fevereiro de 2024

TODO O MUNDO: UMA CONVERSA COM EVAN SOHUN

Luciane Ramos Silva

 

 

 

 

 

 


capa EVAN SOHUN
imagens cortesia do artista
tradução 
NATHÁLIA CARNEIRO

 

 

 

 

 

 

 

Consciência histórica, olhar amplo e leveza para enfrentar as inconstâncias da vida, parecem refletir no traço e no movimento criativo do jovem pintor, ilustrador e designer gráfico mauriciano Evan Sohun. 

 

Seja em tela, no papel ou em muros, seu trabalho explora paisagens do cotidiano com formas e configurações repletas de efeitos gráficos intensos, por vezes burlescos, ácidos e estapafúrdios, aludindo talvez, ao próprio fluxo, nada linear, das experiências humanas.  

 

“Na minha busca para evitar a conformidade na criação dos meus personagens, consegui moldar um mundo próprio…”

Representado pela galeria IMAAYA Art Gallery, baseada nas ilhas Maurício, e membro do um coletivo de arte multidisciplinar que deseja tornar a arte local mais acessível fazendo circular as  produções e colaborações dentro da  própria ilha, Sohun constrói um universo estético com figuras e lugares que frequentemente fazem-no retornar às realidades desse interessante território do Oceano Índico. Seus  personagens, a um só tempo monstruosos e poéticos, de cores interrogadoras, aparecem impressos em publicações de histórias em quadrinhos, capas de revistas, prédios e exposições de arte ao redor do mundo.

 

 

 

Vista panorâmica de uma das salas da exposição Marsan Rev – a terceira mostra individual do artista Evan Sohun – exibida na IMAAYA Art Gallery (Ilhas Maurício), entre agosto e setembro de 2022.

 

 

 

Seu simpático e onipresente personagem Toudim, cujo nome refere-se à ideia de todo mundo, evoca a liberdade e os sensos de si e dos espaços ao redor que atravessam a pessoa e, de alguma forma, a dimensão conceitual da sua prática criativa.  Para o artista: Toudim não tem forma definida, e evolui em mundos vibrantes de cores, linhas, formas… seu movimento tenta encontrar o equilíbrio num mundo de caos. E muitas vezes posiciona-se como um observador sarcástico ou divertido com o que vê. Por vezes, o mundo evolui sem ele; outras vezes, ele faz parte do mundo que o rodeia”.

 

As ideias de Sohun, e todo o contexto sócio cultural que esta entrevista nos apresenta, remetem em múltiplos sentidos ao que o intelectual martinicano Édouard Glissant (1928-2011) propõe em seu conceito de Caos-mundo, quando aborda as rupturas e ampliações de sensos e sentidos provocadas pelo movimento dinâmico das diversidades culturais. Esse chamado não pode ser apenas uma ode à diferença, coisa que o capitalismo, em sua forma afiadamente neoliberal, tem sido exímio em tomar vantagem, mas trata-se de manter o corpo aberto para a diferença que a diferença faz, aceitando suas contradições e movendo-nos para outros modos de nos percebermos. Assim, damos as boas vindas ao Caos-mundo.

 

 

 

 

 

 

LUCIANE RAMOS-SILVA: VOCÊ PODERIA NOS CONTAR UM POUCO SOBRE AS INFLUÊNCIAS DE SUA PESQUISA NAS ARTES VISUAIS?

EVAN SOHUN: Minha prática inicial de alguma forma me levou a fazer desenhos de histórias em quadrinhos na adolescência. Nessa época, minhas influências vinham principalmente da indústria francesa e belga de quadrinhos. Jean-Philippe Stassen, Ptiluc, Moëbus, Hergé e Anton Kannemayer foram fundamentais. Fui então estudar design gráfico no Reino Unido, e essa mudança de ambiente e novos encontros trouxeram novos insights para a minha prática. Comecei explorando ilustrações publicitárias e editoriais até meus 20 e tantos anos, depois fui pintar telas maiores, foi quando conheci Gaël Froget, outro artista contemporâneo local que me encorajou neste caminho.

 

Em minha própria formação enquanto contador de histórias em quadrinhos, sou muito influenciado por obras de artistas cujas narrações são perfeitamente sobrepostas a cenários abertos a diferentes linhas narrativas. Também investigo as cores e de que modo os artistas compõem com elas: Malcom de Chazal, Salim Currimjee, Jean-Dubuffet, Yayoi Kusama, Kerry James Marshall, Louise Bourgeois, Njideka Akunyili Crosby…

 

 

LRS: COMO É O CAMPO DA EDUCAÇÃO EM ARTES VISUAIS NO PAÍS?

ES: O sistema educativo em geral no país determina o caminho dos alunos para o sucesso baseado na capacidade de adaptação, ou não, a uma performance acadêmica competitiva, ao invés de o sistema se adaptar a todas as capacidades dos alunos enquanto seres humanos – artes visuais, música, trabalhos manuais etc. Quando as artes visuais são de fato ensinadas como disciplina no nível secundário, elas o são de forma clássica, restando pouco espaço para estimular mentalidades criativas. Dando um exemplo simplificado, eu diria que durante muito tempo você é obrigado a desenhar dentro das linhas para ser considerado um bom estudante de artes. No entanto, acho que há uma mudança gradual de mentalidade e a evolução é bastante palpável hoje. Há uma abertura crescente à prática e uma aceitação geral de que a arte visual não pode ser colocada dentro de uma caixa e é vasta… e por vezes selvagem! Ainda há alguns obstáculos a superar ao longo do caminho, mas certamente chegaremos lá em algum momento… talvez eu não esteja vivo para testemunhar.

 

 

 

Anbwate 01
Evan Sohun
60 x 80 cm
Acrílica sobre tela

 

 

 

LRS: COMO VOCÊ APRESENTARIA MAURÍCIO AO NOSSO PÚBLICO NO BRASIL?

ES: Maurício é uma pequena ilha situada no Oceano Índico, não muito longe de Madagascar. Foi o único lar dos Dodôs. Obtivemos a nossa independência dos ingleses em 1968 e somos governados democraticamente desde então, somos uma República desde 1994. No pós-independência, a economia foi construída principalmente em torno da cana-de-açúcar, da produção têxtil e do turismo. Hoje em dia nossa economia tem também outros pilares, permanecendo o turismo como um dos principais. A nossa população é hoje composta por pessoas de etnias mistas (francesa, britânica, africana, indiana e chinesa) originárias da era colonial e da era pós-abolição da escravidão (1835). Sendo Maurício ainda uma república muito jovem, eu diria que a nossa identidade cultural ainda está se desenvolvendo em torno das várias influências das comunidades mistas que a compõe. Nossa comida, arquitetura, linguagem, música e arte estão todas sendo moldadas em torno dessas influências. A maioria das pessoas em Maurício são trilingues. O inglês e o francês são ensinados como disciplinas principais desde a escola pré-primária e a língua materna, o crioulo de Maurício, é falada por todos, mas ensinada e aprendida academicamente por poucos.

 

 

LRS: QUAIS AS NUANCES SOBRE ETNICIDADE QUE VOCÊ ENCONTRA QUANDO VIAJA PARA EUROPA EM RELAÇÃO A SEU PAÍS? VOCÊ SE VÊ COMO NEGRO?

ES: Na Europa, eu era considerado estrangeiro, o que de fato era, mas, ao ser classificado como tal, não me considerava incluído. Meus traços físicos faciais me classificavam lá como indiano, mais do que como negro. Essa mistura de traços físicos de origens diversas é muito típica de todas as pessoas em Maurício e uma boa imagem tangível do caldeirão cultural que é Maurício. Esse aspecto misto pode ser visto em outras formas de vida social em Maurício: a comida tem origens mistas e ninguém questiona a origem do alimento X ou Y; o mesmo acontece com as roupas, que podem ser usadas por qualquer um. Por exemplo, como cristão convidado para um casamento hindu, eu poderia usar roupas indianas tradicionais sem que isso fosse tido como estranho ou fora do lugar. Mas, para responder à sua pergunta, eu me consideraria simplesmente mauriciano. Acho que há um amálgama entre etnias e religiões em Maurício. As religiões são muito presentes e, em termos culturais, ocupam um grande espaço nas percepções gerais e na vida do povo mauriciano. As diferentes religiões influenciam aspectos importantes da sociedade, até mesmo a política.

 

 

 

Met Prop
Evan Sohun
110 x 141 cm
Acrílica sobre tela

 

 

 

LRS: EXISTE UMA HISTÓRIA IMPORTANTE DE PESSOAS  ESCRAVIZADAS FUGITIVAS EM SEU PAÍS. ESTA HISTÓRIA É CONHECIDA PELA POPULAÇÃO LOCAL?

ES: Sim, é de conhecimento geral da maioria dos mauricianos. Maurício é uma ilha pequena e cruza em algum ponto ou outro a rota próxima à montanha Le Morne Brabant, só podemos ser tocados por seu apelo e pela história por trás dela. Quando você está no topo da montanha, há uma cruz enraizada lá. Neste exato lugar, você pode sentir a história e uma parte da tragédia humana que aconteceu ali: a dos escravos fugitivos que preferiram pular da montanha a se entregar.

 

 

LRS: COMO A SUA PERCEPÇÃO DA REALIDADE CULTURAL DAS ILHAS MAURÍCIO ATRAVESSA O SEU TRABALHO ARTÍSTICO?

ES: Sou constantemente movido pela realidade cultural de Maurício. Embora as histórias por trás de minhas pinturas sejam diferentes, elas sempre acontecem e são desenvolvidas em um ambiente com o qual estou familiarizado, onde conheço os contornos, os cheiros, o ritmo e as cores. Temos a sorte de ter um mar de influências diversas no qual podemos mergulhar e cavar para criar. Influências africanas, asiáticas e européias ajudam a compor um cenário único.

 

 

 

Poul party
Evan Sohun
180 x 140 cm
Acrílica sobre tela

 

 

 

LRS: VOCÊ PODE FALAR UM POUCO SOBRE SEU PERSONAGEM TOUDIM? COMO ELE NASCEU E QUAIS SÃO SUAS IDEIAS?

ES: Toudim é uma palavra abreviada para “Tou Dimounn”, que em crioulo mauriciano significa “todos”. Esse personagem sempre esteve presente em meu trabalho, desde o início. No começo, ele era inconsciente e não tinha a mesma forma que tem hoje. Percebi sua presença quando as pessoas começaram a me questionar sobre suas origens no início de minha prática, mesmo quando eu ainda estava nas ilustrações. Demorei muito tempo para entender o motivo por trás de sua presença. De alguma forma, Toudim sempre teve um lugar em meu trabalho. Fiz uma grande introspecção pessoal para capturar o que ele representava e só recentemente compreendi o motivo de sua presença. Narrei sua jornada em minha última exposição solo, Marsan Rev, realizada em setembro de 2022. Toudim é um espírito livre que não deseja nem precisa se encaixar em nenhuma caixa cultural/social como gênero, raça, cor, religião etc. …. Toudim é quem você quiser que ele seja. Ele assume plenamente a propriedade de quem é e de quem quer ser, embora viva em uma sociedade que dita sua liberdade de ser. Era importante para mim que o personagem principal da minha narração fosse neutro e não fosse colocado em nenhuma caixa cultural, étnica ou de gênero.

 

 

 

Vista panorâmica de uma das salas da exposição Marsan Rev

 

 

 

LRS: QUAIS SÃO SEUS MAIORES DESAFIOS E INTERESSES HOJE ENQUANTO ARTISTA?

ES: Meu maior desafio e busca é a evolução. Embora eu seja bastante jovem na prática, acho difícil ficar parado. É um grande desafio para o meu eu interior. Pessoalmente, como artista, sinto que há uma parte da documentação e da transmissão do legado artístico e do patrimônio cultural local faltando. Na escola, pelo menos durante meus anos escolares, não nos ensinaram sobre as influências de grandes artistas mauricianos na arquitetura contemporânea, na música, nos escritos ou nas artes visuais, por exemplo. Em minha opinião, seria papel das instituições públicas promover, nutrir e sustentar o ecossistema artístico e criativo e, mais importante, preservar a herança cultural e o legado artístico deixado por grandes nomes do setor artístico e musical mauriciano. Tenho a oportunidade de ser acompanhado e orientado em meu trabalho pela minha galerista de arte, Charlotte d’Hotman, da IMAAYA Art Gallery, uma das poucas galerias de arte que promovem a arte contemporânea e propõem aos artistas uma colaboração de tipo “mentoria” real.

 

 

 

Kas Palto 01, 02
Evan Sohun
43 x 41 cm
Acrílica sobre tela

 

 

 

LRS: VOCÊ PODE RECOMENDAR ARTISTAS DE SEU PAÍS QUE O BRASIL PODE CONHECER?

ES: A cena artística está em franca expansão atualmente em Maurício. Meu estúdio fica no Bactory, um prédio de três andares que acomoda diferentes artistas de várias práticas. Junto com meus colegas de artes visuais, Gaël Froget e Skizofan, criamos uma plataforma que posiciona o Bactory em um ecossistema seguro, onde podemos nos expressar criativamente em um espírito de compartilhamento e inspiração mútua; uma espécie de centro de residência permanente para artistas. Junto com os dois acima mencionados, outros grandes artistas visuais mauricianos contemporâneos a serem conhecidos são Salim Currimjee, Nirveda Alleck, Christophe Rey, Raymond Levantard, Max Anish Gowriah, Alix Le Juge, Khalid Nazroo, Fabien Cango e Roger Charoux, todos de diferentes gerações, dos 30 aos 90 anos! Entre outros artistas impressionantes que marcaram a cena artística ao longo de suas vidas e cujas contribuições precisam ser destacadas estão também: Malcom de Chazal, Max Boullé ou Serge Constantin, Hervé Masson, só para citar alguns.

 

 

 

 

 

 

 

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Luciane Ramos Silva

Luciane Ramos Silva é antropóloga, artista da dança e mobilizadora cultural. Doutora em Artes da Cena e mestre em antropologia pela UNICAMP. Bacharel em Ciências Sociais pela USP. Atua nas áreas de artes da cena, estudos africanos e educação.

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.