

 

 

 

OM2°ATO – Do Brasil, para os Estados Unidos, ou melhor, do Conservatório Souza Lima, em São Paulo, para a Berklee College of Music, em Boston, ainda em 2013. o que pretende encontrar em Boston? Seu objetivo é seguir os passos de Stewart Sukuma, que também passou pela Berklee?

LB – (rsrs) Bem, não dá para copiar tudo, né! Cada um tem seu trajeto de vida, suas experiências, suas ambições e seus dramas. Senão, onde está a originalidade?

Enfim, tenho me preparado para a Berklee desde 2008, quando ouvi falar pela primeira vez. Passei por uma fase de pesquisa, contemplação da ideia de estar lá, coragem para me inscrever, exercício psicológico para caso não conseguisse entrar… um processo longo. Em Boston, além de belas amizades artísticas, procurarei viver uma experiência para a vida. Estar num ambiente onde a música está presente 24 horas por dia, sete dias por semana é um estado de graciosidade e paz total para mim.

 

 

 

OM2°ATO – Você tem uma bela voz, tão suave aos ouvidos que parece massageá-los. Mas percebo que suas músicas são muito orgânicas, quero dizer, o que ouvimos em boa parte das suas interpretações são fragmentos da sua voz. Para mim, esta característica fica bastante evidente em músicas como Vagueando os Caminhos e My Favorite Things, por exemplo. Trata-se de um estilo de cantar?

LB – Digamos que sim, e que não. Eu pretendo que as pessoas vejam a Lenna Bahule não apenas como uma cantora intérprete – simplesmente uma pessoa que canta uma canção, uma letra, uma melodia da música, uma composição, enfim. Mas sim como vocalista – uma pessoa que usa a voz como seu instrumento numa composição, pois a voz é também um instrumento. Assim como o pianista, baterista, baixista, usam os sons que os seus instrumentos produzem, sejam eles quais forem, a voz também desempenha esse papel. É meu foco conhecer, explorar e usar esses sons na música como sendo um complemento de toda a composição musical.

 

Além, disso, o meu foco como artista, leia-se músico, é também a composição musical de forma “terapêutica”. Em que a música cria imagens no subconsciente despertando assim sentimentos necessários à cada um que as ouve. Quando componho, procuro sempre visualizar antes a imagem do som final. Jogar as melodias em função do sentimento. Na verdade, raramente sigo a ordem natural das coisas começando pela voz (letra) ou parte instrumental. Crio sempre o conceito primeiro, a imagem, o sentimento que a música irá trazer e depois adiciono gradativamente os detalhes. Não diria que é um estilo, de todo. Mas sim, uma forma de me expressar…

 

 

OM2°ATO – Como você analisa o mercado fonográfico brasileiro neste pouco tempo em que está aqui? Digo com relação a música independente. Tem visto coisas que lhe agradam?

LB – Confesso que não investiguei muito. Mas pelo que me tem chegado, acho que os artistas que usam a produção independente estão a fazer uma movimentação muito boa. Hoje em dia, as redes sociais são cruciais nesse processo. Eu própria faço uso desses recursos.
A maioria dos grupos e núcleos artísticos dos quais pude conhecer, são grupos que tem seguidores fiéis e que dessa maneira fazem passar a sua mensagem. Falo de Família Gangsters, Kiko Dinucci, Núcleo Contemporâneo/ Casa do Núcleo, Afroelectro e vários outros.

 

 

OM2°ATO – Malaika é uma composição sua? Em qual idioma você a interpreta?

LB – Malaika é uma canção popular na África, em que são normalmente atribuídos os créditos de composição ao músico queniano Fadhili William. E está em Swahili. A versão que está no Soundcloud fiz para a minha inscrição para o Conservatório Souza Lima. E depois de ter feito uma jam da música com uns amigos aqui em são Paulo, achei interessante fazer uma versão mais estruturada e inclui-lá no repertório. Além, é claro, de ser uma música lindíssima.

 

 

OM2°ATO – E para finalizar, uma perguntinha fácil (sic). Gostaria que falasse o nome de um artista moçambicano e um artista brasileiro da sua predileção.

LB – Isso é muito difícil! (rs). Adoro tantos. Mas vão ai dois para cada nacionalidade dos top 10. De Moçambique, Deodato Siquir e Cheny Wa Gune. Do Brasil, Hermeto Pascoal e Naná Vasconcelos.

 

 

 

 

 

 

Nabor Jr.

Nabor Jr. é fundador-diretor da Revista O Menelick 2° Ato. Jornalista com especialização em Jornalismo Cultural e História da Arte, também atua como fotógrafo com o pseudônimo MANDELACREW.

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.