junho de 2010

MULHER, NEGRA E ARTISTA: A ESTÉTICA CRÍTICA DE ROSANA PAULINO

Alexandre Araujo Bispo

 

 

 

colaboração Nabor Jr.

 

 

 

 

 

 

Além dos seus textos e montagens cênicas, o poeta e dramaturgo alemão Bertold Brecht (1898 – 1956), cujos trabalhos artísticos e teóricos influenciaram profundamente o teatro contemporâneo, também ficou conhecido por seus poemas marxistas. Em um deles, conhecido como o Analfabeto Político, Brecht condena as pessoas que se orgulham de odiarem e desconhecerem Política. Já que para ele, somos todos políticos, mesmo quando achamos que não.

 

Em parte, a afirmação faz sentido. Afinal, se por um lado ignorar a política pode ser uma forma de criticá-la, ao mesmo tempo é quase impossível permanecermos indiferentes a ela.

 

No Brasil, situação semelhante ocorre com as discussões envolvendo gênero, raça e etnia. Apesar de onipresentes no cotidiano de uma sociedade miscigenada como a nossa esses temas seguem como coadjuvantes nas reivindicações de uma população que, em sua maioria, é carente de uma formação intelectual e crítica mais aguda.

 

Assim, unindo o discurso á plástica e utilizando plataformas ditas “mais digestíveis” para a compreensão popular, muitos brasileiros (na música temos, por exemplo, o Rap dos Racionais MC´s; na literatura, as obras de Nei Lopes e no teatro “Os Crespos” ) procuram, senão abrir os olhos da população, ao menos fazer com que temas políticos e raciais venham à tona e sejam introduzidos na pauta de discussões da sociedade.

 

Neste sentido destaca-se o trabalho desenvolvido pela artista plástica paulistana Rosana Paulino, graduada em Artes Plásticas pela ECA/ USP, especialista em gravura pelo London PrintStudio e que em entrevista a Revista O Menelick 2ª ATO, afirmou detestar ser definida como uma artista engajada. “No meu caso é uma coisa que nasce de fora para dentro, questiono constantemente meu lugar – e o lugar dos meus – no mundo. Não nasce de algo que vem de fora, é a minha própria essência”, diz.

 

Solidária à dimensão social e política da história do Brasil, Paulino, que já realizou diversas exposições tanto no Brasil como no exterior, atualmente é doutoranda em Poéticas Visuais pela ECA, não submete em sua obra à plástica ao discurso crítico, pelo contrário, explora a história do país e a atualidade de algumas práticas construindo imagens fortes que criticam a manutenção do sistema de desigualdades mantidos em muitos gestos, as vezes silenciosos e muitas vezes indiscretos nas propagandas, no consumo desenfreado, na ansiedade de não corresponder às expectativas entre o ser e o parecer.

 


Ama de leite

Técnica mista
196 X 180 X 180 cm
2007

 

 

 

Desde o início de sua carreira, Rosana, nascida na cidade de São Paulo, onde atualmente vive e trabalha, vem se destacando por sua produção ligada a questões sociais, étnicas e de gênero, tendo como foco principal a posição histórica da mulher negra na sociedade brasileira. “Minha infância está presente em meus trabalhos. Fatos como se perceber negra e não ter nenhuma boneca com a qual pudesse me identificar olhar as heroínas e princesas e ver que entre elas não havia nenhuma negra, as famílias nos comerciais e livros escolares, tudo isto foi chamando minha atenção e me levando a discutir o motivo desta invisibilidade negra”, diz.

 

No livro Manobras Radicais (2006), os autores Paulo Herkenhoff e Heloisa Buarque de Holanda, afirmam que: “Certa parte da obra de Rosana Paulino trabalha o sistema de arte como uma espécie de gargalheira que constrange os movimentos de expressão da mulher negra”.

 

A constatação pode ser verificada em trabalhos como a série Bastidores (1996/1997) onde, para refletir sobre a violência doméstica contra mulheres, a artista reúne a fotografia sobre tecido a uma tarefa bastante feminina: o bordado, que é utilizado para denunciar o “nó na garganta” a impossibilidade de falar, de ver ou, no limite, apontar a privação dos sentidos causada pela violência.

 

Bastidores
Imagem transferida sobre tecido, bastidor e linha de costura
1997

 

 

 

Aliás, a utilização de materiais e imagens tradicionalmente ligados ao universo feminino, tais como linhas, tecidos, cabelos artificiais, silhuetas recortadas de mulheres que lembram antigos trabalhos manuais, são uma constante nos trabalhos em que a artista investiga a situação social da mulher negra no Brasil.

 

Em O Baile (2004), por exemplo, Paulino desmonta o mito da festa de debutantes, situação que exaltaria a brancura, os cabelos lisos e nos apresenta uma situação constrangedora por qual passam as meninas negras quando diante tal questionamento. Nessa operação ela  constrói uma produção que revela os sofrimentos decorrentes da frustração da menina negra em não conseguir se adequar ao modelo de beleza oficial.

 

Amas-de-Leite
2008

 

 

Em Amas-de-Leite (2008), momento em que repensa o papel estruturante dessas mulheres no processo civilizador brasileiro, temos a denúncia da ausência de interesse de grande maioria dos artistas contemporâneos brasileiros em fazer um trabalho que reveja temas históricos ou que se inspirem ao universo da cultura popular.

 

Das muitas artistas mulheres na historia das artes visuais, poucas ou, até bem pouco tempo nenhuma delas, eram negras. Nesse contexto, a produção de Paulino não só vai  dar um salto na medida que, como negra ela se diz a si própria, isto é, não é objeto de inspiração (uma boa comparação é o quadro A Negra, de Tarsila do Amaral), mas vai reinterpretar a história dos lugares sociais da mulher negra no Brasil.

 

Terracota
Terracota, tecido e materiais diversos
36 X 15 X 9,5 cm
2006

 

 

A mulher negra é verdade, foi, nas primeiras décadas do século XX, objeto de representação para artistas  como Di Cavalcanti, Tarsila do Amaral, entre muitos outros, mas não foi ela própria que se auto representou. Temos em Rosana essa voz plasticamente forte que não só se diz, mas revê os estereótipos históricos a partir de um apuro técnico e cuidado plástico que não limitam seu trabalho a um engajamento que ilustraria uma posição política. Ela, ao contrário, vai muito mais longe ao se mostrar solidária às constantes investidas que pretendem desprestigiar a mulher negra e sua imensa participação no processo civilizador brasileiro. Ao revelar esses lugares de subalternidade ela põe sua produção no circuito das artes reforçando sua consciência política sem abrir da delicadeza que envolve ser uma mulher, negra e artista.

 

 

 

 

 

 

 

 

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ALGUMAS EXPOSIÇÕES DAS QUAIS PARTICIPOU

-Panorama dos Panoramas (Museu de Arte Moderna de SP/ 2008)

-Projeto TOLDOS (Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, Portugal/ 2008)

-Mulheres Artista/Olhares Contemporâneos (MAC-USP/ 2007)

-Encontro Entre Mares – Bienal de Valência (Espanha/ 2007)

-Manobras Radicais (Centro Cultural Banco do Brasil, SP/ 2006)

-Colônia (Galeria Virgílio – SP/ 2006)

-Paixão (Mostra de inauguração do Museu Bispo do Rosário – Jacarepaguá, RJ/ 2006)

-Trienal Poli/Gráfica de San Juan: América Latina y el Caribe (San Juan, Porto Rico/ 2004)

-Mostra de abertura do Museu AfroBrasil (Museu AfroBrasil – SP/ 2004)

 

 

 

 

 

 

Alexandre Araujo Bispo

ALEXANDRE ARAÚJO BISPO é doutor e mestre em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo. Bacharel e licenciado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo. Vive e trabalha em São Paulo. Atua com curadoria, crítica de arte, arte educação e produção cultural. Foi curador artístico, entre outras, das exposições: Aline Motta: Em três tempos: memória, viagem e água (2019); Medo, fascínio e repressão na Missão de Pesquisas Folclóricas, 1938-2015 (2015-2016); Negro Imaginário (2008). Curador educativo entre outras, das exposições: Todo poder ao povo: Emory Douglas e os Panteras Negras (2017) e Bienal Naïfs do Brasil (2018). Possui textos em publicações como Contemporary And América Latina; Revista Omenelick 2º Ato; Art Bazaar; Revista ZUM; SP-Arte; Pivô; Co-autor de Cidades sul americanas como arenas culturais (2019); Metrópole: experiência paulistana (2017) e Vida e Grafias: narrativas antropológicas entre biografia e etnografia (2015).

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.