julho de 2015

ESTEVÃO MAYA MAYA: UMA ELEGÂNCIA BAIXO-PROFUNDA

Oswaldo Faustino

 

 

 

 

fotos Oubi Inaê Kibuko e MANDELACREW

 

 

 

 

 

 

 

“Um homem com uma dor
É muito mais elegante
Caminha assim de lado
Como se chegando atrasado
Chegasse mais adiante…”

(Dor Elegante – Itamar Assumpção e Paulo Leminski)

 

 

 

Se, dia desses, alguém nos revelar que Maya-Maya entrou para o Guinness Book of Records por ter gravado mais de 300 canções russas, saberemos que ele, finalmente, conquistou sua obsessiva meta atual. Por conta disso, ele tem estudado russo, incessantemente, e ensaiado com avidez composições e mais composições eruditas e populares compostas no leste europeu. Surpresa nenhuma. Afinal, a música e os estudos são a paixão maior desse maranhense radicado, há tantos anos, em São Paulo.

 

Os militantes do movimento negro, porém, poderão estranhar, afirmando que ele mudou seu foco, que sempre foi a valorização da cultura negra. “Não mudei, não”, ele responde. Afinal, o romancista e poeta Alexander Sergueievitch Pushkin (1799 – 1837), pai da moderna literatura russa, era bisneto de Abram Petrovich Gannibal (1696-1781), nascido na Eritréia, país que pertencia à Etiópia, e que era conhecido como ‘o Negro de Pedro, o Grande’. “Como inúmeros outros expressivos artistas de reconhecimento mundial, Pushkin também tinha suas raízes na África”, explica.

 

As conversas com Maya-Maya, por mais amenas que sejam, sempre se transformam em verdadeiras aulas de africanidade. Filho de Raimundo Maia e Maria da Conceição Silva Maia, Estevão nasceu em 2 de setembro de 1943, no povoado de Pano Grosso, em Viana, distrito de um dos mais afros estados brasileiros, o Maranhão. Desde muito pequeno saboreou a negritude do tambor de mina, do bumba-meu-boi, do vodum e demais tradições brasileiras nascidas das culturas Jeje, Ewé, Fon, Mina, Fante e Axânti, entre outras trazidas da África por nossos ancestrais escravizados. A maioria transmitida através da oralidade e das canções de trabalho, culto, lamento, protesto e de outras tantas motivações criativas.

 

“Fui criado por minha avó, Rosa Aprígia, que era cantora e violonista, e pela filha dela, minha tia e madrinha Lourença, cozinheira de mão cheia. Ela trabalhou na cozinha do prefeito, antes de se tornar funcionária pública e ir cozinhar no hospital local. Música e comida boa… não tem nada melhor para a formação do corpo e da alma da gente”, brinca Estevão, sempre pronto a repetir algumas de suas frases tradicionais, como: “Não nasci pobre, mas, depois, fiquei miserável”. Segue-se sempre uma gostosa gargalhada. Esta afirmação se deve ao fato de seu bisavô ter sido dono de engenho, quando o café e o açúcar dominavam as exportações brasileiras, e de nada dessa fortuna ter-lhe restado como herança.

 

Alfabetizado aos três anos de vida, pela avó e pela madrinha, teve muito cedo sua atenção voltada a um tipo de canção que não era cantada nas ruas de Viana: “Minha avó gostava de cantar fragmentos de música italiana barroca, ouvidos de uma companhia de ópera que se apresentou em São Luiz, acompanhada pela Orquestra Sinfônica do Maranhão. O que a gente aprende na infância jamais esquece e influencia em nossas preferências para o resto da vida. Ela e minha madrinha previram que eu seria cantor, mas que não seria sambista, mesmo que, vez por outra, eu cantasse este ritmo e também marchinhas, nos bailes de carnaval”, revela.

 

Outra forte influência em sua formação artística foi a música que emanava da campana do gramofone de uma das casas da rua em que morava, onde residia a octogenária professora Cóia Carvalho, apaixonada por óperas e operetas. Ao pensar seu nome artístico, José Estevão Maia, trocou o I pelo Y e dobrou o Maya, como se constata em alguns nomes árabes. Ele garante que nas veias de seus ancestrais africanos corria o heroico sangue árabe.

 

 

MAIS FORTE DO QUE AS DOENÇAS

 

 

Caminhar muitos quilômetros pela manhã é outra de suas dedicações atuais: “Sou de uma família de longevos. Meu pai faleceu recentemente com 89 anos. Meu avô Atanásio, morreu pouco mais jovem, porém, vivia dançando. Era um exímio dançarino. Quer melhor terapia que a dança, principalmente as danças tradicionais de minha terra? Somos um povo forte”.

 

A última frase dessa explicação de Estevão, trouxe à memória deste redator um episódio ocorrido em 1987, quando eu era editor de Cultura, no extinto jornal Diário Popular. Uma tarde, ele entrou na redação dizendo: “Estou vindo de um consultório médico. Descobriram que eu tenho um tumor maligno na cabeça”. O choque diante dessa notícia foi tão forte que fez este jornalista chegar às lágrimas. O amigo, então, me consolou: “O que é isso, Oswaldinho? Eu sou mais forte do que qualquer doença”. Foi submetido a cirurgia craniana e a um longo tratamento de quimioterapia. Não bastasse isto, ele já sobreviveu também a um AVC. Apesar de ter ficado uma pouco mais lento na elaboração das frases, sua memória para nomes e fatos é invejável.

 

Essa força interior e seu talento artístico foram percebidos ainda na infância. “Meu pai contava que eu já nasci com voz grave. Que eu parecia um bezerro berrando, quando chorei pela primeira vez”, comenta rindo. Aos cinco anos, um alfaiate que era cantor de marchinhas o ouviu cantar e lhe concedeu um prêmio. Enquanto lhe ensinava os segredos da arte da alfaiataria, o ajudava a educar a voz. Ali mesmo na oficina do alfaiate, onde se tornou um exímio profissional, ele encontrou um pequeno tesouro cultural: “Livretos de cordel. A primeira literatura de minha vida. Histórias heroicas de Carlos Magno, O Romance do Pavão Misterioso, o Boi Voador, A Peleja do Cego Aderaldo com Zé Pretinho. Devorava e decorava tudo aquilo. Paralelamente, fui também me apaixonando pelas serestas e pelas mulheres, muitas das quais ficavam de olhos vidrados ao me ouvir, como cantador de toadas de boi, aos 16 anos, e mais tarde como crooner de orquestra”, revela.

 

Voluntarioso, Maya foi expulso da escola paroquial. Mas isso não motivou qualquer resistência aos clérigos, pois deve parte de sua profissionalização ao padre João Mohana, que ao ser-lhe apresentado pediu que cantasse um sucesso de Nelson Gonçalves. Impressionado com a performance do jovem de 19 anos, o padre tornou-se seu amigo e o estimulou a aprofundar sua formação. Pagou sua passagem para a capital, São Luiz, para participar de uma audição na Academia de Música do Estado do Maranhão.

 

Em pouco tempo, Estevão já estava adotado pela elite intelectual de São Luís e se aproximou do Partido Comunista. Era o início de um sonho de voos mais altos, incentivado por todos, principalmente pelo professor Nascimento Morais. Esse amigo se encarregou de angariar doações entre seus irmãos de Maçonaria para bancar a viagem de Maya-Maya para Salvador, onde ele se bacharelou, na Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Além de seus estudos sobre música no teatro, ele integrou o Madrigal, coral que percorreu várias capitais e grandes cidades brasileiras. Um ano antes de seu ingresso, o grupo havia se apresentado no Carnegie Hall, em Nova Iorque. Um dos sonhos não realizados por aquele novo integrante de voz baixo-profundo.

 

Dois anos depois, nova etapa de sua vida: foi para o Rio de Janeiro. O ano de 1968 foi bastante doloroso para a história do Brasil, por conta da promulgação do trágico AI-5, ato institucional que gerou cassações, perseguições, prisões e exílios.  Para Maya-Maya, além dos temores relacionados com sua formação esquerdista e sua filiação ao Partido Comunista, uma frustação o aguardava naquela cidade: submeteu-se a teste para integrar o elenco do Teatro Municipal e foi aprovado com distinção. Mas, segundo o diretor do Municipal, Vieira de Mello, o presidente Costa e Silva suspendeu todas as contratações dos órgãos públicos, em especial os culturais. “Foi quando me apresentaram à professora de canto Maria Amélia Martins, que era muito influente, e ela se prontificou a ir comigo falar com o diretor e me garantiu que, a seu pedido, ele iria me contratar. Na data combinada, tive a notícia de que ela faleceu na Escola de Música, vítima de aneurisma cerebral”, lamenta o cantor.

 

Restaram apenas a boemia, com suas serestas, e as intermináveis conversas com os amigos comunistas. Dessa convivência surgiram dois novos convites: realizar seu primeiro recital individual em Porto Alegre e desfrutar de uma bolsa para estudar canto em Moscou. O primeiro foi um sucesso. O outro, por conta da ditadura militar, foi adiado por tempo indeterminado. Restaram os recitais solo no sul e sudeste do país e a consagração no Teatro Colón, de Buenos Aires, que estava comemorando 90 anos de existência.

 

 

NEGRITUDE E RADICALISMO

 

 

Muito cedo, Estevão percebeu que suas lutas teriam de extrapolar os limites da esquerda brasileira que, historicamente, foca apenas as questões sociais: “As raciais são sempre deixadas em segundo plano”, afirma o militante. Por isso foi preciso radicalizar. Um radicalismo de voz grossa, sempre tonitruante, surpreendendo quem não o conhece. Em pouco tempo, porém, a pessoa percebe que por detrás daquela postura dura se esconde uma docilidade e a ternura preconizada por Guevara.

 

Estevão faz parte daquele grupo de militantes negros dos anos 70 que se aproximou dos que lutaram nas primeiras décadas do século 20, principalmente alguns remanescentes da Frente Negra Brasileira, como Francisco Lucrécio, Raul Joviano do Amaral, Henrique Cunha e, principalmente, José Correia Leite, que em 1924 fundou, com Jayme Aguiar, O Clarim, jornal que mais tarde teve seu nome mudado para O Clarim d’Alvorada. Conviveu intensamente com Correia Leite: “Uma das missões que determinei para mim mesmo é criar o Memorial José Correia Leite, que abrigará seus jornais, livros e muitas das aquarelas que ele pintava. Ele me tratava como um filho e dizia que minhas filhas, Jamila e Naila, eram suas netas”. O memorial idealizado deverá ter um espaço dedicado a outro amigo que, com ele, gozou da amizade de Leite: Márcio Damázio, um dos fundadores, ao lado de Isidorio Telles, da editora e livraria Eboh, dedicada exclusivamente a obras de negros e sobre negros.

 

Foi com o estímulo e a orientação de Correia Leite que Estevão liderou, com o advogado Agnaldo Avelar, em 1974, a fundação da Cacupro (Casa da Cultura e do Progresso), entidade negra que funcionou no bairro do Ipiranga, em São Paulo. Ali realizaram-se vários eventos envolvendo artistas, intelectuais e estudantes negros, como Hugo Ferreira, Vanderli Salatiel, Milton Barbosa, Neusa Negritude, Oswaldo Rafael, Antonio Carlos Arruda, Ivair Alves dos Santos, Henrique Cunha Jr., entre outros. O mentor intelectual foi o sociólogo Eduardo de Oliveira e Oliveira, professor da USP que organizou, entre outras iniciativas, debates com intelectuais afro-americanos e criou o coral Brasilafro.

 

 

Uma pausa para o registro fotográfico do nosso encontro.

 

 

Esta experiência estimulou Maya-Maya a criar um coral que se originou na Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, chamado Juventude do Rosário, cujo nome foi mudado para Cantafro e que, por três anos consecutivos, foi contratado para cantar, no período do Natal, em frente à loja Mappin, no centro de São Paulo. Em 1988, esse coral gravou a trilha sonora do seriado Abolição, exibido pela Rede Globo. Maya explica: “O Cantafro tem suas origens na Cacupro, mas iniciou seus ensaios na Vila Brasilândia. Só depois foi para o centro da cidade. Ensaiar corais de empresas e instituições como a Fundação Getúlio Vargas, a Sabesp e a Setesb, e compartilhar meus bons salários com um batalhão de amigos duros, virou minha rotina, naqueles tempos”, comenta, gargalhando.

 

Na década anterior, emprestou seu vozeirão para o personagem Caifás, na montagem brasileira da ópera-rock Jesus Christ Superstar. Coube a ele também a direção musical do espetáculo Hair, em São Paulo, e do show Síntese da História do Jazz, entre outros. Suas pesquisas sobre os vissungos, cantos responsoriais de escravizados que mesclavam o português com línguas africanas, como o Kimbundo e o Nbundo, bastante praticados nas regiões de lavras de ouro e de diamante, em Minas Gerais, deram origem à ópera Ongira: Grito Africano, que Estevão compôs em parceria com Antonio Padinha e cuja montagem contou coma direção de Thereza Santos. A história se passa em um quilombo imaginário que amanhece com a seguinte canção:

 

“Lua da terra distante
Que brilha que nem diamante
Vai acordar o Sol
Pra vim com sua alegria
Furá o buraquim do dia
Ai, Senhê! Ai, Senhê!.
Do Nbanda, fura buraquim, Senhê!”

 

Mais adiante, ao se recordar da travessia do mar, que era chamado de Kalunga Grande, os quilombolas cantam:

 

Kalunga ê meia Zambuê (repetido 3 vezes)
Nem kuaketê, nem manuete, Kalunga
Mukanhaê mukuaeete

 

 

UM HOMEM DE LETRAS

 

Sua estreia no campo da literatura foi em parceria com seu conterrâneo, o poeta Vilmar Ribeiro, que hoje vive nos EUA. Eles publicaram, em 1980, o livro de poemas Cantiga para gente de casa chegada em cima da hora. Maya comenta: “Rapaz, foi uma produção independente, mas acredita que, vendendo de mão em mão, faltou pouco para se completarem cinco mil exemplares?” Um dos poemas tem o título de Carta para o meu pai:

“Nhô
tu te lembras
como era eu na escola?
tu te lembras
com era
eu na vizinhança?
Continuo o mesmo
mas caminhei no tempo
e estou mais amadurecido
Com a voz
que é semelhante à tua
ganho o meu sustento
conquisto meus amores,
reclamo direito
e o respeito para o povo negro,
nosso povo
que me ensinaste amar.

[…]

Nhô!
Negro sabido e valente.

 

Sua segunda obra foi individual Regresso Triunfal de Cruz e Souza e os Segredos de Seu Bita Dá-Nó-em-Pingo-d’Água, lançada em1982. Na primeira parte ele homenageia o poeta negro catarinense, o maior dos simbolistas do país, corrigindo distorções consagradas até mesmo pela academia. A segunda parte traz poemas com reminiscências da própria infância:

 

“Canela fina e comprida,
Cara preta boca encarnada
(pássaro bico-de-brasa),
Calça no rendengue,
Baladeira no pescoço,
O choc-choc dos bolsos
(cheios de pedrinhas),
lá vem “seu” Bita assobiando.
“Seu” Bita era o “diabo”, siô!…
muito inteligente,
muito bom de serviço,
mas era levado da breca.
Embora no quintal de sua casa
houvesse variadas frutas
mas preferia roubar as alheias
dizia: “são mais saborosas”…
Um dia se descuidou
e, bum… um tiro de espingarda
carregada de toucinho,
bem no peito… caiu meio assustado
mas logo se deu conta
de que tava vivinho bulindo…
pegou uma melancia
e saiu correndo
rindo às gargalhadas.”

 

Esta obra se encontra no acervo do setor da América Latina da Academia de Ciências de Moscou. Maya-Maya integra a Academia Vianense de Letras, ocupando a cadeira de número 23. Ele também faz parte do grupo de escritores e escritoras negras cujos trabalhos foram estudados na Universidade Federal de Minas Gerais e integram o projeto Literafro, coordenado pelo Prof. Dr. Eduardo de Assis Duarte.

 

Como ator, além de Jesus Christ Superstar e de outros espetáculos teatrais, em vários dos quais se incumbiu da direção musical, Estevão Maya-Maya participou dos filmes Sonhos Tropicais, de André Sturm, lançado no ano 2000, e De Passagem, de Ricardo Elias, dois anos depois. Este último conquistou cinco Kikitos, no Festival de Gramado.

 

 

Hoje Maya-Maya vive na Vila Sônia, zona oeste da capital, na casa e estúdio do pintor, gravador, ceramista e escultor João Rossi, falecido no ano 2000. Rossi foi diretor, professor e mentor de várias escolas de comunicação e artes e faculdades, entre elas a Escola de Artes da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP). Um dos filhos do artista convidou Estevão a morar ali, onde pode continuar seus estudos, cuidar de sua grande biblioteca e ministrar aulas de música. “É uma boa troca, pois faço companhia a Dona Isabel Olmedo, a viúva do Rossi, que já está com mais de 90 anos. Apesar da idade, ela tem uma memória excelente, que renderia muitos livros históricos, principalmente sobre as artes e as ditaduras da América Latina, entre das décadas de 60 a 80”, comenta. Ele para de falar, revira a memória e avisa: “Não se esqueça de que, de graça, compro até casa pegando fogo”. Esta é uma de suas frases preferidas. Ri muito e, apesar de caminhar lenta e elegantemente, se despede: “Agora eu vou. Tão rápido como se furta”.

 

 

 

 

 

 

 

Oswaldo Faustino

OSWALDO FAUSTINO é jornalista, escritor, dramaturgo e roteirista, bacharel em Comunicações Sociais pela FIAM/FMU, pesquisador de assuntos relacionados às questões étnico-raciais.

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.