setembro de 2016

UM BAITA CLÃ OU, A HISTÓRIA DE UMA FAMÍLIA AFRO-BRASILEIRA*

Nabor Jr.

 

 

 

 

 

Família reunida (da esq. para dir.)
Liberto, Solano, Raquel, Margarida,
Godiva e Chiquinho (Francisco Solano Trindade Filho).

 

 

 

 

 

 

 

fotos MADELACREW e
ARQUIVO FAMÍLIA TRINDADE

 

 

 

 

 

 

 

Primeiro sistema social no qual o ser humano é inserido a partir do seu nascimento, a família – enquanto instituição, ou seja, organização social que controla o funcionamento da sociedade e, por conseguinte, dos indivíduos – é considerada a mais antiga da humanidade. Sua definição ao longo dos séculos, contudo, sofreu e ainda sofre variações no tempo e no espaço, oferecendo paradoxos para a sua plena compreensão. Na cultura ocidental, atualmente seu significado não mais se limita ao conjunto de pessoas heterossexuais que possuem grau de parentesco entre si e vivem em uma mesma casa – com seus ascendentes e descendentes – formando um lar. Suas novas configurações – atendendo a outros modelos conjugais e afetivos – estendem-se também a famílias constituídas por casais com orientações homoafetivas, biafetivas e até mesmo assexuais, fazendo surgir relações outras como a homoparentalidade, por exemplo.

 

Dinâmico, o conceito de família não pode ser considerado um sistema estanque, inalterável e definido, pois ele evolui e constantemente se transforma. O certo é que a família e as relações familiares são experiências sociais muito mais complexas do que seus próprios termos e categorizações (monoparental, homoparental, clássica) buscam definir, forjando-nos uma compreensão de que são os laços de afeição – mais do que as configurações genéticas – que de fato a constitui.

 

 

A FAMÍLIA NA PERSPECTIVA AFRICANA

Solano Trindade
Óleo sobre tela
1969

 

 

 

Em boa parte das sociedades africanas a família, resumidamente, é definida como uma unidade grupal na qual se desenvolvem três tipos de relações: aliança (casal), filiação (pais/ filhos) e consanguinidade (irmãos). Sua unidade fundamental é a família extensa, que funciona como elemento mítico, espiritual, social e solidário. Suas estruturas possuem um caráter intensamente comunitário, onde o indivíduo exerce funções com importância coletiva, e não raramente seu interesse é subordinado ao geral. O comunitarismo ainda faz parte da religião, das formas de vida econômica e da existência de inúmeras sociedades especiais (aquelas que atuam no espaço entre a família e a tribo).

 

Os sistemas familiares africanos caracterizam-se ainda pela diversidade dos seus modos de filiação (patrilinear, matrilinear, bilinear), encontrando-se cada indivíduo numa trama que o liga a todos os outros por conexões genealógicas: pertence ao grupo do pai, da mãe ou de ambos. Tais modos de filiação produzem o que se denomina linhagens, ou seja, conjuntos de homens e mulheres descendentes.

 

 

A FAMÍLIA NEGRA NO BRASIL

A origem da família negra no Brasil tem o seu gene no regime escravista que, a partir do século 16, violentamente desterrou irmãos e irmãs africanos para serem utilizados como de mão-de-obra escrava nas atividades econômicas da colônia portuguesa. E foi diante desta conjuntura que as primeiras filiações africanas em terras brasileiras surgiram, num primeiro momento como estratégia de sobrevivência dos cativos, que viram na operação uma maneira de estabelecer relações capazes de lhes proporcionar determinada segurança. Uma vez que os mercadores de escravos acreditavam que ao romper simbolicamente os laços de parentesco e vínculos familiares dos  africanos por meio da escravização os negros seriam mais obedientes à família dos seus donos. Por isso, logo que chegavam ao país os escravos eram logo separados do seu grupo linguístico, cultural e misturados com outros de tribos diversas para que não pudessem se comunicar.

 

A formação das primeiras famílias negras no país contou com o fundamental incentivo da Igreja católica, já que a oficialização das relações de intimidade amorosa e sexual, a partir das bênçãos sacramentais da Igreja, fazia parte das políticas que visavam à ordenação da sociedade desde o período colonial e não ignoravam os escravos. Nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (uma compilação de normas criada em 1707 para servir como a principal legislação eclesiástica no Brasil Colonial), a Igreja defendia o direito dos negros ao casamento como um meio de cristianizá-los e enquadrá-los dentro dos padrões vigentes.

 

O reconhecimento da Igreja a respeito da necessidade de oficializar essas relações não significou, contudo, uma crítica desta instituição ao sistema escravista, posto que a união conjugal não retirava do escravo suas obrigações para com seu senhor.

 

 

 

Raquel Trindade
Pau de Sebo
Óleo sobre tela
1962

 

 

 

 

No estudo A formação da família escrava de etnia africana: uma forma de resistência ao sistema escravista (2006), os autores William de Oliveira Avellar e Marilene Rosa Nogueira da Silva dizem que, além dos preceitos cristãos, “a Igreja chegou a usar argumentos econômicos na tentativa de estimular os proprietários a casarem seus escravos, apontando que este seria um ´instrumento que possibilitaria a reprodução e a consequente ampliação dos plantéis´”.

 

Se entre os membros da elite a legalização das uniões dependia do consentimento paterno, para os escravos sua efetivação dependia de outras variáveis, principalmente as originadas dos interesses dos proprietários. Pois, para que esses casamentos fossem efetivados, era imprescindível a permissão daqueles. Afinal, o escravo era uma propriedade – uma propriedade sui generis, é verdade, e por isso tinha suas ações limitadas por seu senhor.

 

“Ao permitir que seus escravos se casassem, os proprietários visavam principalmente garantir seus próprios interesses, fossem estes seguir os preceitos cristãos, evitar conflitos em suas propriedades ou ter acesso às indenizações do Fundo de Emancipação. Ao mesmo tempo, tal consentimento poderia ser resultado das pressões de seus escravos, posto que não se pode esquecer que estes buscavam formas de resistir às suas imposições, pois a negociação caminhava ao lado dos conflitos” (SILVA; REIS, 1989). As ameaças de fugas, suicídios ou atentados contra a vida dos senhores provavelmente pesavam quando estes concordavam em permitir os casamentos.

 

Do ponto de vista dos escravos, forros e mestiços, as motivações que os levavam a buscarem a oficialização de suas uniões pode estar no fato desta união ser um elemento estratégico no cenário das relações escravistas, pois, através deste, buscava-se uma estabilidade familiar e um certo respeito social.

 

Para estudiosos como o professor Robert W. Slenes, um dos primeiros motivos a ser levado em consideração quando da formação das primeiras famílias negras no Brasil diz respeito à busca destes por apoio emocional e afetivo. O autor aponta ainda que também não se podem ignorar as vantagens psicológicas que a família conferia aos escravos. Pequenas conquistas cotidianas poderiam influenciar na opção pelo casamento, já que este podia trazer expectativas de melhora de vida do escravo de várias maneiras: ter mais acesso a recursos materiais, pensar numa divisão do trabalho e a esperança de ter mais controle sobre sua vida doméstica.

 

Não se pode descartar, contudo, o casamento como uma estratégia para que separações fossem evitadas. A Lei do Ventre Livre, por exemplo, ao privilegiar os escravos casados, parece ter favorecido a realização de alguns casamentos.

 

É difícil afirmar quais motivações teriam levado esses homens e mulheres escravos a buscarem as bênçãos da Igreja para que suas relações fossem oficializadas. É certo que devemos considerar também a influência do modelo de família tido como ideal agindo sobre esses escravos, ainda mais quando essas relações envolviam livres e libertos.

 

O casamento fundado nos ideais do amor romântico, a posição de rainha do lar responsável pela felicidade de um grande grupo familiar, a posse quase inquestionada dos filhos, tudo isto representou para a maioria das mulheres do século 19 um destino intensamente desejado, e para muitas um caminho de verdadeira realização pessoal.

 

Embora essas características dificilmente pudessem ser vivenciadas em sua totalidade por uma mulher escrava, isso não exclui a possibilidade de que o casamento para estas também pudesse ser considerado o início da realização de um sonho, o ato que levaria à constituição ou legitimação de uma família naquele contexto.

 

Para o filósofo francês Pierre Félix Bourdieu, “a família em sua definição legítima é um privilégio instituído como norma universal”, um privilégio que implica um ganho simbólico, “o de ser como se deve, dentro da norma, portanto, de obter um lucro simbólico da normalidade”. Para uma mulher negra, escrava, livre ou liberta que vivia numa sociedade marcada pelo preconceito, ser casada poderia ser um elemento de normalidade e distinção social, da mesma forma que para o homem.

 

Carinho e amor são aspectos relevantes nos casamentos dos pobres e libertos, ao mesmo tempo não se pode descartar que talvez também buscassem redimir-se dos pecados oficializando suas “relações ilícitas”, segundo as normas da Igreja. Evitar separações, aumentar as possibilidades de alcançar a liberdade, todos esses são fatores que não devem ser ignorados ao se refletir sobre os elementos que contribuíram para a realização de casamentos de escravos e a constituição das primeiras famílias negras no Brasil.

 

Vinte anos após o teórico fim do regime escravista brasileiro, o casal Manoel Abílio Pompilho da Trindade e Emerenciana de Jesus Trindade deu início à formação de um dos mais importantes clãs negros da América Latina dedicado à preservação da cultura e da memória africana e afro-brasileira no continente: a família Trindade.

 

Curiosamente, a fundamental contribuição dessa tradicional família para a cultura brasileira não se iniciou – ao contrário do que pode parecer – em 24 de julho de 1908, quando do nascimento, no Recife, de Francisco Solano Trindade, o mais conhecido membro da família. A trajetória dos Trindade, nome cuja a estirpe advém da região das Guianas originalmente como Trinidad, começou, na verdade, com os pais de Solano, o sapateiro Manoel Abílio e a quituteira e empregada doméstica Emerenciana de Jesus.

 

Foi com o pai que o “famoso” filho aprendeu a magia da dança pastoril, do bumba-meu-boi. Já por influência indireta da mãe, analfabeta, para quem Solano lia novelas, literatura de cordel e poesia romântica – narrativas que ambos apreciavam, desenvolveu o gosto pela literatura. Vocação que mais tarde o consagraria como o “poeta do povo”.

 

“Meu avô, Manoel Abílio Trindade, pai do Solano, era velho de Pastoril. Para quem não sabe, o Pastoril é uma dança popular que foi trazida pelos portugueses para catequizar o povo nordestino. Trata-se de um teatro popular com vários personagens: o Diabo, o Príncipe e ele, Manoel Pompilho, participava da encenação como o Velho. Esse velho contava piadas e era muito engraçado. Me lembro que quando ele voltava do trabalho costumava reunir todos os netos ao seu redor e fazia algo semelhante ao que fazem os griots – mas que ele definia como Velho de Loas, que nada mais era do que um contar das histórias do nosso povo. Eu o via como um ator, sabe. E acho que ele realmente era pelo modo expressivo com que nos contava as histórias, e também pelo jeito como cantava para nós os cocos e músicas de pastoril. E tinha a minha avó por parte de mãe, a dona Damásia Maria do Nascimento, que dançava Maracatu, lá no Recife. Eu acho que o legado artístico, essa cultura popular tão enraizada na nossa família vem desde este período”, recorda-se, em meio a lembranças da sua infância no Recife, a escritora, artista plástica, corógrafa e folclorista Raquel Solano Trindade, filha mais velha de Solano e Maria Margarida.

 

Mestiço, fruto da relação de uma escrava negra com um francês das Guianas, Manoel Abílio Pompilho da Trindade foi, segundo seus descendentes, um homem muito inteligente e extremamente preocupado com a família. “Ele passava uma postura de muita dignidade”, conta Raquel que, além de desempenhar brilhantemente as funções de escritora, artista plástica, corógrafa e folclorista, também é ialorixá do candomblé, mas que há alguns anos – justamente em razão dos inúmeros compromisso profissionais – “apenas” joga búzios. “Pedi licença aos meus Orixás Obaluayê e Oyá”. Aliás, segundo a matriarca da família Trindade, um dos principais ensinamentos que recebeu dos seus pais e avós foi o respeito à diversidade religiosa, aptidão rara no Brasil contemporâneo: “Minha avó Emerenciana , que era filha de índio com negro, foi muito católica, tanto que ela até fazia Lapinha (presépio) na sala da casa dos meus avós. Por outro lado, meu avô Manoel, era diferente. Lembro de ouvir ele sussurrar uma língua estranha, que devia ser Yorubá ou outro dialeto africano, escondido no quarto. Porque naquele tempo, anos 30, 40, a cultura negra era muito perseguida no Brasil”.

 

Raquel Trindade, em Embu.

 

 

Na esteira dos pais, Solano também transmitiu pela oralidade aos filhos e netos as histórias das tradições populares de matriz africana praticadas no Brasil que aprendeu na infância e juventude vividas em Recife. Seus descendentes seguiram a mesma trajetória não apenas solidificando os laços familiares como também impedindo que suas histórias fossem negligenciadas.

 

“Meu pai, Solano Trindade, além da arte, conversava muito com a gente quando éramos criança. Falava de tudo, de política a religião. Ele costumava me dizer: ‘você tem que conhecer cultura negra e cultura branca, para ter conhecimento geral’. O único emprego formal que meu pai teve foi no IBGE, já no Rio de Janeiro. Mas ele o perdeu porque ele assinava o ponto pela manhã e depois me pegava para assistirmos ópera e consertos de música clássica no Teatro Municipal; os ensaios da Mercedes Batista (que foi a primeira que fez dança afro baseada nos orixás), os espetáculos do Teatro Experimental do Negro (do Abdias do Nascimento), da Orquestra Afro-brasileira (do maestro Abigail Moura). Enfim, me levava a Pinacoteca, a Biblioteca Municipal e acabava se esquecendo de voltar para o serviço para assinar o ponto. Aí ele acabou perdendo o emprego”, diz Raquel.

 

 

“Entre os raros poetas negros que conheço neste Brasil “mestiço”, Solano Trindade é o que melhor me satisfaz. Porque Solano Trindade não se encerrou na torre de marfim da arte e tampouco escreveu poesia negra com linguagem de “negro-branco”, desses que se envergonham de abordar o típico das gafieiras e das macumbas como legítimas expressões do anseio estético e da misteriosa espiritualidade negra. Ele é negro, sente como Negro, e como tal cantou as dores, as alegrias e as aspirações libertárias do afro-brasileiro. Pra mim Solano Trindade é o brado da raça, maior poeta Negro do Brasil contemporâneo”. Abdias do Nascimento.

 

 

Segundo Raquel, o protagonismo feminino dentro da família Trindade – reconhecido pela sua proeminente e fundamental trajetória – também apresenta importantes capítulos anteriores a sua consolidação como a mais ativa mulher do clã: “Minha mãe, Maria Margarida da Trindade, me ensinou todas as danças, com exceção do candomblé, já que ela era cristã (presbiteriana). Maracatu, coco, lundu, jongo, bumba-meu-boi, tudo foi ela que me ensinou. E me ensinou também a não beber, não fumar, não falar palavrão. Eu tive uma orientação muito forte, e tudo isso eu passei para os meus filhos e netos”.

 

Se anteriormente a chegada da família Trindade ao Rio de Janeiro, em 1944, as ações de preservação e resgate das culturas popular e afro-brasileira lideradas por Solano já se destacavam – entre outros fundou, ainda no Recife, em 1936, o Centro Cultural Afro-Brasileiro e a Frente Negra Pernambucana, bem como foi um dos idealizadores e organizadores do I Congresso Afro-Brasileiro – na então capital brasileira a contribuição do clã mostrou-se fundamental não apenas para elevar a autoestima de negros e pobres, como principalmente para dar visibilidade a população negra enquanto sujeito da sua própria história. Primeiro frequentando espaços estratégicos da cidade, filiando-se ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) e aliando-se a outros importantes nomes na luta pela dignidade e prosperidade dos afro-brasileiros. Foi assim que Solano começou a participar das reuniões no Vermelhinho, apelido de um bar então localizado na rua Araújo de Porto Alegre, em frente a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e onde se reuniam simpatizantes da esquerda, intelectuais e artistas como Abdias do Nascimento, Grande Otelo, Ruth de Souza, a pintora Djanira, entre outros. E posteriormente, quando Solano e Margarida foram convidados por Haroldo Costa para ministrarem aulas de danças populares no Teatro Folclórico Brasileiro.

 

“No Teatro Folclórico Brasileiro, depois que estava tudo ensaiado apareceu um polonês chamado Askanazzi que era dono de uma livraria e entrou com um dinheiro. Então o grupo se transformou na companhia de danças Brasiliana, mas com um perfil mais estilizado do que o Teatro Folclórico. Assim minha mãe e meu pai deixaram o grupo, e fundaram junto com Edson Carneiro, o Teatro Popular Brasileiro. O grupo nasceu na rua da Constituição. O grupo Teatro Folclórico, já como Brasiliana, foi para a Europa com as danças que os meus pais haviam ensinado, como o maracatu, o lundu e outras mais. Todas danças folclóricas, tradicionais afro-brasileiras”, lembra Raquel.

 

 

Raquel Trindade no Teatro Popular Solano Trindade, em Embu das Artes: resistência.

 

 

 

O elenco do Teatro Popular Brasileiro – assim como as bases que fundamentaram a criação do Teatro Experimental do Negro (TEN), em 1944 – era constituído por empregadas domésticas, estudantes, operários, professores, a maioria negra. Nada incomum a trajetória de Solano Trindade, que além da conhecida valorização da estética negra e da cultura afro-brasileira, politicamente sempre se colocou ao lado da população negra mais pobre, denunciando através de sua arte a discriminação e o racismo.

 

“Apesar de ser um grupo mais dedicado a dança, papai colocou o nome de Teatro porque ele achava que podia encenar uma peça. Aliás, papai tem uma peça que nunca foi montada, que se chama Malungos, que quer dizer companheiros. Além disso, ele queria fazer cenografia, trabalhos com intepretação. Há danças como o Bum-Meu-Boi que não deixam de ser um teatro popular porque tem texto, interpretação”.

 

Em 1955 o Teatro Popular Brasileiro – então formado por cerca de 30 pessoas, entre elas Raquel Trindade – foi convidado para uma excursão na Europa onde foram recebidos como grandes estrelas do teatro e dança brasileiras. As apresentações do grupo aconteceram da antiga na Tchecoslováquia e na Polônia. Antes disso, contudo, o Teatro Popular Brasileiro já havia encenado alguns espetáculos no Brasil.

 

Em 1975, Raquel Trindade, seguindo os passos familiares, fundou na cidade de Embu das Artes o Teatro Popular Solano Trindade (TPST), como continuidade das atividades iniciada por seus pais no Teatro Popular Brasileiro. Assim, o TPST surge com o objetivo de preservar e promover a cultura popular no Brasil, através das artes visuais, dança, teatro e literatura. Em mais de 40 anos de trabalho o TPST já realizou apresentações em diversas praças da capital e do interior de São Paulo, bem como em outros estados, além de promover um fundamental trabalho de resistência cultural em Embu das Artes – cidade adotada pela família ainda nos final dos anos 40 – por meio de oficinas de percussão, hip hop e capoeira.

 

“Ainda temos um forte trabalho em família juntos. Como o projeto Identidade Cultural Afro Brasileira, onde fomos contratados pela Secretaria de Educação de Embu e pela Unifesp. Neste projeto falo das grandes civilizações negras, as religiões de matriz africana, do teatro no Brasil, da poesia do negro, enfim. Neste mesmo projeto o Zinho Trindade, meu neto, fala da história do hip hop, o Vitor, meu filho, da música, a Maria – minha neta – da dança. E ainda tem as pessoas que são do teatro, a Cícera e o Adaílson que também nos ajudam neste trabalho que já fazem uns quatro anos que desenvolvemos”. Atualmente Raquel esta terminando um livro de danças de origem Bantu e começando uma autobiografia.

 

Assim como fizeram os pais de Solano, e posteriormente o próprio Solano e sua primeira esposa, Maria Margarida, Raquel Trindade também transmitiu, e ainda transmite, os ensinamentos que herdou durante a vida para os filhos e netos. ”Os bisnetos ainda são muito novos”, brinca.

 

Além de Raquel, Solano teve outros três filhos: Godiva, Liberto e Francisco (Chiquinho), todos mais novos que Raquel. Chiquinho morreu ainda aos 20 anos, em 1965, no Rio de Janeiro, assassinado numa prisão durante a ditadura militar. “Achavam que ele era Brizolista”, conta.

 

Dos três filhos de Raquel, Vitor Israel Trindade de Souza, Regina Célia Trindade de Lima e Adalgiza Trindade Bonfim (a Dadá), todos estão direta ou indiretamente ligados a promoção da cultura negra e a preservação da memória e da contribuição africana no Brasil. Vitor é músico; Regina, artesã, e Adalgiza pintora.

 

Raquel Trindade, durante evento em Embu das Artes.

 

 

 

Vitor Trindade é o mais ativo deles. Filho da artista com Jorge de Souza (Ogan Alabé), Vitor é músico multimídia, compositor, percussionista e professor de danças e ritmos tradicionais afro-brasileiros e, assim como a mãe dedica a vida a preservar o legado de Solano e da cultura negro brasileira. Diretor musical e vice-presidente do TPST, onde coordena vários cursos direcionados a comunidade de Embu das Artes, Vitor esta em constante movimento: músico e solista, já apresentou-se em quatro continentes e em várias capitais e cidades do interior do Brasil.

 

Boa parte dos netos de Raquel – bisnetos de Solano – segue a escrita. Airton Felix Olinto Trindade (Zinho Trindade) é poeta, cantor e MC; Manuel Abilho Olinto Trindade de Souza é músico; Olímpia Martiniano Trindade de Souza é comerciante; Maria dos Dias da Trindade é cantora e dançarina; André Aurino Trindade Bonfim Ymamura (chamado de japonegro pela família) também é músico. Enquanto, Diogo Trindade, Kenyata Trindade de Lima, Davi Trindade de Lima e Giulia Mina Klein Trindade ainda são muito novos.

 

Deste grupo destacam-se os trabalhos dos jovens irmãos Zinho e Manoel Trindade.

 

Há ainda dois elementos importantíssimos na família que, mesmo não tendo o sangue dos Trindade correndo nas veias, são considerados e tratados como filho e neto adotivos do clã. José Carlos (Caçapava), músico e construtor de instrumentos é uma figura fundamental dentro do TPST. Assim, com o jovem Marcelo Tomé – o neto adotivo, circense e administrador responsável pela contabilidade do TPST e das atividades de Raquel. A potente Capulanas Cia. de Arte Negra, grupo de teatro sediado em São Paulo e formado apenas por mulheres negras, é outro caso de adoção afetiva da família Trindade.

 

Família negra que preserva sua raiz ancestral e que generosamente compartilha a herança cultural da qual é herdeira, os Trindade nos permitem crer na força e no potencial transformador da mais remota instituição social da humanidade. Oxalá outras famílias continuem formando seus clãs, inspirando e enriquecendo as histórias de luta, competência e vitória das famílias negras brasileiras.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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PARA LER

 

A Reafirmação da Identidade Étnica na Família Negra: A Contribuição do Trabalho Educativo no Instituto Cultural Steve Biko
Ioná Cristina Magalhães da Paixão Barata
Universidade Católica de Salvador
Mestrado em Família na Sociedade Conteporâena
Salvador, 2005

 

A formação da família escrava de etnia africana: uma forma de resistência ao sistema escravista
William de Oliveira Avellar e Marilene Rosa Nogueira da Silva
Usos do passado: XII Encontro Regional de História (Anpuh)
Rio de Janeiro, 2006

 

Escravo também casava: as uniões oficializadas pela Igreja na São Luís do século XIX
Cristiane Pinheiro Santos Jacinto
In: VIII Simpósio Nacional da Associação Brasileira de História das Religiões, 2006, São Luís. Anais do VIII Simpósio Nacional da Associação Brasileira de História das Religões, 2006.

 

Histórias de famílias escravas
Cristiany Miranda Rocha
Editora da Unicamp

 

História da família no Brasil Colonial
Maria Beatriz Nizza da Silva
RJ: Nova Fronteira
1998

 

 

 

 

 

 

*Este texto foi originalmente publicado no segundo número da revista Legítima Defesa –  Uma Revista de Teatro Negro, no segundo semestre de 2016.

 

 

 

 

 

Nabor Jr.

Nabor Jr. é fundador-diretor da Revista O Menelick 2° Ato. Jornalista com especialização em Jornalismo Cultural e História da Arte, também atua como fotógrafo com o pseudônimo MANDELACREW.

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.