abril de 2012

O CANTO DOS ESCRAVOS: SONS DE TRABALHO, MÚSICA DE LIBERDADE

Nabor Jr.

 

 

 

ilustrações TOM DIAS

 

 

 

 

 

Preciosidade da história fonográfica tupiniquim e um dos mais reveladores discos produzidos no Brasil no século 20, o álbum O Canto dos Escravos, lançado em 1982 dentro da série Memória Eldorado, da Gravadora Eldorado, chega aos 30 anos em 2012 ainda ocupando o privilegiado posto de mais importante documentação sonora a cerca da cultura oral africana praticada pelos negros escravos em terras brasileiras.

 

Impossível escutá-lo e permanecer imune a sua rica ancestralidade sonora e rítmica, bem como as inevitáveis lembranças do terrível período da escravidão.

 

O registro documental da existência – e resistência – cultural da tradição bantófone no Brasil ao que o trabalho se propõe, por si só já seria suficiente para torná-lo singular (o álbum foi o primeiro registro sonoro da “música” do tempo da escravidão no país), contudo, sabedores do arqueológico material que tinham em mãos, o pernambucano Aluísio Falcão, coordenador artístico do projeto, e Marcus Vinícius de Andrade, produtor e diretor musical do disco, transformaram o que seria apenas mais uma documentação histórica em um dos mais belos trabalhos artísticos dedicados a preservação das tradições culturais do negro escravizado no Brasil.

 

Dividido em 14 cantos ancestrais dos negros benguelas de São João da Chapada e Quartel do Indaiá, povoados de Diamantina, município de Minas Gerais, e interpretados por três dos mais importantes defensores da preservação das tradições ancestrais afrobrasileiras na música nacional: Geraldo Filme (1928 – 1995), Clementina de Jesus (1901 – 1987) e Tia Doca da Portela (1932 – 2009), o projeto reúne as qualidades técnicas essenciais para um trabalho musical que se propõe a transpor com eficiência a barreira da superficialidade e do “mero” entretenimento: originalidade, sensibilidade, intensidade e, obviamente, boa música, bons músicos e simplicidade nos arranjos.

 

 

 

SONS DE TRABALHO. MÚSICA DE LIBERDADE

O primeiro grande diferencial do trabalho está no ineditismo do repertório. As 14 faixas que compõe o álbum foram selecionadas entre os 65 cantos colhidos pelo filólogo, professor e linguista mineiro Aires da Mata Machado Filho (1909 – 1985) que, entre o final dos anos 20 e durante a década de 30 do século passado, dedicou-se a pesquisa de “cantigas em língua africana ouvidas outrora nos serviços de mineração” no interior de Minas Gerais, conforme o próprio descreve no livro O Negro e o Garimpo em Minas Gerais (1943).

 

Denominados de vissungos, esses cantos rituais afrobrasileiros recolhidos e partiturados por Mata Machado, foram herdados dos escravos africanos de origem banto trazidos para o Brasil para trabalhar na mineração de ouro e diamante nos séculos 17 e 18, e identificados pelo filólogo junto a alguns poucos negros que ainda preservavam a tradição nas beiradas do seu estado natal.

 

Os vissungos misturam dialetos africanos como o umbundo e o quimbundo ao português arcaico. Além das minas de ouro, esses cantos podiam ser observados em diversas situações da vida cotidiana do negro escravizado, como no trabalho dos terreiros, nas brincadeiras e no cortejo dos enterros. À revelia dos senhores, os vissungos mineiros eram, como podemos observar, uma forma dos negros africanos preservarem suas tradições a milhares de quilômetros da sua terra e, também, como bem observou a etnolinguísta e Doutora em Línguas Africanas pela Universidade Nacional do Zaire, Yeda Pessoa de Castro, uma forma de ‘work song’ parecida com o ‘spirituals’ e o blues negro americano.

 

Em O Negro e o Garimpo em Minas Gerais, no capítulo dedicado ao estudo das cantigas, Mata Machado ressalta “a necessidade universal de trabalhar cantando”, e associa à prática dos negros de São João da Chapada e Quartel do Indaiá os cantos das colheitas de uvas em Portugal, das fiandeiras, dos capinadores de roça e dos mutirões. “Muito interessante era a multa. Quando alguma pessoa chegava à lavra, era logo multada pelos mineradores, com uma cantiga apropriada”, diz o autor, referindo-se aos momentos em que os negros pediam alguma coisa ao elemento recém-chegado. “Uma vez satisfeito o pedido, seguia-se à multa o agradecimento com danças, ritmo de carumbés e enxadas”, completa.

 

Conforme rege a ancestral cultura africana, fortemente ligada a exaltação de santos e ritos ecumênicos, a religiosidade também está presente nos versos dos vissungos. “Há cantigas especiais para conduzir defuntos a cemitérios distantes”, explica o historiador em seu livro.

 

O pioneiro registro de Mata Machado, além de ser a alma do disco, indiretamente incentivou a ainda tímida, mas essencial, continuidade dos estudos e pesquisas a cerca dos vissungos, como a tese de mestrado A África no Serro-Frio – Vissungos: uma prática social em extinção, de Lúcia Valéria do Nascimento (2003), o suplemento editorial Vissungos: Cantos afro-descendentes em Minas Gerais (2009), organizado por Neide Freitas Sampaio, entre outros.

 

 

TRIO TERNURA: QUELÉ, GERALDÃO E DOCA

 

Sim, ouvir o disco é uma oportunidade e tanto para conhecer e valorizar as “raízes sonoras do Brasil”, mas convenhamos, a simples presença do trio de intérpretes do álbum já é um prêmio para os nossos ouvidos, como foi para o sucesso artístico do trabalho também.  As escolhas não poderiam ser mais adequadas.

 

A fluminense Clementina de Jesus, que recentemente ganhou o documentário Clementina de Jesus: Rainha Quelé (2011), de Werintos Kermes e Heron Coelho, deu ao disco o peso do seu canto quase falado, da sua voz rouca e anasalada, sua entonação firme e as lembranças das cantigas que aprendera com sua mãe – uma lavadeira que gostava de cantar corimas, jongos, lundus, incelenças e modas, enquanto trabalhava. Clementina, também conhecida como Tina ou Quelé, era a personificação da cultura afro-brasileira e talvez a mais importante voz negra da música brasileira. O Canto dos Escravos foi a última gravação da qual participou.

 

Geraldo Filme, compositor de mão cheia e “a cabeça pensante do samba paulista”, segundo palavras de Oswaldinho da Cuíca, emprestou seu vozeirão ao álbum. Geraldo, assim como Quelé, não estava no álbum por acaso.

 

Testemunha ocular das animadas, e reprimidas, manifestações culturais da população negra em São Paulo, Filme frequentava as rodas de samba e tiririca (capoeira) que os carregadores e engraxates improvisavam no Largo da Banana, na Barra Funda. Também foi protagonista do carnaval paulistano, ferrenho defensor do samba rural paulista e íntimo de elementos como o jongo, vissungo e batuque manifestados em Pirapora do Bom Jesus. Sua participação no Canto III, do disco, é emocionante.

 

 

Nascida Jilçária Cruz Costa, Tia Doca da Portela completa a estrelada trinca de intérpretes do disco. Filha da primeira porta-bandeira da Escola de Samba Prazer da Serrinha, gênese da Escola de Samba Império Serrano, foi tecelã, empregada doméstica e chegou a vender sopa para se sustentar.

 

Doca foi responsável por uma das principais rodas de samba da cidade, o Terreirão da Tia Doca, em Madureira, no subúrbio do Rio e que durante anos ajudou a manter vivo o samba de raiz carioca, também foi personagem do documentário “O mistério do samba”, de 2008, produzido pela cantora Marisa Monte

 

Ao dispensar instrumentos harmoniosos e apostar na percussão para compor o acompanhamentos das músicas, Marcus Vinícius agregou ritmo e força ao trabalho. A introdução de ritmos binários generalizados de umbanda, tais como o barravento, que ouvimos em casas de umbanda, macumba e jurema por todo o país materializados na percussão de troncos, xequerês, enxadas, cabaças, atabaques, agogôs, caxixis e afoxés tocados por Djalma Corrêa, Papete e Don Bira dão fôlego e corpo ao álbum.

 

O que poderia ser uma extravagância técnica, uma vez que a base rítmica adotada foge do padrão original da manifestação – sustentada apenas pela oralidade, casa perfeitamente com a letra e intensidade das interpretações, transformando a audição do disco em uma experiência sonora transcendental.

 

O Canto dos Escravos rompe a linha do tempo. Dribla as barreiras do simples entretenimento e, bebericando da rica fonte primária das manifestações orais africanas em solos brasileiros, aponta, como outrora fizeram – e ainda fazem – diversas manifestações artísticas espalhadas pelo país, para a fundamental influência não apenas do ritmo, mas da poesia e da palavra negra, em especial da cultura bantófone (matriz de manifestações como o samba e capoeira) na constituição da identidade cultural brasileira.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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NOTAS DE RODAPÉ

Banto/ Bantófone
A expressão Bantófone aqui é utilizada para definir a tradição linguística oriunda da cultura banto (do termo multilinguístico ban-tu). Banto é um tronco linguístico africano, ou seja, uma língua que deu origem a diversas outras línguas africanas. Hoje são mais de 400 grupos étnicos que falam línguas bantas, todos eles ao sul da linha do Equador. Os estudiosos da linguagem acreditam que a língua banta se originou na região onde hoje ficam a República de Camarões e a Nigéria.

 

 

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PARA LER

Novo Dicionário Banto no Brasil
Nei Lopes
Editora Pallas
2003

 

Negro e o Garimpo em Minas Gerais
Aires da Mata Machado Filho
Editora José Olympio
1943

 

 

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PARA ASSISTIR

Clementina de Jesus: Rainha Quelé
Werinton Kermes e Heron Coelho
2011

 

 

 

 

 

 

 

Nabor Jr.

Nabor Jr. é fundador-diretor da Revista O Menelick 2° Ato. Jornalista com especialização em Jornalismo Cultural e História da Arte, também atua como fotógrafo com o pseudônimo MANDELACREW.

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.