março de 2012

TRANSGRESSÃO E ARTE: O BRASIL E O SEU LUGAR NA STREET ART GLOBAL

Marcio Macedo

 

 

 

 

foto Ricky Flores/
MANDELACREW

 

 

 

 

 

Imagine uma exposição de graffiti que ninguém poderá ver instalada numa estação de metrô abandonada em algum lugar de New York City… Pois é, pode parecer viagem, mas esse é o conceito do The Underbelly Project, uma exposição montada por dois grafiteiros novaiorquinos entre 2009 e 2010. PAC, um dos artistas, descobriu a estação abandonada em suas explorações pelo subterrâneo da Big Apple. Após se reunir com seu amigo, o também grafiteiro Workhorse, ambos tiveram a idéia do projeto. Ao longo de um ano, num esquema sigiloso e cuidadoso, mais de 100 artistas norte-americanos e europeus foram convidados para, ilegalmente, grafitar o interior da estação com seus trabalhos enfrentando perigos dos mais diversos: desde serem confundidos com terroristas e, portanto, presos, até se machucarem em acidentes na escuridão do sistema metroviário. PAC, numa entrevista ao jornal The New York Times em outubro de 2010, resumiu a intenção da exposição e o motivo de não ser revelada a localização da estação abandonada.“Nós não queremos preservar o tipo de qualidade sagrada do lugar, mas nós também queremos que as pessoas saibam que ele existe. E nós queremos que ele se torne parte do folclore da cena de arte urbana”.

 

 

O The Underbelly Project expõe de formal magistral o estado da arte do graffiti nas grandes metrópoles mundiais. A repressão às formas de manifestações artísticas urbanas, cuja mais conhecida é o graffiti, começou nos anos 1980 com a limpeza dos vagões de trem novaiorquinos graffitados que circulavam pela cidade e atingiu o ápice recentemente com as novas tecnologias de vigilância via câmeras espalhadas por ruas e parques de New York City e outras metrópoles globais. Ser pego graffitando, na realidade pós-atentados 11 de setembro, é motivo para prisão. A atual faceta da repressão forçou o graffiti a atingir novas formas de transgressão como a vista no Underbelly, ou seja, a intervenção artística ilegal de lugares não públicos e nem vistos pelas pessoas comuns na vida cotidiana. Essa guinada também responde ao recente processo de comercialização de manifestações artísticas urbanas via mercado de arte que, de acordo com alguns críticos, retiram o poder de contestação do graffiti. Para alguns, seu lugar é nas ruas e não no ambiente asséptico e higienizado dos museus. Todas essas questões são muito bem retratadas no documentário Bomb It, do diretor John Reids. Lançado em 2007, o filme apresenta não só a história do nascimento do graffiti em NYC, mas também sua estética, lendas e a exportação dessa manifestação para várias capitais mundiais, inclusive São Paulo.

 

 

STREET ART

Para a socióloga húngara Virág Molnár, street art pode ser considerado um grupo eclético de práticas que tem o espaço público urbano como área de intervenção. Nesse sentido, técnicas como o graffiti, a fotografia, stencil, tagging e flash mobs (reunião performática de pessoas em espaços públicos através de mídias sociais) são a nova face da cultura artística urbana. Parte dessas formas de expressão nasceu dentro de subculturas juvenis, como os movimentos hip-hop e punk, e seu potencial de contestação do espaço público tem sido visto através dos trabalhos de artistas como o do fotógrafo francês JR e do grafiteiro britânico Bansky. Tomando o trabalho desses artistas como exemplo, arte urbana/de rua contemporânea é uma resposta criativa e crítica as formas de controle do espaço público e questões político-sociais.

 

 

Por outro lado, o formato estético da street art e as formas de repressão que sobre ela infringem, variam. Isso ocorre porque intervenções urbanas como o graffiti dialogam com fatores locais de ordem política, econômica e cultural. Exemplo disso pode ser visto na cidade de São Paulo.

 

 

BEM-VINDO À SP!

A cidade de São Paulo é conhecida internacionalmente como um centro produtor de uma forma bastante singular de graffiti. O trabalho da dupla de artistas paulistanos Os Gêmeos que incorpora temas regionalistas é, sem dúvida, o principal representante da street art e graffiti brasileiros. Seus trabalhos já foram exibidos em museus de Nova Iorque, Los Angeles e Londres. Entretanto, há muitos outros artistas brasileiros detentores de uma produção artística de alta qualidade que ainda não obtiveram tanto reconhecimento internacional como Zezão e Alexandre Orion. De certa forma, há uma percepção geral no exterior e que pode ser vista no documentário Bomb It de que as autoridades em São Paulo seriam mais tolerantes à prática do graffiti do que nos Estados Unidos e Europa, por exemplo. Esse fato explicaria então o grande desenvolvimento estético e singularidade do graffiti tupiniquim. Essa é uma meia verdade e veremos o porquê.

 

Na sua dissertação de mestrado o urbanista Sérgio Franco, pesquisador de graffiti e pixação, estabeleceu uma periodização para as escolas de graffiti na capital paulista. A primeira delas se formou em fins dos anos 1970 e início dos 1980 e é conhecida como Os Pioneiros, tendo sido composta por artistas plásticos e universitários que protestavam contra a ditadura. O segundo grupo se formou na segunda metade dos anos 1980 sobre a influência do hip hop, ganhando o nome de Old School. Faziam parte dele jovens de classe popular, sendo que muitos eram ligados ao hip hop. Por fim, nos anos 1990, surge a Nova Escola, formada por jovens de classes sociais diversas que tinham como influência os trabalhos de grafiteiros da Old School e também da pixação, que toma força e se dissemina justamente nessa época apesar de ter surgido e tomado a forma que conhecemos hoje na metade dos anos 1980 através de graffiteiros/pixadores como Juneca e outros que, à época, foram perseguidos pelo então prefeito Jânio Quadros.

 

 

O graffiti em São Paulo foi incorporado de tal maneira à paisagem urbana da cidade que alguns se referem a ela como capital mundial do graffiti. Desde 1988, a cidade comemora em 27 de março de cada ano o Dia do Graffiti, em honra ao artista/grafiteiro Alex Vallauri (1949-1987), considerado o pioneiro da manifestação no Brasil. A popularização desta manifestação se deu em grande parte devido à ação dos artistas da Old School. Essa escola sofreu grande influência dos graffitis da cultura hip hop norte-americana veiculados no documentário Style Wars, lançado por Tony Silver, em 1983; nas imagens exibidas em livros como Spraycan Art (1987) e Subway Art (1988); além da incorporação e uso de novas técnicas e materiais (como as latas de spray) na produção de seus desenhos. Entretanto, devido ao isolamento dos artistas brasileiros em relação à produção norte-americana, com o tempo, a exploração de conteúdos nacionais como temas regionalistas ficou mais forte nos graffitis. Esta característica pode ser percebida nos trabalhos da dupla Os Gêmeos e do casal Vitché e Jana Joana. Em seus primeiros anos nas ruas da capital paulista, o graffiti feito pela “Old School” foi objeto de preconceito, sofreu repressão policial e era freqüentemente associado a sujeira e/ou gosto estético duvidoso.

 

Por outro lado, nos anos 1990, a disseminação da pixação e a crescente mercantilização do graffiti através de seu uso para cobrir fachadas e portas de lojas e estabelecimentos comerciais (algo que ficou conhecido como “graffiti comercial”) foram fatores que trouxeram mais aceitabilidade a esta arte perante a população, transferindo o estigma de sujeira e vandalismo anteriormente associados a ele, para a pixação.

 

O documentário Pixo, dirigido por João Wainer e Roberto Oliveira e lançado em 2009, explora a temática da pixação acompanhando a trajetória do grafiteiro Rafael “Pixobomb”. Ele foi responsável por realizar um “bombardeio” (ataque de uma crew de pixadores) à Universidade Belas Artes, como trabalho de conclusão do seu curso em Artes Plásticas, e de também pixar uma área da 28a Bienal de Artes, em 2008 (naquela ocasião, a pixadora Carolina Piveta foi detida e passou 15 dias na prisão). O filme também contém cenas da ação de pixadores escalando prédios e explicam como o formato das letras utilizadas por eles teve como inspiração as grafias usadas em capas de discos dos grupos de rock heavy metal dos anos 1980.

 

Mesmo que possam parecer manifestações distintas, graffiti e pixação fazem parte do mesmo universo. Exemplo disso é fornecido pelo antropólogo Alexandre Pereira em seu estudo sobre os pixadores em São Paulo. Ele mostra como figuras como o “graffiteiro” e o “pixador” podem, muitas vezes, estar incorporados na mesma pessoa. O exemplo dado pelo antropólogo é o de uma oficina oferecida por um órgão público que visava “converter” pixadores em graffiteiros, uma vez que o graffiti, por ser desenhado, seria mais inteligível e possuiria contornos artísticos, enquanto a pixação, por ser escrita em formas não tão legíveis, é entendida com sujeira. A oficina não deu certo, já que os jovens alunos que não haviam ainda travado contato com a pixação e, ao fazê-la, ficaram fascinados com o grau de transgressão da mesma passando a pixar. Já os pixadores não se renderam ao discurso “salvacionista” do curso e não se tornaram graffiteiros. De acordo com Pereira, tanto graffiti como pixação são elementos pertencentes à uma cultura de rua, ou seja, à uma série de práticas associadas à população moradora da periferia da cidade de São Paulo e produzidas dentro de manifestações como o hip hop, as torcidas organizadas de futebol, motoboys, baloeiros, dentre outros.

 

As relações entre pixadores e grafiteiros algumas vezes podem ser tornar conflituosas por conta dos famosos “atropelos”, ou seja, quando um grafite ou pixo é propositalmente coberto com outro desenho/pixo. Isso ocorre, frequentemente, como forma de retaliação, ou por conta de desavenças ou disputas. O fato do graffiti ter recentemente ganhado mais reconhecimento por parte da população, do poder público e do mundo da arte, dentro e fora do Brasil, tem insuflado a aversão de alguns pixadores. Um dos motivos é que muitos graffiteiros legitimam a ideia defendida pelo senso comum e setores governamentais de que a pixação nada mais é do que sujeira e vandalismo.

 

Por outro lado, a Prefeitura de São Paulo, no decorrer dos anos, tem tido uma posição ambígua em relação à street art. Há uma orientação pública de combate à pixação e incentivo ao graffiti. Esta política está embasada numa distinção, que já dissemos ser equivocada, entre graffiti (arte) e pixação (sujeira/vandalismo). Contudo, mesmo seguindo essa lógica, é possível ver as contradições no discurso da prefeitura. Um bom exemplo é o caso de uma obra da dupla Os Gêmeos que, mesmo tendo sido financiada com recursos do município, foi coberta com tinta branca em 2008 numa ação da própria prefeitura, seguindo a orientação da lei Cidade Limpa. Ironicamente, enquanto sua obra em São Paulo era apagada pelo poder público, Os Gêmeos grafitavam as paredes do Tate Museum na Inglaterra.

 

 

GRAPIXO SP

Alguns artistas vinculados à Nova Escola têm produzido trabalhos em que ocorre a junção entre graffiti e pixação. Essa técnica é conhecida como grapixo. A proposta pode justamente trazer novas possibilidades e ganhos para ambas manifestações. No caso do graffiti, incorporar a pixação significa recuperar o elemento transgressor que alguns afirmam ter se perdido devido à sua crescente mercantilização por meio do “graffiti comercial” (exibidos em fachadas de lojas e decoração de interiores) e da crescente circulação de obras no mercado de arte. Para a pixação, tal incorporação implica em uma diminuição do estigma que a vincula à sujeira e ao vandalismo bem como o reconhecimento de que as suas letras (indecifráveis para não iniciados) são detentoras de um trabalho estético que vai além da transgressão pura e simples do vandalismo.

 

 

Um exemplo fornecido por Sérgio Franco exemplifica como o grapixo pode incorporar em sua estética aspectos críticos e criatividade sem abrir mão da transgressão. Um grupo de graffiteiros/pixadores foi contratado para cobrir a agência de um banco famoso localizada numa região nobre de São Paulo. A ação seria capitaneada como um exemplo de inclusão, tolerância e contemporaneidade por parte do banco. No decorrer dos trabalhos, um artista colocou frases totalmente legíveis aos não iniciados no universo da pixação que remetiam à idéias como povo e pobreza. Funcionários do banco advertiram o artista e solicitaram que ele continuasse a fazer desenhos ou se utilizar de uma linguagem mais abstrata. O artista, contrariado, seguiu a orientação e escreveu em letras no estilo codificado da pixação, o que passou despercebido para os funcionários do banco: “Pilantropia do caralho desse banco de bosta”.

 

A história acima contada aponta para a criatividade e poder de transgressão visto nas várias formas de street art. Por fim, podemos nos perguntar: o que o The Underbelly Project de New York City, os graffitis divertidos do britânico Bansky, as fotografias de pessoas fazendo caretas e ampliadas de forma espetacular pelo francês JR e o grapixo de artistas brasileiros tem em comum? A resposta é a capacidade de todas essas formas de street art em se renovar como uma reação criativa, irônica e popular à sistemas de controle social, poluição visual, desigualdades e conflitos.

 

 

 

 

 

Marcio Macedo

MÁRCIO MACEDO é doutorando em sociologia pela The New School for Research (EUA), mestre em sociologia e bacharel em ciências sociais pela USP. Professor Assistente no curso de Comunicação Social da FIAM-FAAM Centro Universitário.

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.