junho de 2011

O CABELO NÃO NEGA: AS RAÍZES DO BRASIL NA CULTURAL CAPILAR

Alexandre Araujo Bispo

 

 

 

fotos MANDELACREW

 

 

 

 

 

 

 

O que o seu cabelo diz de você? Como a história de seus antepassados aparece nos seus cabelos? Como a história das relações sociais no Brasil materializa-se no modo como o vemos e o usamos?

 

É certo que seria impossível, aqui, em poucas linhas, contar a história do cabelo. Essa tarefa não terminaria nunca, pois a quantidade de histórias é tão grande quanto a população atual de vivos no planeta, cerca de 7 bilhões. Mesmo depois de mortos nossos cabelos podem dizer muito sobre a sociedade que vivemos, pois eles ficam como fatos físicos de tempos passados. Os egípcios, por exemplo, deixaram vestígios capilares fundamentais para compreendermos seu passado no continente africano. E eles gostavam tanto de cabelos que apesar de os rasparem sempre, usavam perucas elaboradas. Ao contrário de antigos povos como os sumérios, hebreus, babilônios e gregos, os egípcios deixavam o cabelo crescer em períodos de viagem ou luto. Cabelos e unhas crescem um pouco mesmo depois que morremos.

 

É conhecido o mito bíblico de Sansão, que teve os cabelos cortados por Dalila e perdeu as forças vitais, a virilidade sexual. Os cabelos podem ter tanta força no sentido simbólico que, não raro, expressaram e expressam sacralidade (como entre os rastafári no qual os dreadlocks estão associados à religião), pureza, sujeira, além de serem usados em protestos contra governos ou valores sociais vigentes, e também em apoio a um regime totalitário. Na Alemanha da 2ª Guerra Mundial, os militares usaram cabelos super curtos, enquanto que aos judeus, a imposição de raspar o cabelo recaiu até mesmo sobre as mulheres.

 

 

Os cabelos podem dar forma corporal a um movimento social e político, como por exemplo, os Black Panters, movimento social afro-americano muito ativo entre os anos de 1966 e 1982. Eles difundiram os Black Powers, cujo símbolo capilar é a filósofa socialista Angela Yvonne Davis (1944). Assumir o volume dos cabelos crespos se constituiu naquele país como uma atitude política diante da opressão racial e social branca nos EUA.

 

No Brasil, o Movimento Negro, com forte expressão a partir de 1975, terá uma cultura capilar de afirmação, quando muitas pessoas assumiram os cabelos crespos como um dado positivo da experiência racial, produzindo uma diferenciação estética contra a opressão e imposição de cabelos curtos para homens e alisado (com técnicas agressivas) para mulheres.

 

 

É nessa esteira de denúncia do preconceito e assunção de um orgulho racial e étnico que um dos hinos afirmativos da textura crespa vai surgir. “A verdade é que você tem cabelo duro”, dizia Sandra de Sá (1955) em Olhos coloridos, de 1980, em canção do compositor Macau, pioneiro do movimento Black Power no Rio de Janeiro. No refrão ela diz “Sarará crioulo, Sarará crioulo”. Nesta canção política e poética, a cantora embalou muitas cabeças orgulhosas do cabelo crespo e arruivado, o sarará. Esses e muitos outros cabelos foram amplamente exibidos em bailes, grandes galerias e nas ruas das cidades brasileiras. A necessidade de afirmação na época tinha a ver com um contexto de repressão dos negros no país, mergulhado na ditadura militar. A repressão dos negros nesse contexto não era algo novo, uma vez que a opressão contra essa população já vinha de séculos atrás. Atualmente essa opressão encontra outras formas de manifestar-se, uma delas é a invisibilidade histórica de homens e mulheres negras em livros didáticos, nas artes visuais, nos meios de comunicação etc.

 

 

 

Sob o domínio português a mistura rolava solta, violenta, apaixonada, autoritária, despótica, sensual. Esta mistura sempre foi uma marca da colonização lusa, que ao invés de segregar abertamente, misturava. Essa miscigenação não parou de ocorrer, sobretudo quando no século XIX, como estratégia política, se começou a importar imigrantes europeus para substituir a mão-de-obra escrava, e embranquecer a população, pois se acreditava que um país com a maior parte da população negra não prosperaria. Visão que assombra os interesses democráticos ainda hoje. O pensamento do oitocentos só não considerava que tudo o que tínhamos construído até então, foi feito com a inteligência, perspicácia e empenho de homens negros, que trouxeram conhecimentos tecnológicos das sociedades africanas das quais provinham. A verdade é que todo brasileiro “tem sangue crioulo”, completa Sandra de Sá, que mereceria uma reflexão a parte por seus variados tipos de cabelo, usados em shows e capas de disco.

 

 

ASIÁTICOS, BRANCOS E NEGROS

Foi a partir de 1859, com o lançamento de As origens das espécies, do cientista britânico Charles Darwin (1809-1882), que uma explicação revolucionária sobre as origens da espécie humana surgiu. Para Darwin nós éramos culturalmente diferentes, mas semelhanças cruciais mostravam que tínhamos um ancestral comum. Éramos iguais e as diferenças físicas tinham relação com a hereditaridade e as capacidades de adaptação ao planeta. Na Europa, a manipulação do termo raça identificou os negros com o ancestral comum, macaco, de forma negativa. Foi assim que a cor da pele, a textura do cabelo, os traços fisionômicos serviram de base para separar os ditos superiores brancos dos inferiores negros e, mais tarde, outras pessoas consideradas inferiores como judeus, ciganos e homossexuais. Como disse Chico Science (1966-1997) “Indios, brancos, negros e mestiços, nada de errado em seus princípios. O seu e o meu são iguais correm nas veias sem parar”.

 

 

SE O CABELO É CRESPO A PELE É DA COR DO PECADO

Quem assistiu a novela Da cor do pecado, exibida em 2007, terá um exemplo notável, de como noções equivocadas de raça, estão atreladas a concepções preconceituosas de cor. A personagem principal, Preta, mulher jovem de pele escura e cabelo crespo, interpretada por Taís Araujo tinha a cor do pecado. Nesse sentido a mulher negra foi associada a uma sexualidade originalmente pecadora. Nas propagandas que faz, Taís nunca aparece com seu cabelo natural e, não raro, o que é vendido pela publicidade é o cabelo cacheado, brilhante, cheio, longo e perfeito, um tanto distante dos cabelos da mulherada negra. Como disse Lamartine Babo (1904-1966), e os Irmãos Valente O teu cabelo não nega mulata porque és mulata na cor.

 

Richarlyson (1982), ex-jogador do São Paulo, negro e cuja opção sexual é frequentemente colocada em dúvida, fez, enquanto estava no clube, um aplique nos cabelos e foi forçado a retirá-lo voltando a usar o comum cabelo bem curto, feito à máquina para agradar torcedores, diretoria e companheiros de bola. Sua atitude diante da pressão lembra a letra da marchinha Cabeleira do Zezé, quando no refrão diz: “Corta o cabelo dele!”. No Egito antigo usar um aplique como o do jogador não teria qualquer problema.

 

 

 

 

LISO E MACIO

Mas será que alisar o cabelo faz perder a raiz negra ou mestiça que temos? Alisar o cabelo é algo positivo, desde que não façamos isso para negar a história que trazemos no próprio corpo e, com a qual vivemos cotidianamente. Contudo, sabemos que certos setores da sociedade condenam os cabelos crespos, rebeldes, duros. Ruim para esses setores, que não abrem as portas à ampla realização da democracia igualitária que valoriza as diferenças. A saída porém, para os quem tem cabelos fora dos padrões estabelecidos, não é só “tratamento de choque”, “escova progressiva”, “definitiva” “japonesa”, ou cabeça raspada. As dificuldades enfrentadas por quem não tem os cabelos ditos “sexy” e desejáveis não são poucas, mas as tecnologias estão aí para afirmar o que temos ou para remodelar completamente a textura, a forma, o volume. Para o masculino, parece estar fora de cogitação, ao menos para alguns, colocar apliques como Rycharlyson fez, mas alisar o cabelo para os homens pode ser uma estratégia interessante. A cabeça raspada também é uma forma de exibir os cabelos, o que pode ter algo de negação, mas também de praticidade. Se os egípcios estão no continente africano e seus antigos ancestrais raspavam o cabelo, não era por motivo de negação da textura crespa, creio eu. É fato que adoravam usar perucas e não arriscaria dizer que seus olhos fossem coloridos. Qualquer coisa, na hora de decidir o que fazer com seus cabelos de raízes históricas profundas seja flexível, mas proteste e, diga o que Chico César disse na música Respeitem meus cabelos, brancos (2002):

 

Se eu quero pixaim, deixa
Se eu quero enrolar, deixa
Se eu quero colorir, deixa
Se eu quero assanhar, deixa
Deixa, deixa a madeixa balançar

 

Alexandre Araujo Bispo

ALEXANDRE ARAÚJO BISPO é doutor e mestre em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo. Bacharel e licenciado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo. Vive e trabalha em São Paulo. Atua com curadoria, crítica de arte, arte educação e produção cultural. Foi curador artístico, entre outras, das exposições: Aline Motta: Em três tempos: memória, viagem e água (2019); Medo, fascínio e repressão na Missão de Pesquisas Folclóricas, 1938-2015 (2015-2016); Negro Imaginário (2008). Curador educativo entre outras, das exposições: Todo poder ao povo: Emory Douglas e os Panteras Negras (2017) e Bienal Naïfs do Brasil (2018). Possui textos em publicações como Contemporary And América Latina; Revista Omenelick 2º Ato; Art Bazaar; Revista ZUM; SP-Arte; Pivô; Co-autor de Cidades sul americanas como arenas culturais (2019); Metrópole: experiência paulistana (2017) e Vida e Grafias: narrativas antropológicas entre biografia e etnografia (2015).

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.