julho de 2019

OS DILEMAS SÃO OUTROS – UMA ENTREVISTA COM EUSTÁQUIO NEVES

Glaucea Helena de Britto

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

colaboração nabor jr.
imagens cortesia do artista

 

 

 

Se tomarmos como referência o surgimento da fotografia localizado nas primeiras décadas do século XIX na Europa, a produção fotográfica de autoria negra de forma organizada é recente. De acordo com o pensador jamaicano Stuart Hall (2001), antes de 1985 não havia movimento de fotografia considerando este critério específico de autoria e eram pouquíssimos os fotógrafos negros estabelecidos no circuito artístico e comercial das grandes metrópoles. Somente a partir desse marco temporal é que a produção realizada segundo um recorte étnico-racial começa a figurar de modo afirmativo e em caráter público, primeiramente em Londres.

 

Entender as experiências históricas da população negra através da Diáspora torna-se então fundamental para compreender como ocorre a inserção dos artistas fotógrafos negros no sistema de arte a partir deste momento – em que se tornam sujeitos de suas próprias práticas representacionais, disputando narrativas com e dentro da imagem. Sabemos que ao longo do século XX vários debates importantes no campo artístico estiveram em andamento, como as relações entre fotografia e arte, a constituição dos acervos fotográficos dos museus e a ampliação do campo de ação da fotografia na arte contemporânea. Estando a par de todas essas discussões, cabe acrescentar aquelas voltadas ao nosso foco de interesse: de que maneira a fotografia de autoria negra tem lidado com a problemática das narrativas hegemônicas da História da Arte? Como estão localizadas na historiografia dita oficial?

 

A reflexão sobre tais questionamentos suscita uma multiplicidade de experiências, trajetórias, visões e vozes, dada a complexidade dos processos analisados. Nesta publicação, o pensamento crítico nos chega através da obra e das palavras de José Eustáquio Neves de Paula (Juatuba – MG, 1955), um dos maiores fotógrafos do país. Há 30 anos mantendo uma produção ininterrupta, mais de 40 exposições individuais e coletivas realizadas e cerca de 10 premiações no currículo, a obra de Eustáquio Neves faz parte de prestigiosas coleções de arte ao redor do mundo, entre elas, do Museum of Fine Arts Houston (EUA), da Pinacoteca do Estado de São Paulo, do MASP, do Museu Afro Brasil, entre outras.

 

Ao lado das pesquisas históricas relativas à trajetória da população negra no Brasil que invariavelmente acompanham cada uma das séries desenvolvidas por Neves, o seu universo criativo nos apresenta um repertório visual surpreendente – basta ver a sua mais recente exposição individual “Aberto Pela Aduana – Livro de Artista de Eustáquio Neves”, aberta no último dia 7 de maio, no Museu Afro Brasil, em São Paulo. A densidade poética de suas imagens causa ruído na construção dos conceitos que procuram definir o que é arte, o que é fotografia e o trânsito entre elas. Este “entre-lugar”, ou este novo lugar que a obra do artista ocupa em campo expandido nos parece ainda subestimado pelo sistema de arte, que encontra dificuldades estruturais em avaliar e inserir tal produção, o que afeta diretamente o amplo reconhecimento ofertado a artistas como Eustáquio Neves. Se, num primeiro momento, o dilema da autoria negra estava associado à oportunidade de acesso aos meios e circuitos de produção artística em sua vertente fotográfica, hoje ele poderia estar ligado à busca de uma compreensão mais analítica desta obra no âmbito da contemporaneidade.

 

Conforme a análise de Rubens Fernandes Junior (2003), a técnica subversiva de Eustáquio Neves rompe com o paradigma convencional da fotografia, pois ele “não acredita apenas no registro da câmera fotográfica e produz uma imagem permeada por outras imagens que ampliam significativamente nossa percepção”. O seu processo criativo envolve a manipulação experimental dos materiais em laboratório, nas quais o artista sobrepõe a uma imagem principal fragmentos de outros negativos, cópias de outras imagens e informações gráficas, por exemplo.
Por fim, Eustáquio Neves integra um seleto grupo de fotógrafos autorais brasileiros, com uma estética avassaladora, marcante, única em sua construção poética. Some-se a isso o fato de pouquíssimos fotógrafos terem a sofisticação de sua argumentação artística. Deste modo, podemos facilmente afirmar: os dilemas agora são outros. Eustáquio Neves é um dos mais importantes artistas fotógrafos que o Brasil já produziu. Que o sistema seja revisto.

 

Em entrevista, o artista mineiro revela alguns dos principais aspectos de sua obra e do seu fazer artístico.

 

 

Eustáquio Neves
Livro de Artista
Fotografia técnica mista

 

 

 

 

 

O MENELICK 2º ATO – Como surgiu o seu interesse pela fotografia?

EUSTÁQUIO NEVES – Eu sempre me interessei pelas artes em geral, na infância construía brinquedos inventados, autodidata em quase todas as manifestações artísticas que experimentei, desenho, música e com a fotografia não foi diferente.

 

Terminei meu curso de Química Industrial e depois de um estágio no Departamento de Química Agrícola do Ministério da Agricultura, em Belo Horizonte, fui trabalhar no interior do norte de Goiás em uma mineradora de níquel. Lá, naquele lugar no meio do nada, percebo que preciso de algo para ocupar meu tempo ocioso e solitário. Daí comprei uma câmera fotográfica, minha primeira câmera profissional. Na medida que o tempo passava, isso ao longo do primeiro ano com a câmera, crescia meu interesse pela fotografia. Então comecei a estudar fotografia por meio de um curso da editora Rio Gráfica, que era encontrado semanalmente em fascículos nas bancas de revista.

 

Três anos depois abandonei meu emprego de químico na mineradora incentivado pelo meu chefe, que acreditava que meu negócio era a fotografia. Acertaram minhas contas na empresa, peguei todas as minhas economias e montei meu primeiro estúdio, isso ainda em Goiás. Voltei para BH em 1986 e, em 1990, inscrevi meu trabalho pela primeira vez em um concurso de fotografia, no resultado fui informado que uma das fotos foi primeiro lugar, e as outras duas menções honrosas porque o regulamento não permitia que eles me dessem o primeiro, segundo e terceiro lugar como eles gostariam. Daí começa meu interesse pela fotografia de autor.

 

 

OM2ATO – No que diz respeito à forma de apresentação de seu trabalho, existe uma recorrência na composição de séries fotográficas. Quais são os principais elementos considerados durante o processo de criação de cada uma delas? O que o levou a esta solução formal?

EN – Os principais elementos são, sem dúvida, as pesquisas e o tema, que parece bem obvio, mas é como funciona no meu processo de criação. O que me levou a isso é que sempre estou contando uma história, como em um filme, na literatura ou em outras artes narrativas.

 

 

 

Selfie: O fotógrafo mineiro Eustáquio Neves, em 1992, em teste de luz no seu segundo estúdio fotográfico, em Belo Horizonte (MG)

 

 

 

 

OM2ATO – A expansão da experiência do visível é uma das características apontadas pela crítica sobre suas imagens. Como você analisa essa definição? Qual a sua relação com a crítica de arte?

EN – A minha técnica, por exemplo, não chego ser indiferente ela, mas não é o mais importante para mim. É o conjunto de tudo, técnica, assunto, discurso – e todo as questões que envolvem o discurso – que leva o meu trabalho ao resultado do que ele é.

Isso da expansão do visível foi a estratégia que descobri para ampliar os significados que tento dar ao que faço.

 

 

“Vejo hoje que as mulheres negras, não só na fotografia, têm feito um movimento muito mais contundente do que nós, artistas negros homens, fizemos nas últimas gerações”.   

OM2ATO – Quais aspectos da obra de Arthur Bispo do Rosário influenciaram o seu fazer artístico? Quais outros artistas negros possuem trabalhos inspiradores no seu ponto de vista?

EN – Sem dúvida na obra do Arthur Bispo é a construção e a ordenação, e agora que o Machado de Assis foi oficialmente declarado negro, (rs), sem dúvida tem alguma influência na minha obra que é bem barroca, li praticamente tudo de Machado de Assis dos 13 aos 15 anos de idade.
Quanto a outros artistas, Mestre Didi, Emanoel Araujo, Itamar Assumpção, Fela Kuti e Clementina de Jesus na música, Basquiat entre outros.

 

 

 

Eustáquio Neves
Série Máscara de Punição
Montada em moldura de madeira
15x19cm
2003/2004

 

 

 

 

OM2ATO – Quais transformações e permanências no mercado da arte voltado para a fotografia autoral você observa, levando em consideração o início de sua trajetória até os dias atuais?

EN – Quando eu comecei na fotografia, a fotografia considerada arte pode se dizer que nem havia um mercado ainda.

A expansão dos festivais de fotografia, a entrada cada vez maior da fotografia nas galerias e feiras de artes e, sem dúvida, iniciativas como a do Museu Afro Brasil, o Videobrasil, em São Paulo, a Associação dos Fotógrafos Negros de Londres – que já me apoiou – contribuíram e contribuem muito para essa inserção da fotografia no mercado.

“…nunca deixei me intimidar e por isso me considero um marginal, apesar de algum reconhecimento”.

 

A internet também trouxe uma grande transformação, onde tanto o artista quanto o público interessado em arte tem muito mais acesso. Quando comecei a coisa mais avançada para comunicação era o fax.

Felizmente eu já fazia fotografia de autor enquanto boa parte dos fotógrafos acreditava que um bom portfólio era feito com as fotos mais bonitas, sem importar o tema.

 

 

 

Eustáquio Neves
Série Objetivação do Corpo
1999

 

 

 

 

 

OM2ATO – Partindo de sua experiência, quais são os desafios para os fotógrafos negros no campo artístico? E em relação às fotógrafas negras, o que tem observado?

EN – Para começar, coisa de preto não interessa muito, apesar das pessoas consumirem diariamente, as vezes sem mesmo saber. Samba, funk, rock, literatura, culinária etc. Na fotografia, quando o negro não estava de uma forma estereotipada fetichizada, não havia uma atenção para trabalhos que tratam-se das questões que eu e outros autores negros sempre trouxemos Vejo hoje que as mulheres negras, não só na fotografia, têm feito um movimento muito mais contundente do que nós, artistas negros homens, fizemos nas últimas gerações.

 

 

 

 

 

Eustáquio Neves
Sem título (Série Cartas ao Mar)
Técnica mista
2015

 

 

 

 

OM2ATO – A partir dos debates contemporâneos que visam estabelecer diferentes perspectivas sobre a problemática das narrativas hegemônicas na arte, como você poderia situar a sua produção?

EN – A minha produção sempre esteve dentro dessa questão, não teria como ser diferente, mas sempre acreditei que o meu lugar é onde eu queira estar e em alguns casos estar sem querer pertencer, nunca deixei me intimidar e por isso me considero um marginal apesar de algum reconhecimento.

 

 

Eustáquio Neves
Sem título
s/d

 

 

 

OM2ATO – De que maneira ocorre a experimentação tridimensional como resultado final da sua obra, uma vez que, apesar do seu trabalho ser frequentemente apresentado em suporte bidimensional composto por camadas que se sobrepõe, que se fundem, é na obra “Livro de Artista”, por exemplo, que de fato a tridimensionalidade se faz presente? Quais outros trabalhos dispõem de suporte tridimensional?

EN – Meu trabalho em alguns casos pede soluções que o torna um objeto. Já fiz inclusive escultura, tenho alguns objetos produzidos, são resultados que não passam só pela questão do experimento, e sim necessidade de resolver ideias. Se eu penso que tal ideia vai ser melhor resolvida em vídeo, por exemplo, vai ser um vídeo.

 

 

 

Eustáquio Neves
Série Arturos
2000

 

 

 

 

OM2ATO – Qual relação você estabelece entre os registros fotográficos de sua autoria, no que diz respeito ao processo de captura da imagem, e a utilização de arquivo material de outros fotógrafos? Como você observa esse movimento de apropriação e recontextualização de imagens na produção contemporânea?

EN – Bastante válido. Especialmente se esse recurso se presta para dar um outro sentido de fato importante para um novo trabalho a partir dessa apropriação.

Na série Máscara de Punição, por exemplo, feita a partir de uma foto da minha mãe quando ela tinha dezoito anos de idade, e que foi o primeiro trabalho onde me apropriei de uma imagem, perdi todo o pudor em lançar mão desse recurso.

 

“Vejo o meu trabalho como uma ferramenta de luta e me sinto feliz por fazer parte desse debate sem fim”.

OM2ATO – Certa vez você afirmou que seus trabalhos possuem intrínseca relação autobiográfica. Ao falar de si, mesmo que involuntariamente, você, por ser um homem, negro, brasileiro e artista, acaba também dando voz, ou sendo a voz, de toda uma comunidade com um perfil semelhante ao seu. Como você lida com este aspecto da sua obra? Digo, como você se sente sendo um integrante deste grupo de artistas negros que estimulam, por meio dos seus trabalhos, a reflexão sobre a condição da população negra no Brasil contemporâneo?

EN – Voltando a questão da hegemonia, somos nós com os nossos recursos, seja qual for, que temos que exigir e dar voz ao que somos, ao que fazemos e para o que viemos. Vejo o meu trabalho como uma ferramenta de luta e me sinto feliz fazer parte desse debate sem fim.

 

 

 

Eustáquio Neves
Série Arturos
1994

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

  • Referências Bibliográficas

 

– SARDENBERG, Ricardo. Como funciona a máquina fotográfica in: Fotografia na Arte Brasileira séc. XXI. Org. Isabel Diegues, Eduardo Ortega. Rio de Janeiro: Cobogó, 2013.

– HALL, Stuart; SEALY, Mark. Contemporary photographers and black identity. In: Different: a historical context. London: Phaidon, 2001.

– JUNIOR, Rubens Fernandes. Labirinto e Identidades – Panorama da Fotografia no Brasil 1946-1998. Cosac & Naify. 2003.

 

 

 

 

 

 

Glaucea Helena de Britto

GLAUCEA HELENA DE BRITTO é artista visual, arte educadora e pesquisadora. Mestranda em Artes pelo Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo (PGEHA-USP), Especialista em Gestão Cultural pelo Centro Universitário Senac e Licenciada em Educação Artística pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Foi arte educadora para as relações étnico-raciais da Secretaria Municipal de Educação (SME-SP), assistente de coordenação do Núcleo de Educação do Museu Afro Brasil e assistente artístico-pedagógica da Fábrica de Cultura Brasilândia. Atualmente é pesquisadora no projeto Leituras de Acervo do Museu Afro Brasil e gestora do Terreirão Cultural.

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.