março de 2014

REFLEXÕES ENTORNO DA MODA AFRO-BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA EM 7 ATOS

Jaergenton Correa

 

 

 

 

 

fotos MANDELACREW

 

 

 

 

 

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Reassumir as ações de moldar, revestir e ampliar o próprio corpo como um avatar, possibilita visualizar na cabine de comando, um painel de controle e os dispositivos que transformam cada cenário por onde interage. Não há pré-definições que esgotem as possibilidades de interação entre o usuário e seu meio, tendo o elemento têxtil como mediador no cotidiano urbano.

 

Antes de reproduzirmos os movimentos de ataque e defesa numa docilidade coletiva, conforme as especificidades de cada grupo estético, social ou cultural, precisamos observar que cada meio é composto por fatores de origens distintas que possuem lógicas próprias, convivendo simultaneamente e constituindo novas possibilidades de arranjo social, consequentemente promovendo leituras antes inimagináveis.

 

De tempos em tempos surgem fissuras entre as rochas, pelas quais assistimos contraposições às logicas vigentes. Nesse diálogo, as metáforas possibilitam a interação de pessoas que não estão necessariamente envolvidas com o contexto de produção têxtil ou imersos em discussões de cunho étnico, mas que já se vestiram alguma vêz em suas vidas.

 

Chamo de avatar o corpo físico do usuário das roupas e de cabine de comando o pensamento sobre esse fato. O painel de controle é a consciência do repertório construído durante o protagonismo têxtil, que é representado pelos dispositivos.

 

 

 

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Nesse contexto, após décadas de desenvolvimento urbanístico e tecnológico associado às ondas migratórias intermunicipais, interestaduais e internacionais, grupos interagiram, se pluralizaram e compartilharam diversos aspectos culturais traduzidos anteriormente por linguagens definidas geográfica e socialmente. Na itinerância urbana é possível captar vestígios dessa trama cultural à céu aberto.

 

As mãos detentoras de alguns saberes tradicionais adaptaram-se aos novos contextos, fecundando produções específicas, mas não de maneira homogênea. É arriscado pensar numa única expressão estética ou artística como identificação cultural para todos os participantes de ondas diaspóricas das mesmas matrizes.

 

Vamos acrescentar dois elementos importantes para essa temática: a má escolha da programação televisiva (um dos responsáveis pela deformação e manutenção de imaginários que  são plasmados no dia a dia)  e a experiência pessoal.

 

O primeiro elemento atua na retroalimentação entre fenômenos comportamentais como o consumo, as escolhas estéticas, os modos de expressão, as opções morais, etc. Parcela considerável da sociedade movimenta essa engrenagem, e como parte desse fluxo de ações, algumas manifestações culturais são apropriadas, reprocessadas, associadas à valores éticos, morais e mercadológicos, passando por sistemas de hierarquia estético cultural, para finalmente serem reinseridos ao cotidiano desses atores.

 

O segundo elemento é a experiência pessoal, que possibilita através de pequenas escolhas, resultarmos no fortalecimento desse processo de consumo coagido, ou na subversão desse circuito.

 

Pequenas alterações no dia a dia são capazes de gerar micro-sabotagens em escala pessoal, familiar ou maiores. A eficácia não está na ampliação dimensional dessas escalas ou na oficialização de grupos urbe políticos, nem tão pouco do embate direto à qualquer setor social. Também não depende da articulação de terceiros, ou de aparatos tecnológicos. A força dessas ações está na potencialização didática e pedagógica do próprio cotidiano e da experimentação artística associada à sensibilização dos cinco sentidos.

 

A estimulação de aptidões pessoais que foram abdicadas ao longo da vida no processo de civilização, alfabetização e adequação ao mercado de trabalho, é como o assumir de uma herança por muito tempo guardada. Ela é sua, mas você pode negligenciá-la por toda a vida sem saber que, por direito, teria uma trajetória mais orgânica.

 

Agora mensure o quanto você gastou em vestimentas ao longo da vida, criadas para serem semestralmente descartadas, sem preocupação ecológica, nem anatômicas de seus usuários, como deficientes físicos, plus size (pessoas com medidas maiores), anões e todos os perfis alheios aos padrões desse mercado. Transversalmente a esses fatores, a diversidade cultural e suas pluralidades étnicas, estéticas, filosóficas, corporais, performáticas e seus conceitos de beleza; numa constante retroinfluência em suas diásporas.

 

Entre os grandes contracensos contemporâneos, o mercado da moda  se nutre superficialmente de culturas orais oriundas da África, Ásia e das Américas esporadicamente. No desenvolvimento de suas temáticas compactam a densidade cultural de cada uma delas, afunilando-as à padronagens geométricas, peles de animais e paisagens naturais apresentadas por modelagens restritas ao perfil hegemônico nas passarelas clássicas.

 

 

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Quando o usuário passa a ter consciência desses fatores, após um choque, naturalmente inicia um processo de “protagonismo têxtil”  vestindo-se à partir do seu íntimo, mesmo antes da aquisição ou produção da própria roupa. Suas escolhas se tornam mais criteriosas e as convenções perdem a importância.

 

Posteriormente, algumas pessoas com as quais convive, se sentirão provocadas devido à  nova energia desse corpo liberto da coação  mercadológica ou política. Pois transcende o território biológico, se expande à novos elementos a partir dos tecidos que o reveste e o remodela.  Isso também ocorre na identificação, na incorporação e intervenção em elementos arquitetônicos e paisagísticos. Monumentos subjetivos são legitimados, e uma nova mediação com os ambientes que compõem seu cotidiano é iniciada.

 

Esse processo deve ter continuidade para que expressões de oralidades controladas subvertam a pressão oriunda na urbe.

 

 

 

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Há uma itinerância realizada conforme as relações sociais estabelecidas. Os moradores de bairros periféricos trafegam durante horas para desenvolverem suas atividades profissionais, educacionais, de lazer ou de cidadania diariamente.

 

Após o trajeto, o  que fica são as queixas em relação à superlotação dos transportes públicos,  ao trânsito, à poluição do ar, sonora e de imagem. Esse processo se acumula ao longo da semana e se sobrecarrega com o passar dos meses.

 

Aparecem os quadros clínicos de stress, tensões musculares e nervosas, má circulação, problemas de coluna e nas pernas devido ao percurso realizado em pé, no mal acomodamento do corpo e pela pressão causada por outros corpos nas mesmas condições sub-humanas. Suas sequelas não desaparecem com o suposto descanso. O corpo tem memória e essas experiências constituem um acervo sensitivo, que é potencializado negativamente ao longo da vida.

 

Vale aqui uma nova metáfora: a cada segundo de vídeo produzido, são utilizados entre 24 e 30 frames ou fotografias em média. Esse é o número necessário de quadros para termos a impressão da imagem em movimento assistida na televisão.

 

Muitos habitantes urbanos descendem de grupos étnicos compostos por culturas orais. Desenvolvem relações milenares com seus meios articulados aos reinos animal, mineral, vegetal, e sobre-humano através das trocas simbólicas de energia, por sistemas de comunicação em temporalidade cíclica e rítmica, em que são performatizadas simultaneamente à voz, à audição, ao paladar, ao tato, ao olfato e à visão.

 

Esse último, é o mais explorado em nosso contexto pelo processo de letramento e ao mesmo tempo, tem sua potencialidade reduzida, quando desconecta aos outros quatro, que são cada vez mais abafados durante o processo de civilização, alfabetização e adequação ao mercado de trabalho.

 

Esses sensores são inibidos diariamente e captam apenas os elementos que geram o desconforto desse ir e vir diário, ao passo que a visão capta quase sempre as mesmas coisas, fortalecendo essa rotina.

 

 

 

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Esses usuários, como descendentes de culturas orais em diáspora, têm abdicado as potencialidades comunicativas do seu corpo, suficientemente docilizado para o mercado de trabalho.

 

Uma parcela respeitável das instituições de ensino são estruturadas para não reconhecerem a memória multimidiática dos corpos de seus alunos. Priorizam o letramento, desestimulam atividades físicas, artísticas, criativas e intuitivas à partir da infância.

 

Momento que inicia a coerção às aptidões, aos talentos herdados, às associações simbólicas e metafóricas oriundas do desenvolvimento natural das crianças, que futuramente somarão à massa aglutinada de corpos transportados sem o respeito ergonômico, anatômico, humano.

 

Refletir sobre as possíveis modas afrobrasileiras na contemporaneidade é pensar em interferir didática e pedagogicamente desde a infância da população, independentemente de seu fenótipo, para que ela seja culturalmente auto-suficiente já na adolescência, apto à subverter esse repertório hostil que essa experiência urbana pode proporcionar.

 

 

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Reconhecer a roupa como ferramenta didático pedagógica para crianças à partir dos seis anos de idade é estimular sua criatividade e sensibilizar seus sentidos desde cedo, para que ela não perca as variantes comunicativas através das experimentações artísticas nas mais distintas linguagens, iniciando assim um investimento sensitivo através da mediação com o meio e da  comunicação multimidiática natural e diária.

 

É crescer vivenciando que simples elementos do cotidiano podem compor um repertório cultural que estimule o intelecto, nas associações que fizer, conforme sua própria natureza, seus conhecimentos orais, sua tradição familiar, na ludicidade do brincar, cantar, correr, sentindo o cheiro da grama, sem perder-se aos pouco para os materiais didáticos e para as estratégias pedagógicas ultrapassadas e contraditórias de algumas instituições de ensino.

 

Se existissem esses estímulos às crianças desde cedo, uma base pedagógica faria toda a diferença anos mais tarde. A ausência desse arsenal lúdico-artístico-sensitivo nos atuais adultos dificulta a subversão dessa rotina, e é exatamente onde a metáfora do áudio visual se conecta ao trânsito: as 24 imagens por segundo que geram a sensação fílmica, transpostas no cotidiano.

Se multiplicarmos 24 X 60 (segundos) X a quantidade de minutos que duram o trajeto entre  a residência e o trabalho, quantas milhões de imagens descartadas diariamente, continuam a compor esse acervo hostil durante o trânsito?

 

Com a mínima sensibilização artística, o estímulo às aptidões pessoais e a potencialização dos cinco sentidos, esse corpo multimidiático por natureza seria capaz de converter a experiência do cotidiano em proposições artísticas através das inúmeras linguagens já existentes, sem contar as novas que surgiriam. Cada uma em seu contexto específico, contemporâneas e dialógicas às tecnologias de sua época, como atualmente são os smartphones, celulares, máquinas fotográficas, filmadoras digitais, tablets, etc.

 

 

 

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Entre muitas possibilidades comunicativas, encontra-se a proposição do auto estilismo à partir da captação de uma única imagem, dentre as  milhares diariamente descartadas. Ela se plasma em tecido por um processo subjetivo de transposição entre linguagens artísticas. Inicia com a experimentação técnica de maior afinidade, passando à  associação de diversas outras.

Após um tempo realizando essa ação o usuário/criador subverte o que se tornaria uma simples rotina em repertório cultural e exercício lúdico, naturalmente transposto em diversas plataformas e na educação não formal.

 

Muitos atores desenvolvem metodologias próprias, convertem o dejeto urbano em linguagem artística, constrõem suas próprias metáforas, simbologias e dribles. Edificam universos de possibilidades que aproximam estética e/ou conceitualmente urbes em pontos distantes do mundo.

 

Seus resultados estão plasmados em linguagens como a tatuagem, a pixação, o jazz, no hip-hop,  na literatura periférica, na dança contemporânea, nas historias em quadrinhos, na animação, na vestimenta despig, no parkour, na computação gráfica e muitos outros circuitos de tamanha relevância vinculados ou não pelas redes sociais.

 

As performances do corpo urbano apresentam a pluralidade fenotipica para o imaginário afrobrasileiro contemporâneo.  Que nutrido e consciente de toda essa retroinfluência amplia as possibilidades de diálogo entre o idealizador/usuário das vestimentas com os diversos ambientes por onde circula. Sob o skate, no ciclismo urbano, patins ou à pé,  promove em tempo real uma experiência urbe educativa que interfere na percepção das demais pessoas participantes desses mesmos espaços. Tudo isso ocorre simultaneamente e todas as manifestações culturais compõem a paisagem urbana à ser contemplada, numa grande metalinguagem.

 

Essa nutrição é capaz de absorver os mesmos elementos urbanos causadores dos desconfortos captados pelo corpo, que se transforma numa válvula enrrigadora, bombeando informações por plataformas que nem sempre são pré definidas ou já reconhecidas pela sociedade a qual faz parte.

 

Dentre as matérias primas das quais esses diálogos são oriundos, cito as ruínas urbanas, estações de trem e metrô, onomatopéias urbanas, o cheiro do habitat sob os viadutos, a movimentação dos transeuntes; do asfalto às rachaduras pós chuva; às calçadas danificadas e conforme o grau de mobilidade do usuário, percebe com maior intimidade a negligência em relação à voz do solo urbano. Pois se assim não fosse, os pisos táteis jamais conduziriam os deficientes visuais em trajetos dentro e fora de estabelecimentos comerciais e equipamentos culturais.

 

As vitrines continuarão a existir.  O posicionamento auto estilístico requer determinação e pensamento criativo numa época que as possibilidades tecnológicas também contribuem para o acomodamento da mente, ao passo que para existirem, também são patrocinadas pelas mesmas corporações que conduzem pensares, agires e vestires.

 

Essa temática está repleta de subjetividade. Foi muito importante ter nascido numa familia que mantém sua oralidade na tradição textil desde 1950. Compartilho aqui algumas reflexões dispertas no inicio da adolescencia e que se trasnsformaram em pesquisa pessoal.

A associação de diversas áreas foi fundamental para a compreensão e o amadurecimento do conceito de auto estilismo, no constante diálogo entre as manifestações tradicionas e as novas tecnologias.

 

Por cada experiência de vida, juntos construirmos o que um dia poderá ser identificado como a historiografia da moda afrobrasileira contemporânea. Há mutos pontos à serem explorados e que precisam de pensadores atuantes em diversos setores da sociedade para ampliarmos reflexões sobre:

 

– Protagonismo textil e modelagem capilar em ambientes corporativos;

– A performance  em passarela clássica como desfile afro;

– Moda afro-brasileira contemporânea é uma questão da área da moda oficial?

– Ascendência social de afrobrasileiros: protagonismo textil e performances individuais em novas zonas de nutrição cultural, e quebra de estereotipos.

– Parametros de legitimação da Moda Afrobrasileira.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jaergenton Correa

JAERGENTON CORRÊA é mestrando em História Social pela PUC-SP, bacharel em Artes Visuais pelas FASM-SP (Faculdade Santa Marcelina), produtor de moda pelo SENAC-SP, atua como arte-educador, estilista e pesquisador nos temas: auto estilismo, memória das roupas e vestimenta afro urbe.

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.