outubro de 2015

AFRONTAMENTOS

Sidney Santiago Kuanza

 

 

 

 

 

colaboração Lucélia Sérgio
fotos MANDELACREW, Roniel Felipe e Vanderlei Yui

 

 

 

 

 

“…Então, que diferença pode haver nesta hora entre a política e uma história de amor? O amor, o modo como eu aprendi a amar me ensinou que a vida do amor é sempre uma vida pública: Beijar o seu preto em praça pública! Isso eu compreendi depois que ele me disse “isso será um segredo nosso”… Eu compreendi que o segredo é uma forma de controle. Eu compreendi que o meu desejo é a minha política. Eu compreendi que amar este homem, ou aquele, é o que garante a minha intimidade com a verdade. Me diziam que seria necessário lidar com o mundo, mas como lidar com alguém que não sabe que você existe? São todos inocentes e os inocentes são criminosos porque decidiram não saber…”

Trecho do espetáculo Cartas à Madame Satã ou Me Desespero Sem Notícias Suas
Cia. Os Crespos

Texto: José Fernando de Azevedo

 

 

 

 

Entender o amor como prioridade na vida das pessoas negras é uma manobra bastante complexa, porque significa questionar a nossa afetividade, como foi o amor em nossa família, nossas relações afetivas na infância e como é encarar o amor na fase adulta. Provavelmente encontraremos sérias barreiras emocionais com relação ao que entendemos por força, por revelar ou ocultar os sentimentos, pela necessidade de carinho em contraponto às questões de sobrevivência no dia a dia e também sobre nossas escolhas e desejos.

 

O racismo e o sentimento de supremacia dos brancos não foram eliminados com a abolição, e o impacto da escravidão ainda tem sido absorvido de geração a geração no que tange à nossa forma de amar. Como diz a escritora e feminista negra estadunidense bell hooks: “acreditamos que se nos deixarmos levar e render pelas emoções estaremos comprometendo nossa sobrevivência”, e que “o amor diminui nossa capacidade de desenvolver uma personalidade sólida”. Foi assim que aprendemos através de um sistema escravocrata que desmantelava os laços afetivos. Fomos obrigados a acreditar que temos o controle sobre nossas vidas quando reprimimos nossas emoções, ou quando damos pouca ou nenhuma importância ou carinho para nossa família, ou quando ensinamos nossos filhos e irmãos a não chorarem diante de uma cena de racismo ou discriminação.

 

Colocar o afeto no mesmo patamar de importância das questões de sobrevivência e da luta contra o racismo significa compreender que a opressão e as formas de dominação tem dificultado a existência completa das pessoas negras, porque quando o racismo opera na saúde emocional, na afetividade, ele cria marcas definitivas e nos enfraquece a ponto de não conseguirmos lutar por quem somos, distorcendo nossa imagem na idealização de quem gostaríamos de ser. Não estamos falando exclusivamente de luta nos âmbitos político, social e cultural, desse ser negro coletivo, mas também da luta pelas ambições individuais de plenitude, de direito à construção da identidade através do nome, da família, do carinho, do desejo, do afeto. Portanto o amor é exatamente o ponto nevrálgico de entendimento, compreensão e empoderamento do indivíduo negro. A partir do momento que acreditamos que nossa saúde emocional é importante temos força para lutar e suprir nossas outras necessidades.

 

“…no nosso processo de resistência coletiva é tão importante atender às necessidades emocionais quanto materiais”. (bell hooks)

 

Olharmos-nos internamente sem culpa e sem censura, entendendo que devemos lutar pelo que somos é algo que nos fortalecerá e que com certeza vem sendo combatido pelas classes dominantes e pelo pensamento eurocêntrico. Porque nos coloca no campo de batalha fortalecidos sobre nossa história e sobre a importância de nossas vidas.

 

 

 

 

POÉTICA EM LEGÍTIMA DEFESA

 

Sidney Santiago em cena no espetáculo Cartas à Madame Satã ou Me Desespero Sem Notícias Suas: “Um discurso a favor do amor”.

 

 

 

“Eu sou bicha porque quero e não deixo de ser homem por isso”.
(João Francisco dos Santos, a Madame Satã)

 

 

 

A arte, como campo simbólico das sociabilidades imaginadas, é lugar de possibilidades e experimentações de outras realidades tangíveis, e é nesse campo que vários artistas têm debatido questões relacionadas à afetividade e sua relação com a sociedade, principalmente as afetividades e identidades que se afastam do padrão normativo.

 

Nesse contexto nós, pesquisadores da Cia. Os Crespos de Teatro e Intervenção, realizamos nos últimos quatro anos (2011 – 2015) um trabalho de pesquisa cênica-áudio-visual que se propunha a mergulhar na afetividade de mulheres e homens negros, investigando o impacto da escravidão na nossa forma de amar. Intitulado Dos Desmanches aos Sonhos – Poética em Legítima Defesa, o projeto contemplado pelo Programa de Lei de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, compreendeu pesquisa, produção, temporada e circulação de cinco espetáculos. Dois desses trabalhos se ativeram sobre a afro-homo-afetividade masculina e sua relação com os padrões heteronormativos.

 

O racismo nos retira a possibilidade de ver e sentir, vemos aquilo que acreditamos ser e não conseguimos nos colocar no lugar do outro. Na tentativa de criar uma obra poética que ultrapasse essa fronteira nos colocamos na experiência do encontro para compreender contextos afetivos e identidades diversas. Bares, cinemas pornôs, praças, centros de diversidade, escritórios, penitenciárias, domicílios e tantas outras geografias foram percorridas durante a pesquisa de campo, que ocorreu na Cidade de São Paulo com homens, travestis e transexuais de diversas idades, mas com predominância jovem. A interrogação que nos tomava de assalto e norteava nossa busca partia do princípio de entender como essas pessoas articulam o amor em suas vidas diante de três marcadores determinantes: cor, sexualidade e identidade.

 

Coletamos dezenas de histórias e pudemos perceber como os estereótipos produzidos no período escravocrata impactam a afetividade destes homens. No mercado afetivo o homem negro ainda figura como reprodutor ligado ao incansável mito falocêntrico, representando papéis fixos de objeto de prazer ou estuprador. Permanece animalizado, sendo tratado e muitas vezes se tratando como um ser incapaz de amar. Contudo diante do processo de invisibilidade, desmanche e múltiplas violências, o que nos chamou a atenção foi um sonho em comum que, mesmo povoado do imaginário ideal hiper-romântico, vê no matrimônio ou na união civil a realização de seu afeto. Essas pessoas fazem sérias críticas às relações amorosas dentro da comunidade LGBTTI (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e intersex), na mesma medida em que são conscientes de como são vistos (hipersexualizados), principalmente quando se trata de arranjos inter-raciais. Além disso, muitas das experiências são marcadas por fortes conflitos familiares e por relações sociais truncadas.

 

A partir dessa experiência de escuta, Os Crespos criaram um espetáculo que juntou as entrevistas e a figura mítica e transgressiva de Madame Satã (1900-1976) – travesti pernambucano que viveu boa parte da vida no Rio de Janeiro trabalhando como artista em espetáculos e como segurança de casas noturnas, malandro e capoeirista, perseguido pela polícia passou 28 anos na prisão, pai de 7 filhos adotivos e que, por tudo isso, dava nó na cabeça de quem entendia amor e identidade somente dentro dos padrões normativos. Cartas à Madame Satã Ou Me Desespero Sem Notícias Suas tenta criar um discurso a favor do amor, e além de discutir questões dessa afetividade também se põe a construir um panfleto poético no qual a importância de tornar o seu amor um ato público é visto como ponto definitivo para a luta de quem se é.

 

Nesse mesmo caminho vários outros artistas tem inscrito na cidade e em outros lugares no Brasil um debate com a sociedade que caminha pelos mesmos pontos de interesse, apesar das diferentes formas de abordagem. Entre eles podemos destacar algumas figuras que tentam através da música, da internet, de intervenções urbanas, inscrever ou discutir no campo do imaginário a possibilidade de uma outra sociabilidade.

 

 

 

EM PRIMEIRA PESSOA – BANDEIRAS DE LIBERDADES

 

A performance de alguns artistas – pensando performance como espaço de intervenção do corpo e a relação do público com esse corpo – têm colocado sua experiência como testemunho de uma afetividade cercada de tabus. Esse corpo/testemunho é lugar de abertura para o campo do afeto possível, mas também é panfleto, denúncia e debate. Portanto essas intervenções performáticas se apoiam em questões pessoais e políticas fortemente marcadas nas características e trajetórias desse corpo negro que se põe a pensar determinadas realidades profundamente ligadas a uma afetividade que precisa ser libertada das amarras da opressão.

 

“O direito não acompanha as mudanças sociais, o direito é estático enquanto a sociedade é dinâmica…”. (Letícia Lanz)

 

Pensando nessa opressão e nos avanços e retrocessos da nossa sociedade, estamos nos deparando com um progresso no que tange ao debate e ao esclarecimento sobre as  identidades sexuais e de gênero no país. Todo esse debate é fruto da militância dos grupos LGBTTI’s, que tentam inserir tais pautas frisando a máxima da diversidade. Como resposta observamos,  no papel de testemunhas e cúmplices, uma onda de violência física e simbólica que tem crescido em larga escala contra essa população. Atos orquestrados por indivíduos e coletivos, que muitas vezes são alimentados por doutrinas pseudorreligiosas neopentecostais, que a cada dia sofisticam seus discursos de ódio, pautados por atrasadas interpretações bíblicas. Essas posturas têm conquistado a opinião pública, já bastante doutrinada pelo valor da família tradicional, para implantar no país leis que retiram os direitos conquistados por essa população, assim como impedem os avanços sociais sobre a educação de gênero no país.

 

Este cenário tem determinado, para alguns artistas/performers, a necessidade de uma postura em relação ao seu próprio corpo e também uma postura em relação às suas escolhas afetivas, ao seu desejo, de forma a pressionar esses indivíduos a confrontar a sociedade sobre a justiça e o direito ao afeto. E é na contramão diária dos retrocessos, pela busca legítima de representações positivas, baseada na autoexaltação, na valorização e empoderamento de nossas múltiplas identidades, que esta geração, na casa dos vinte e poucos anos, nascida após a Constituição de 1988 e o Plano Real, se coloca na cena.

 

Atores sociais que carregam consigo um misto de irreverência, deboche e seriedade, que têm cavado aberturas em espaços culturais, mídias diversas ou se inserindo interventivamente na vida social das pessoas, alguns se debruçando dedicadamente às articulações através de redes sociais. Suas vivências são o combustível da performance a serviço do encorajamento e exercício da cidadania. Em seus vocabulários, as conjugações dos verbos aceitar-se, amar-se e assumir-se são carros chefes. Manifestações que vão do poético ao panfleto, transitando entre o centro e a borda, tendo como resultado muitos admiradores e seguidores, que passam a ter espelhos fiéis e novos modelos de enfrentamento.

 

 

 

BLACK PINTAS, OU APRENDENDO A VOAR EM TEMPOS DE CHUMBO

 

  Ézio Rosa

 

 

“…Toda a autoestima e autoconfiança que floresceram no meu ser, vieram da raiz, vieram das tranças, vieram das mãos da Yaisa. Me senti forte, meu ascendente em Leão rugiu, os olhares e risadinhas não me amedrontaram. A estética pela estética, é só mais um reflexo no espelho ou selfie no Instagram, mas a estética como política liberta e empodera. Assumir essas formas de ser e estar além de enaltecer nossa ancestralidade também é posicionamento político. Ame-se!”. (Ézio Rosa)

 

Em SP, podemos apontar algumas trajetórias que tem se pautado na necessidade de visibilizar e lutar pelo espaço legítimo da diversidade sexual e de gênero de pessoas negras. O tumblr Bicha Nagô, criado pelo jovem Ezio Rosa para expor situações antes silenciadas, através do compartilhamento de situações cotidianas, criando espaços seguros para discutir sexualidade e raça, tem mais de 14mil curtidas no Facebook. Ezio tem expandido a militância via redes sociais à eventos artísticos organizados para discutir o tema. Performances artísticas aliadas ao debate são realizadas nesses eventos, que trazem a questão da identidade negra intrinsecamente ligada ao afeto.

 

Rico Dalasam, de Taboão da Serra para o mundo, é conhecido em vários países por seu EP Modo Diverso (2015). Surgido nas batalhas de MC da Santa Cruz, o rapper vem se atrevendo e inscrevendo uma narrativa pioneira dentro da Cultura Hip Hop. Partindo do princípio que essa mesma cultura se popularizou por contar a verdade, Dalasam escolheu falar sobre ser gay, como ama e como se enxerga dentro dessa sociedade, e como ela o vê. Ele diz falar de amor e de normatividade para que todos se sintam parte de algo. Com milhares de views na internet seus clips são um sucesso. Ele dedica a música Empoderada a toda alma feminina que pode vir nessa terra, e em Aceite-C diz:

 

“E ainda dá tempo de ser quem se é, tempo de ser quem se quer.
Deixa quem quiser falar… uma dica: aceite-se”

 

 

Inacaba Cia.

 

 

Rafael Guerche, da Inacaba Cia. com seu experimento contra a homofobia Meninos Também Amam – Um poema/manifesto cênico se aventura na tentativa de construir uma dramaturgia e encenação que possam dar espaço para os afetos entre iguais. Dentro do contexto de criação no cenário dos jovens estudantes de teatro, sua iniciativa se mostra poeticamente contundente expondo corpos nus que se amam diante do público, desaprisionando a afetividade.

 

“Meninos também amam,
também são sensíveis
também são viris,
ainda que coloridos?
que alegres?e amáveis…”

(Rafael Guerche)

 

 

 

DANDO UM CLOSE COM ARETHA SADICK

 

 

Natural de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, o ator, performer e costume designer Robson Rozza – como o mesmo se auto-intitula – nasceu em berço religioso (pais Testemunhas de Jeová) do subúrbio carioca. Introvertido e introspectivo na infância, o menino magricela cresceu dando lugar a um jovem inquieto e destemido que ganhou o mundo.

 

O primeiro passo foi atravessar as fronteiras geográficas que separam o subúrbio (Baixada Fluminense) da Zona Sul do Rio de Janeiro. Depois cursou Teatro, Moda e, em 2012, conheceu a “Terra da Rainha”. Antes, porém, precisamente no ano de 2011, integrou o elenco de apoio do seriado Malhação, da Rede Globo. Ainda estudou Arte e Educação e se tornou célebre figura da noite carioca. Tudo isso desbravado em menos de uma década.

 

Vivendo há quatro meses na cidade de São Paulo, Robson é o artista responsável pela persona Aretha Sadick, uma Drag Queen que além de ter reconhecida uma elaborada performance artística, não abre mão de rasgar o verbo quando os assuntos são política de inserção e direitos civis. Em uma manhã quente do mês de setembro, Robson nos recebeu para uma conversa na Casa das Rosas, na Avenida Paulista, em São Paulo, um endereço singular dedicado ao acervo e divulgação da poesia de Haroldo de Campos. Espaço certo para conhecermos a história de luta e engajamentos que uni a cria à sua criatura, e cujas trajetórias se amalgamam deixando importantes marcas na cena e nos debates sobre identidades plurais no país.

 

Rapaz aparentemente tímido, Robson, em poucos minutos de conversa toma o centro e encanta a todos com seu carisma ímpar, transportando-nos para o início dos anos 90 para contar o início da sua história. Filho de um ajudante geral com uma costureira (que no futuro se tornou modista), Robson teve uma infância modesta em uma casa com terreno compartilhado com outros membros da família e idas constantes as reuniões das Testemunhas de Jeová. Caçula de um casal de irmãos, teve na irmã mais velha suas primeiras referências de vida.

 

 

Dos tempos de meninice e puberdade, recorda-se que a timidez sempre foi o traço mais marcante da sua personalidade. Acanhamento esse decorrente de uma série de violências simbólicas e físicas que experienciou principalmente em sala de aula, em particular as agressões de uma colega chamada Camila, que se recusava a segurar a sua mão durante as atividades escolares. Além de toda uma gama de apelidos e xingamentos – muitos relacionados à figuras negras como Vera Verão, Mussum e outros decorrentes de representações negras que vinham da televisão – que foram os combustíveis responsáveis pelo déficit no aprendizado do ainda jovem Robson Rozza.

 

Querendo se passar por invisível, passou a acumular dúvidas sobre matérias, não conseguia interagir dentro da dinâmica escolar e com isso veio a reprovação. Passado algum tempo, a mãe o colocou em um colégio particular, e lá passou a frequentar aulas de teatro, com a prerrogativa primeira de perder a timidez. Rememora com riquezas de detalhes o primeiro dia de aula: o auditório, as explicações do professor, a luz baixa, mas, sobretudo, a sensação de liberdade que lhe acometeu ao experimentar outras possibilidades para o seu corpo. E dali, das luzes e do alto da ribalta, ele nunca mais saiu. Com o término do curso, passou a frequentar a sede da companhia do professor, em Botafogo, que lhe ofereceu uma espécie de estágio. Foi neste período que passou a compreender a dimensão das tensões sociais brasileiras e o que significava ser um jovem negro, filho de uma família humilde e morador da Baixada Fluminense. O teatro como pode observar, foi passaporte para outros destinos.

 

 

 

NOS EMBALOS DE SÁBADO À NOITE

 

Durante a adolescência, por conta do teatro, consegue se enturmar com os colegas do curso, começa a dormir fora, ter amigos e sair para as baladas. Deslumbra-se em conhecer a noite gay do subúrbio. Recorda- se, por exemplo, da afamada casa gay Papa G, de Madureira. Neste período a casa de uma amiga funcionava como guarida. Ali se recuperavam das noitadas e processavam as experiências vividas: “Na casa dela era onde nós poderíamos expurgar, ouvir Beyoncé, dar close e encher a cara sem problemas”. Quando retornava para casa da mãe, porém, precisava manter a descrição. Foi nesta época que começou a escapar das reuniões da igreja, e quanto mais escapava, mais era segurado. Com 17 anos, iniciou-se uma pressão familiar para ser batizado, ouvia constantemente: “Você tem que ser batizado, é uma idade importante pra Cristo”. Quando percebeu estava diante de uma cena pitoresca: seu batizado. Mergulhado em uma piscina, no momento em que emergiu do batismo, disse: “Que merda! Eu não quero isso”.

 

Diante dessas tensões e contradições ingressa na faculdade de Moda, na cidade do Rio de Janeiro. No início, ressabiado com o perfil da instituição se questionava: “Como se comportar dentro deste universo onde as pessoas se vestem com roupas caras e, você, no máximo consegue se vestir com C&A”. Em 2009, com pouco mais de um ano de curso, tranca a faculdade de moda e ingressa no disputado curso de Teatro da Escola Martins Pena (referência nos estudos em artes cênicas no país), onde volta a se encontrar com o palco e o universo da noite.

 

Na escola de teatro criou com os colegas um coletivo de pesquisa e linguagem onde ficou responsável pela área da interpretação. Como intérprete fez um monólogo inspirado no universo feminino presente nas canções do compositor Chico Buarque e, por conta dessa experiência, em 2011, aos 23 anos de idade, foi indicado por um amigo a vestir o traje do renomado estilista paranaense Henrique Filho (que já vestiu nomes como Luiza Brunet, Ivete Sangalo e Adriane Galisteu) para um importante acontecimento da noite carioca: a 22ª edição do concurso Miss Gay Rio de Janeiro, do qual foi ganhador do título: “tudo inesperado e sem planejamento (…) Para concorrer ao Miss Gay do Município fui de Cleópatra, usando um traje de gala batizado de ´Coração de Rubi´. (…) ganhei o concurso e desapareci. O burburinho corria: ´quem é esta pessoa que levou o título e sumiu?´ O concurso me deu uma ´passagem´, e eu poderia ter aproveitado muito mais. Mas eu quis me distanciar, era muito jovem”.

 

 

A fama repentina e a cobrança do movimento também foram motivos para a desistência. Durante um ano fez presenças VIP´s em eventos de toda natureza, e ouvia sempre: “Ah! Você é a Aretha, a Miss Gay?”. O artista confessa que não só gostava, como investia neste marketing pessoal de ser inacessível. “Tornar-se um figura desaparecida era o mote para criar vários imaginários. Para ver a Aretha você precisa ir ao monte Líbano. Onde ela está? Ninguém vê”. A ruptura com a noite foi um passo para retomar os estudos em moda e iniciar um curso e trabalho em Arte e Educação na unidade fluminense do CCBB (Centro Cultural Banco do Brasil). Essa rotina trouxe uma possibilidade de reflexão sobre o fazer artístico e seus compromissos com o social. Em 2012, realizou uma residência artística nas Olimpíadas de Londres, na Inglaterra. Durante a viagem teve a oportunidade de conhecer a noite gay londrina e conviver com outros contextos e aspectos da montação (ato de se travestir), bem diferentes do universo Drag Queen carioca onde estava inserido: “No Rio, a questão da montação ainda vive a ditadura do feminino: quadris, perucas, maquiagem, joias, a busca do feminino clássico”.

 

 

 

O BOM FILHO A CASA TORNA…

 

Logo depois que retornou ao Brasil o artista foi convidado por um amigo que estava organizando a festa itinerante Rebola para retomar sua atuação performática. “A Aretha estava adormecida, esquecida do contexto, e foi através desta volta, fazendo presença nesta festa que retomou seu lugar na cena”. Coincidentemente, neste mesmo período a noite gay carioca estava passando por uma nova renovação e, enriquecida com múltiplas possibilidades, com um pensamento mais elaborado da moda e mais madura, Aretha voltou repaginada: “Mais andrógena! Mais desconstruída, mais garota com mil e uma utilidades”.

 

Mesmo inserido, desde 2013, na noite gay como um nome que além da irreverência, do prestígio e da criatividade é sinônimo de ativismo, o artista inda não vive economicamente da profissão de Drag, porém ainda não sabe se gostaria. Para ele, ser Drag é apenas uma de suas possibilidades artísticas. Com a residência artística em Londres e outros trabalhos conseguiu sua independência financeira, foi morar sozinho em um apartamento no bairro de Santa Tereza e graças as vivências e percepções do Budismo (religião que escolheu para si), resolveu retomar um contato com a mãe, que andava distante de sua vida. “Os velhos monstros que estão guardados é precisos trazê-los para vida”. E um deles foi a necessidade de estabelecer uma relação mais sincera com a mãe. Fez questão de mostrar a casa, partilhar seu estilo de vida e revelar aspectos da sua sexualidade. Em uma conversa fatídica com a mãe, ela revelou que sempre soube da orientação de Robson, porém, aguardava um momento em que ele se contasse.

 

“Eu falei porra! Eu fiquei este tempo todo sofrendo e ela ali esperando a minha iniciativa”.

 

 

Depois desta conversa a relação com a mãe melhorou, a ponto dela fazer alguns figurinos para ele. Quanto aos shows, a mãe prefere não ver. Apenas acompanha as fotos e matérias de jornais. Para ela o maior medo é que Robson vire mulher. A mãe acompanhou o drama de um conhecido que é trans, toda marginalização e discriminação, e teme que estas situações possam acontecer com o filho. Já o elo com a irmã foi rompido. A mesma, por convicções religiosas, disse que não poderia partilhar das escolhas do irmão.

 

E na contramão das estatísticas, não deixando a peteca cair literalmente, é que Robson e Aretha seguem juntos partilhando o mesmo corpo físico e ideias. Atualmente faz parte do Drag- Se, coletivo de jovens artistas cariocas que possui um canal no YouTube cujo objetivo é apresentar semanalmente a porta dos fundos (backstage, shows, família, cotidiano, encontros sociais e atividades políticas) da vida desses artistas que empunham a cultura drag, sensibilizando e intensificando a necessidade de visibilidade e debate das identidades múltiplas.

 

Questionado sobre o futuro, prontamente respondeu: “pretendo unir os meus conhecimentos em artes cênicas, figurino, design de moda e as discussões sobre sexualidade e gênero. Gostaria também de poder trabalhar ministrando uma instituição, não exatamente em que área, mas um lugar como a escola que estudei, a Spectaculu Escola de Arte e Tecnologia, em que jovens pudessem se sentir a vontade para se desenvolver enquanto indivíduos. Isso no campo ´profissão mais estável´ (sic). E no paralelo, enquanto artista, desenvolver as questões de sexualidade, gênero e identidade nos campos que citei. Como disse, hoje sou Aretha Sadick Drag Queen, mas antes disso sou Robson Rozza, um artista”.

 

 

 

 

 

Sidney Santiago Kuanza

SIDNEY SANTIAGO KUANZA é ator e membro-fundador da Cia. Os Crespos (SP), pesquisador e estudante de Sociologia e Política (FESPSP).

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.