setembro de 2019

A DEUSA NEGRA – PRIMEIRAS ONDAS DE ATLANTICIDADES NO CINEMA NEGRO BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO

Marco Aurelio da C. Correa

 

 

 

 

fotos chuck martin

 

 

 

 

 

 

Pensar em confluências entre ambos os litorais do atlântico negro na atualidade não é uma tarefa tão difícil quanto foi outrora. As ambições panafricanistas e afrocentradas de grandes pensadores sobre os movimentos políticos pelo atlântico não imaginariam que atualmente poucos segundos separariam virtualmente as costas do oceano. Porém, não se suporia que apesar das distâncias terem sido diminuídas pelas tecnologias digitais, ainda existiria uma grande demanda de comunicação entre a diáspora africana.

 

Entendemos como diáspora africana aqui não só os fluxos demográficos que originaram a comunidade negra por todo o globo, considerando os movimentos habitacionais originais, o sequestro colonial, a migração contemporânea. Mas compreendemos que a diáspora africana é o constante fluxo de imagens, sons e sentidos que ressignificam o coletivo estético que define a pluralidade presente na existência negra contemporânea. Ou seja, a diáspora não se define mais somente pela movimentação de pessoas negras através do atlântico, no continente africano ou no restante do globo, mas sim qualquer forma de comunicação, circulação de informações, movimento de estéticas negras por todo o mundo.

 

Se inicialmente esse movimento transatlântico foi pensado como uma forma política de emancipação coletiva por uma possível unidade social ou política, com o advento das tecnologias da informação e comunicação ele toma outra forma. Parte da ideia não de uma unicidade, mas sim de confluências de diferenças que formam uma gama de sentidos dentro de um referencial e um objetivo.

 

O referencial são as estéticas e subjetividades de origens africanas. O objetivo é a emancipação de qualquer relação de dominação, reminiscente ou não do trauma colonial. Sem confundir com uma tentativa de um retorno romantizado para uma África inexistente, mas compreender de que formas as raízes africanas se elaboram como rizomas pela diáspora, desabrochando assim, inventividades que contestem os paradigmas consolidados pelo mundo ocidental. Reconhecendo a necessidade de reinventar uma civilidade contemporânea que não dê continuidade aos paradigmas da ocidentalidade, como por exemplo a racionalização da vida, a individualidade e a competitividade.

 

O filme A Deusa Negra (1979), de Ola Balogun, entra nesse contexto, não como uma produção redentora de uma semiótica revolucionária, mas como um primeiro exemplo no contexto cinematográfico brasileiro de uma produção realizada nessas relações da diáspora africana que se tem registro.

 

 

Cartaz do filme A Deusa Negra (1979)

 

 

O cinema brasileiro por seu caráter terceiromundista é bombardeado por produções do além atlântico. O contrário também acontece, principalmente com a repercussão do cinema novo sendo premiado nos festivais estrangeiros, porém em casos específicos, mais relacionados a questão artística ou política. Ao invés da influência mercadológica de Hollywood, por exemplo. Elencamos dois casos curiosos de co-produção brasileira e estrangeira: o primeiro Orfeu Negro (1959), de Marcel Camus, ganhador do Oscar de filme estrangeiro em 1960, representando a França; e o Leão de Sete Cabeças (1970), gravado por Glauber Rocha em exílio na República Democrática do Congo. Ambos os filmes marcam uma coprodução entre Brasil-França-Itália e tem como centralidade nos enredos questões relacionadas a situação das populações negras, apesar de serem dirigidos por diretores brancos, outro ponto em comum entre as produções. Em Orfeu, temos uma readaptação do conto grego homônimo para os morros cariocas no período do carnaval e, em Leão, uma fábula sobre a liberação das colônias  na África.

 

“O filme A Deusa Negra (…) é um primeiro exemplo no contexto cinematográfico brasileiro de uma produção realizada nessas relações da diáspora africana que se tem registro”.

 

O caso de A Deusa Negra é completamente aparte porque ele marca uma das primeiras co-produções entre o Brasil e um país do continente africano, no caso do filme a Nigéria, um país com estreitas relações históricas com o território brasileiro. Apesar das relações entre os dois países acontecerem antes da existência oficial dos dois estados nações que ocupam estes territórios, o fluxo entre as duas terras se dá desde o período colonial. Esta relação, marcada principalmente pelo sequestro de negros escravizados para o Brasil vai além da simples transposição de corpos pelo atlântico. Existe um grande contingente civilizatório comum as duas populações devido aos cultos de origem Nagô-Iourubá, sendo reconhecidos aos ritos do Candomblé e da Umbanda principalmente, mas indo muito mais além do que o conjunto religioso, mas sim uma ampla visão de mundo que compreende a forma humana de se organizar socialmente bem diferente da hegemonia do mundo ocidental.

 

 

O cineasta Zózimo Bulbul, durante passagem pelo Harlem, nos Estados Unidos, em janeiro de 1996, pelas lentes de Chuck Martin

 

 

O enredo de A Deusa Negra parte exatamente deste movimento, Babatunde, o protagonista do enredo interpretado por Zózimo Bulbul, escuta os últimos desejos do seu pai em seu leito de morte, que pede para o filho retornar ao Brasil e encontrar seus ancestrais que foram trazidos a força para esta terra. O pai de Babatunde era um dos negros que retornaram livremente para a África com a abolição no Brasil. A única pista que Babatunde tem de seu passado nas Américas é um antigo artefato Iorubá representando Iemanjá, a rainha dos mares. Retornando para o Brasil, Babatunde busca na ancestralidade do candomblé as ligações esquecidas com o seu próprio passado africano.

 

Só a premissa do filme já seria fato de se comemorar em um Brasil que na época reprimira qualquer manifestação de cunho racial, que iniciava as negociações para anistia política e engatinhava uma produção cinematográfica com realizadores negros. A Nigéria também não vivia o melhor dos seus períodos, e ainda se recuperava das consequências de sua catastrófica guerra civil.

 

 

 

Cena do filme A Deusa Negra (1979)

 

 

 

A ambição do projeto se deve principalmente a duas figuras centrais, o cineasta Ola Balogun e o protagonista do filme, Zózimo Bulbul. Os dois foram pioneiros na produção cinematográfica em seus países. Balogun um dos pais do movimento independente e lucrativo de Nollywood, e Bulbul o pai do rebelde cinema negro brasileiro. Porém, o time de artistas envolvidos na produção desse filme é exemplar: Raquel Trindade, Clementino Kele, Xica Xavier, Aniceto do Império, Lea Garcia, Quim Negro, Jorge Coutinho, Sônia Santos, Antonio Pitanga, dentre outros.

 

“Só a premissa do filme já seria fato de se comemorar em um Brasil que na época reprimira qualquer manifestação de cunho racial, que iniciava as negociações para anistia política e engatinhava uma produção cinematográfica com realizadores negros”.

 

Zózimo e Balogun são dois representantes de um movimento cinematográfico que se origina em confluências diaspóricas. A independência dos países africanos dos anos 1960 e 70 origina um levante de recriações estéticas e subjetivas por todo o mundo negro, reverberando nos panteras negras estadunidenses, nos bailes blacks brasileiros e na política panafricanista na África. Que bebendo da fonte de Marcus Garvey, Du Bois, Cesaire, Fanon e Senghor começam a reimaginar uma África distante dos padrões eurocêntricos de colonização. Reinventando assim o significado de uma estética negra, um imaginário redefinido pelos próprios padrões da diáspora. Consequência de todo este movimento é o Festival Panafricano de Cinema e Televisão de Ouagadougou (FESPACO), evento de encontro e trocas de cineastas de toda a diáspora que acontece desde 1969, na capital de Burkina Faso. Os dois cineastas emergentes se juntam em prol de um movimento transatlântico de recontar histórias negras distantes dos estereótipos e caricaturas do grande cinema.

 

 

 

Cenas do filme A Deusa Negra (1979)

 

 

 

A narrativa é um marco para se pensar a intercessão atlântica entre Brasil e África, entre o encontro das marés civilizatórias entre os povos Iorubá que semeiam um outro sentido de mundo. As águas de Iemanjá são a referência perfeita para se proporcionar o reencontro entre povos tão iguais entre si, mas que são distanciados um dos outros por causa de um movimento de globalização que só aproxima as grandes metrópoles, mas não as pequenas aldeias.

 

Apesar de grandes dificuldades da produção, distribuição e preservação, A Deusa Negra conseguiu se efetuar como um clássico. Seria possível se pensar um Ôrí (1989), um Atlântico Negro (1998) ou até um Kbela (2015) sem o legado deixado por cineastas da diáspora como a parceria concretizada em Deusa Negra?

 

A cinematografia da diáspora negra, principalmente a figura política de Zózimo e seus encontros de Cinema compõe na atualidade vasto repertório de filmes que mergulham e navegam pelo atlântico negro. Não é à toa que para o 12º Encontro de Cinema Negro,  que acontecerá no tradicional Odeon, no centro do Rio de Janeiro, entre os próximos dias 23 de outubro e 3 de Novembro de 2019, foram selecionados 74 filmes nacionais, de cinco regiões do Brasil e 18 filmes internacionais, entre longas e curtas, para celebrarem a maior janela de exibição afrodiaspórica de cinema negro no país.

 

 

Capa do disco com a trilha sonora do filme A Deusa Negra (1979): raridade

 

 

 

Diretamente e indiretamente Deusa Negra foi a primeira onda que ligou o cinema atlântico brasileiro com a África. Encontramos na contemporaneidade um vasto repertório de iniciativas, cineastas e filmes que representam essas confluências atlânticas, como nas narrativas: Eu tenho a palavra (2009), com direção de Lilian Solá Santiago, sobre as línguas de Angola no Brasil; O lá e o aqui (2017), de Sandro Lopes, sobre estudantes intercambistas africanos no Brasil; Negro Lá, Negro Cá (2016), com direção de Eduardo Souza, sobre a vida de africanos no nordeste brasileiro; Siyanda (2017), de Hugo Lima, sobre o encontro da ancestralidade africana de migrantes no Brasil; Nome de Batismo – Alice (2017), de Tila Chitunda, sobre o retorno para Angola; e NoirBlue (2018), com direção de Ana Pi, sobre a diáspora no gesto coreográfico, dentre muitos outros filmes que poderiam ser citados aqui.

 

O cinema negro brasileiro contemporâneo, parte das trocas através das tecnologias digitais encontrando referências em filmes de toda a diáspora negra, mas também encontra suas raízes nas trocas do que nos convém chamar hoje de terceira diáspora. A confluência de signos, símbolos e estéticas através das redes transatlânticas digitais e toda a sua pluralidade.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Marco Aurelio da C. Correa

MARCO AURÉLIO DA CONCEIÇÃO CORREA é Pedagogo pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Pesquisa sobre as confluências sobre as estéticas do cinema negro e a educação para as relações étnico raciais.

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.