junho de 2023

MISTURA QUE BATE: ATRAVESSAMENTOS CURATORIAIS E ESPAÇOS EXPOSITIVOS INTERSECCIONAIS

Nabor Jr.

 

 

 

 

 

 

 

capa: Hudson Rodrigues
Sem Título
São Paulo
2022

 

 

 

 

 

 

 

 

O CREPÚSCULO

 

Já passava das 23h quando o aniversariante do dia, repentinamente, rompeu a roda de amigos e conhecidos que conversavam num semi círculo formado entre a guia da calçada da sua casa e a rua. Ele queria verificar se todos os copos do grupo de convidados estavam devidamente cheios. Seu sorriso largo e expressão efusiva não deixavam dúvidas do quão feliz ele estava em nos ver ali, reunidos em sua homenagem. Ao passo que uma nova rodada de cerveja ia sendo servida, aproveito para ajeitar despretensiosamente as “cadeiras” sob o capô de um maltratado Peugeot 207, prata amendoado (coloração adquirida graças as muitas camadas de poeira há meses acumuladas em sua lataria), milimetricamente estacionado no entroncamento das ruas Dia Três de Maio e Florestal, na movimentada e imprevisível Heliópolis, zona sul de São Paulo. Melhor acomodado, me esforço para ouvir atentamente a conversa que rivalizava com o som estridente que rasgava a comunidade naquele sábado a noite. É verão, e o tempo seco e abafado descortinam-se como pano de fundo para a celebração de mais um ano de vida desse querido amigo que compartilhamos em comum. Confirmando os estereótipos que acompanham as intermináveis noites de sábado em Heliópolis, a rua estava abarrotada num fluxo frenético de pessoas, carros e motos. Da nossa parte, duas caixas de som – uma acomodada no interior da casa e outra na calçada – e uma churrasqueira farta no meio fio contribuíam para a manutenção desse rótulo.

 

Sua complexidade e sofisticação esbarravam, como ainda de certo modo acontece, em uma generalização esteriotipada de que o grafitti é um gênero artístico de transição, ou de limite geracional datado, sendo representado por jovens rebeldes sem causa. Um pensamento genérico preconceituoso que acaba prejudicando os bons artistas que a cena ainda produz.

Bem curtido na set list caprichada de rap nacional que ecoava pela festa – vejo mais um grupo de quatro pessoas chegando à casa. Reconheço entre eles o grafiteiro e artista plástico Nunca – apelidado Kiko. Fazia anos que não via esse recluso artista que admiro antes mesmo da exposição coletiva Território Ocupado, que reuniu além de alguns dos seus trabalhos, obras de outros então proeminentes nomes do graffiti de São Paulo: Speto, Onesto, Ciro, Daniel Melim e Kboco, nas  galerias do Museu Afro Brasil, em São Paulo, no distante ano de 2006.

 

Nunca ainda era um “garoto” – como ele próprio diz – quando Emanoel Araujo (1940-2022), em conjunto com o artista visual e curador Saulo di Tarso, assinou a curadoria da exposição Território Ocupado, apostando em um já respeitado elenco de artistas da arte de rua, mas que naquele tempo e espaço – talvez com excessão do paulista Speto – ainda figuravam como promessas dentro do cenário artístico brasileiro. O próprio graffiti, apesar do hype que vivia no período, ainda era visto com desconfiança e tratado como um gênero artístico inferior dentro das artes visuais. Sua complexidade e sofisticação esbarravam, como ainda de certo modo acontece, em uma generalização esteriotipada de que o grafitti é um gênero artístico de transição, ou de limite geracional datado, sendo representado por jovens rebeldes sem causa. Um pensamento genérico preconceituoso que acaba prejudicando os bons artistas que a cena ainda produz. A benção de Emanoel, que num movimento estratégico levou o gênero para as galerias de um museu, me disse o artista Nunca, foi um divisor de águas em sua carreira. Vale lembrar que em 1998, dentro do período de cerca de 10 anos em que dirigiu a Pinacoteca do Estado de São Paulo (1992-2002), Emanoel exibiu na instituição a exposição Jean-Michel Basquiat, apresentando 100 desenhos e 30 pinturas do icônico artista norte-americano. O contexto era outro, é verdade, nos anos 1990 Basquiat já era um artista renomado e figura frequente nas mais importantes mostras de artes do mundo, entre elas, por exemplo, a 23ª Bienal de São Paulo, em participou ocupando uma sala especial. Ainda assim, Território Ocupado foi uma importante resposta institucional a um movimento que vivia uma nova ebulição nas ruas de SP nos idos do início dos anos 2000.

 

 

 

Nunca, trabalhando em uma de suas obras na exposição Território Ocupado, no Museu Afro Brasil, em 2010.

 

 

 

Kboco, Onesto e Melim possuem semelhante opinião sobre a relevância da instituição em suas carreiras e sobre o impacto de Emanoel nas artes do país. Da minha parte, quando integrei o Núcleo de Comunicação do Museu Afro Brasil, locado há poucos metros da sala de Emanoel, pude observar, na privilegiada condição de atento espectador, indícios que corroboram com a fala desses artistas. No período que antecede à montagem de uma exposição, por exemplo, me recordo da maneira orgânica e intuitiva com que Emanoel indicava o posicionamento das obras no espaço expositivo e como escolhia as cores com as quais as paredes deveriam ser pintadas. “Aqui é lilás, ali amarelo, essa parede deixaremos em branco. No alto vai o trabalho do fulano, ao lado, a obra do ciclano…”, dizia, aos seus auxiliares, enquanto caminhava pelos corredores do museu acompanhado de seu fiel escudeiro Tim, um desconfiado cachorrinho da raça dachshunds. Tudo parecia caótico e confuso. Até que a exposição nascia, e as escolhas fluíam, dando sentido a todo. Era o artista e sua estética sofisticada dialogando com o metódico curador.

 

Me recordo também que um dos esforços perceptíveis quando das iniciativas curatoriais de Emanoel, contraditoriamente a sua personalidade erudita e gosto refinado, era tornar socialmente mais acessível, especialmente sob a perspectiva simbólica, a aura excludente que acompanha o universo das artes plásticas. Criar o Museu Afro Brasil não como um tradicional museu de artes, mas um museu com artes, história e memória, foi um movimento neste sentido. Levar o graffiti para dentro do museu – um gênero jovem, urbano e porta de entrada para o interesse artístico de muitos jovens negros e periféricos, portanto, se enquadra no que ele pensava sobre as artes e a função das instituições culturais públicas.

 

A multiplicidade de itens, gêneros artísticos e documentação exibidas especialmente na exposição de longa duração do Museu Afro Brasil – e em muitas mostras temporárias também – corroboram com essa intensão. Emanoel entendia o inestimável valor de artesãos, da cultura popular, do sincretismo religioso, daqueles que habitam o que ele chamava de “Brasil profundo”, dos documentos e dos mais variados elementos cotidianos responsáveis pela sedimentação daquilo que conhecemos como identidade cultural brasileira. Emanoel, aliás, ia além, unindo artistas plásticos, artesãos, músicos, atores, atrizes, fotógrafos, bailarinos, jornais, cartas e documentos em uma única mostra, refletindo seus interesses diversos e aguda compreensão dos atravessamentos que nos constituem enquanto sujeitos brasileiros.

 

 

 

Expografia da acumulação: Detalhe da exposição Arte, Adorno, Design e Tecnologia no Tempo da Escravidão, mostra que ficou por longos anos em exibição no Museu Afro Brasil.

 

 

 

A exposição Isso É Coisa de Preto – 130 Anos da Abolição da Escravidão, montada no Museu Afro Brasil, em 2018, é um outro exemplo desse emaranhado curatorial e da missão educativa do museu ao revisitar, e sob a perspectiva negra, a história cultural do país. Recentemente, o sociólogo e escritor Mário Augusto de Medeiros, assinou a curadoria de Memórias do Futuro – Cidadania Negra, Antirracismo e Resistência, exibida em 2022, no Memorial da Resistência de São Paulo. Reunindo, entre outros, elementos como pintura, fotografia, música, cartazes, literatura e documentos históricos para narrar as diferentes experiências coletivas do viver negro em São Paulo, a sólida pesquisa de Mário Medeiros e agregados resultou numa exposição densa e necessária, um mergulho histórico nas especificidades e nas complexas camadas que edificam a presença negra no Estado. A vocação do Memorial da Resistência de São Paulo para atuar como plataforma multidisciplinar que abriga diversos aspectos da experiência de luta do povo paulista é um valioso trunfo que instituições culturais públicas de perfil semelhante possuem para aproximar o público das exposições. Fazendo deste, um hábito mais presente no cotidiano das pessoas com escasso acesso às artes e a cultura.

 

 

 

Capa do catálogo referente a exposição Isso É Coisa de Preto (2018), mostra exibida no Museu Afro Brasil, em SP.

 

 

 

A expansão conceitual do espaço expositivo de museus, galerias e instituições artísticas para além dos objetos tradicionalmente expostos – como pinturas, gravuras e esculturas – fazendo desses não apenas espaços dedicados às artes, mas espaços com artes, é bem verdade, já vem ocorrendo há tempos. Seja com a intenção de ampliar o alcance de determinados projetos curatoriais, seja para tornar a experiência expositiva em um entretenimento de baixa complexidade e, especialmente, para despertar o interesse de um maior número de pessoas pelas montagens. De alguns anos para cá, está em voga o conceito de imersão e interação, viabilizadas por meio de mostras interativas e ditas instagramáveis. Mas não é sobre isso que falamos aqui.

 

 

INTERSECÇÕES

Se olharmos atentamente para o processo de constituição da nossa sociedade, observaremos que as experiências de vida de grupos e indivíduos historicamente excluídos e subjugados possuem raízes umbilicais nos atravessamentos, na diversidade comum à vida social cotidiana que geograficamente os une, na solidariedade, no escambo, na escassez e nas estratégias de sobrevivência. Estes, certamente, são dados que devem ser levados em consideração quando propostas curatoriais que visam ocupar locais dedicados às artes se propõem a construir pontes com públicos comumente desencorajados a consumir cultura em espaços institucionalizados.

 

Sem a visibilidade proporcionada pelas chamadas exposições blockbuster, instagramáveis, ou pelas mostras de impacto validadas por grandes instituições artísticas do país, as ações realizadas em espaços públicos dedicados à cultura e às artes, mas que possuem intenções curatoriais mais expansivas sob a perspectiva sociológica, geralmente acabam passando despercebidas da mídia especializada e do grande público. As recém inauguradas Presente! Presenças Negras no Theatro Municipal de São Paulo e Intersecções – Negros (as), Indígenas e Periféricos (as) na Cidade de São Paulo, oferecem essa complexidade que amalgama arte, cultura, história e memória. Em comum, compartilham corpos curatoriais multidisciplinares, espaços expositivos amigáveis ao entendimento social de suas missões institucionais e uma profunda pesquisa interdisciplinar.

 

 

 

Imagem do fotógrafo Nego Jr.

 

 

 

Reunindo mais de 300 itens e curadoria coletiva de Adriana Barbosa, Eleilson Leite e Nabor Jr, e colaboração nevrálgica de Jera Guarani, a exposição Intersecções – Negros (as), Indígenas e Periféricos (as) na Cidade de São Paulo, se propõe a contar a história desses grupos destacados a partir de uma perspectiva antagônica a constante condição de luta e superação comum as comunidades negra, periférica e indígena na capital. O recorte cronológico proposto abrange produções e territórios surgidos entre os anos 1980 e os dias de hoje.

 

(…) um dos esforços perceptíveis quando das iniciativas curatoriais de Emanoel Araujo, contraditoriamente a sua personalidade erudita e gosto refinado, era tornar socialmente mais acessível, especialmente sob a perspectiva simbólica, a aura excludente que acompanha o entendimento comum sobre as artes plásticas no país. Criar o Museu Afro Brasil não como um tradicional museu de artes, mas como um museu com artes, história e memória, foi um movimento neste sentido. 

Inaugurada no último dia 25 de janeiro e ocupando simultaneamente a Casa da Imagem e o Solar da Marquesa de Santos, instituições vinculadas à Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, e localizadas nas proximidades do Pátio do Colégio, Intersecções reúne um conjunto de artistas episódicos – necessários documentaristas do cotidianos que agem no vão entre a atividade profissional e amadora (geralmente, guardam consigo tesouros que só o tempo reconhecerá) – alguns iniciando suas trajetórias e outros com sólida produção, mas sem o devido reconhecimento artístico que merecem. Compreendendo a importância da interdisciplinaridade para a sedimentação da identidade cultural do país e, no caso específico, dos grupos destacados,  Intersecções apresenta, com tratamento expositivo homogêneo, artistas plásticos, artesãos têxtil, escritores, atrizes, atores, bailarinos, bailarinas, músicos, jornalistas, poetas e agentes culturais, sem deixar de respeitar as particularidades que os constituem. Há uma sala destinada às artes visuais, mas há também uma sala destinada ao rap, ao teatro, à literatura, à moda…

 

Intersecções exibe, entre outros artistas, obras de Sidney Amaral, Lídia Lisboa, Márcio Marianno, Luiz83, Wagner Celestino, Rappin Hood, Rosana Paulino, Mauro e Isaac Silva… todos, é bem verdade – alguns mais, outros menos – com relativa projeção no cenário nacional em suas respectivas áreas de atuação. Ao tempo que também reúne trabalhos de nomes expoentes e/ou pouco reconhecidos, como Hudson Rodrigues, Nego Jr, Tiago Santana, Mônica Cardim, Daisy Serena, Quebradinha, Elizandra Souza e Marisa Moura.

 

Hudson Rodrigues é um subversivo da fotografia. Ora manipulando elementos analógicos diversos em frente a lente para criar resultados finais inesperados, ora hackeando o obturador. Sua inventividade e proximidade com a linguagem cinematográfica, aliada ao seu interesse pelas ruínas e relevos urbanos, que geralmente edificam o pano de fundo de suas imagens que decodificam as mais variadas camadas do submundo noturno da cidade de São Paulo, fazem dele um nome fundamental para aqueles que desejam acessar a diversificada produção autoral de fotógrafos negros da cidade a partir da segunda década do século XXI.

 

 

 

A atriz Thays Dias, pelas lentes da fotógrafa Daisy Serena

 

 

 

Nego Jr, Tiago Santana, Mônica Cardim e Daisy Serena, cada qual à sua maneira, caracterizam-se pela sensibilidade do registro documental. Nego Jr é o que possui o olhar mais clínico às miudezas do enquadramento. Sua fotografia empresta poesia ao viver negro ancestral a partir de pequenas sutilezas que não escapam ao seu olhar. Tiago, Mônica e Daisy, ora na fotografia colorida, ora na imagem em P&B, compartilham afetivo interesse pelas nuances dos corpos negros em cena, com perceptível autoralidade criativa em suas escolhas.

 

A construção de identidades e a reafirmação de posicionamentos políticos e estéticos por meio da moda é outro interessante ponto de inflexão da exposição. Grifes como 1 da Sul, 4P, Isaac Silva e África Plus Size sintetizam como a moda afrourbana, ou a moda constituída a partir de referências diversas das culturas negra contemporânea e periférica, estão intrinsecamente relacionadas ao sentido de pertencimento e orgulho a uma comunidade ou a um movimento. Basta observar o modo altivo com que os clientes dessas marcas as utilizam. Por mais que haja um tímido interesse em construir, de fato, uma moda negra vanguardista – à exceção de Isaac Silva – essas grifes se constituem como elementos de afirmação entre as camadas mais jovens da sociedade preta e periférica da cidade de São Paulo. A veterana estilista Marisa Moura, que exibe em Intersecções dois refinados conjuntos de festa, é quem mais se aproxima de uma singularidade criativa. Do alto da sua maturidade e fazendo uso de referências da cultura popular brasileira, Maris Moura tem uma produção têxtil minuciosa inspirada na subjetividade afroindígena. Seu trabalho estritamente artesanal reúne palha da costa, búzios, semente de açaí, missangas, algodão cru, juta, barbante e pedras brasileiras naquilo que ela própria define como arte em retalho.

 

 

 

Estudantes da rede pública de ensino da cidade de São Paulo após visita à expo Intersecções, posam em frente a Casa da Imagem: quais as funções primordiais de uma instituição pública de artes e cultura?

 

 

 

Nesse mesmo contexto, bebendo da cultura popular brasileira numa amálgama de artesania e inspiração negra, chama a atenção o estandarte do Bloco Afro Afirmativo Ilu Inã, confeccionado por dona Jacira. Conhecida pelo público mais jovem por ser a mãe do rapper Emicida, dona Jacira, tal qual Marisa Moura, não se furta a conhecer o novo, mas sem abrir mão de suas raízes fundantes e de seu particular entendimento de mundo e das relações sociais constituídas ao longo de sua jornada. Falando no Bloco Ilu Inã, talvez seja um dos registros do grupo, de autoria de Noelia Nejera, a fotografia que esteticamente mais salta aos olhos dentro da exposição, levando em conta a exatidão do momento do clique, o preciso enquadramento e o fumegante laranja que toma a cena do clique. A referida fotografia encontra-se ao lado de um conjunto de imagens das documentaristas Mônica Cardim e Mariana Ser, no núcleo dedicado aos blocos afros da capital.

 

 

 

Cortejo do Bloco Afro Afirmativo Ilu Inã. Imagem da fotógrafa Noelia Nejera

 

 

 

Uma mostra que se propõe a contar a história da cultura da cidade de São Paulo sob a perspectiva das comunidades negra e periférica a partir dos anos 1980, não poderia se furtar de exibir o revolucionário Movimento Hip Hop, responsável direta, ou indiretamente, por influenciar tanto a geração que vivenciou a sua chegada ao Brasil, como todas as demais gerações de jovens negros e periféricos nascidos posteriormente a sua ascensão. Seu intrínseco diálogo com as camadas mais pobres da sociedade e seu caráter majoritariamente urbano, encontrou em São Paulo território fértil para sua expansão geográfica pelas demais regiões do país. Transversalmente atingindo negros, periféricos e indígenas de variados credos e gêneros, os elementos do Hip Hop conseguiram, inclusive, alcançar independência e autonomia um dos outros.

 

Se há tempos esses elementos não estão mais caminhando lado a lado no que poderia ser uma valiosa contribuição para o fortalecimento do Movimento Hip Hop de maneira geral, isso não impede que os artistas que protagonizam essa cena se auto-referenciem e compartilhem vivências capazes de manter, mesmo que minimamente, os laços umbilicais que os unem.

 

Em Intersecções, como na vida real, os gêneros estão unidos em sua essência, mas geograficamente separados. O graffiti, um dos símbolos contemporâneos da apropriação periférica do espaço público, é representado pelos artistas Onesto, Nenê Surreal e Gleyson Klein – todos com obras produzidas exclusivamente para a mostra. Já o rap e as batalhas de MC’s, ferramentas com forte apelo discursivo e essenciais para a construção de identidades combativas – responsáveis também por aproximar seus adeptos da literatura e da escrita – ocupam salas distintas na Casa da Imagem.

 

 

 

Galeria dedicada as mídias, a moda e a literatura, dentro da exposição Intersecções – Negros (as), Indígenas e Periféricos (as) na Cidade de São Paulo.

 

 

 

A seleção de fotografias de artistas do rap de São Paulo sublinha um período de uma importante movimentação geográfica do gênero na capital, entre os anos de 2007 e 2012, quando as festa de rap passaram a ocupar com maior frequência a agenda de casas noturnas da área boêmia da cidade, sendo estes os bairros de Pinheiros, Vila Madalena e Centro. Ao lado das fotografias, com destaque para a histórica imagem dos rappers Thaíde, Rappin Hood e Afrika Bambata, quando da visita deste último ao Brasil, no ano de 2008. Uma sala exibe trechos de videoclipes de grupos de rap da cidade, intercalados com imagens da icônica Batalha da Santa Cruz.

 

Famosos entre meados dos anos 1970 e 1980, os bailes black organizados por equipes de som, encontros catárticos da juventude negra de São Paulo, são representados na mostra por um precioso vídeo da equipe de baile Black Mad, gravada na casa Xereta Club, em São Paulo, no ano de 1991. No mesmo ambiente, no Solar da Marquesa de Santos, é possível ver também vídeos de festas black mais recentes, organizadas pelo incansável José Mariano, também conhecido como Zezão Eventos, no icônico Sambarylove. Os vídeos se propõem a resgatar a energia dos bailes negros enquanto territórios de afeto. Ainda hoje esses bailes são organizados na cidade, já sem a mesma frequência e glamour dos anos 1980/1990, é verdade, mas com a mesma potência acolhedora.

 

A imprensa negra paulista, movimento editorial que na primeira metade do século XX foi responsável por tornar a cidade de São Paulo o berço das publicações negras no país, e que atualmente se faz presente especialmente no meio digital, também ocupa lugar na exposição com vídeos exibindo conteúdos produzidos por coletivos como Alma Preta, Mundo Negro e Nós, Mulheres da Periferia. Uma vitrine exibe ainda exemplares impressos das revistas Rap Brasil, Legítima Defesa – Uma Revista de Teatro Negro e Raça Brasil, está última, a única publicação negra a alcançar o mainstream com milhares de unidades vendidas em todo o país, sendo ainda hoje, por este motivo, a maior revista negra que o Brasil já produziu.

 

 

 

Maestro do Canão: Miolo da edição número 10 da revista Rap Brasil.

 

 

 

Falando em mainstream, a expo Intersecções apresenta um momento importante e complexo na história da indústria musical no Brasil, o Pagode 90. Alçado a condição de movimento, especialmente após ser resgatado por blocos de carnaval e festas descoladinhas de música brasileira, ganhando então o status de cult, o Pagode 90, que projetou para o país conjuntos que sedimentaram suas trajetórias na cidade de São Paulo, tais como os grupos Exaltasamba, Soweto, Sensação, Negritude Jr., Os Travessos e Art Popular, foi também um importante marcador de reconstrução da humanidade do homem negro, ao relacioná-lo como um sujeito com sentimentos, que chora e ama. Por outro lado, e Intersecções não se furta em problematizar esse movimento ao estimular a reflexão dos visitantes sobre as letras das canções desses grupos, acusados de promoverem letras que reforçam o lugar secundário da mulher negra, muitas vezes preteridas em relação à mulher branca, e outras descrita como “morena”. Fator, aliás, facilmente observado nas relações amorosas inter-raciais dos artistas da maioria desses grupos. Por mais discutíveis que sejam as qualidades das construções sonoras e a estética das músicas e do próprio visual dos grupos, é inegável que o ritmo representou, por bons anos, uma possibilidade de ascensão social para homens negros e/ou periféricos por meio da música.

 

Cerca de 30 anos depois do fenômeno que foi o Pagode 90 – e inclusive com problemas semelhantes ao antigo gênero, e igualmente popular – estão os chamados fluxos. Fábricas de jovens produtores, funkeiros, bailarinos e influenciadores digitais, muitos dos quais em busca de uma rápida ascensão social por meio da música, o fluxo pode ser entendido como uma cultura de massa protagonizada por pretos e periféricos. Em Intersecções, os vídeos e fotografias daqueles que talvez sejam os mais concorridos fluxos da cidade, realizados nas comunidade de Heliópolis e Paraisópolis, foram todos produzidos por jovens agentes locais. Já cooptado, em partes, pela indústria da moda e do entretenimento, o fluxo é o gênero mais jovem acessado pela mostra.

 

Compreender e referenciar artistas e movimentos de impacto local como sendo responsáveis diretos por criar tendências, moldar o comportamento social e contribuir para a construção de identidades, é uma das preciosidades de “Intersecções”. Revelando, dessa forma, uma característica comum ao cotidiano sem glamour desses agentes e territórios: que é a interação e o convívio democrático com o outro, em uma comunhão social e afetiva, por mais antagônico e complexo que o outro possa ser, criando assim uma estratégia social de sobrevivência de subjetividades.

 

Intersecções joga luz sobre movimentos e territórios culturais emancipatórios que atuam, especialmente no campo simbólico, como fomentadores da cultura brasileira atuando na base da produção artística paulistana – fazendo da borda um centro emancipatório. Este recorte diz muito sobre as funções que uma instituição pública pode, e deve, cumprir: estimular a reflexão a partir de produções que nos são cotidianamente próximas, mas cujo olhar pouco estimulado não os identifica enquanto conquistas culturais de inestimado valor. Neste conjunto, destacam-se na mostra as referências ao Samba da Vela, ao Pagode da 27, a Roda de Capoeira da Praça da República, ao Centro Cultural Quilombaque, a Ação Educativa, a Comunidade Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos da Penha de França, o Museu Afro Brasil, o Geledés, a Feira Preta e a Embaixada do Samba Paulistano.

 

 

 

Centro Cultural Quilombaque, localizado em Perus. // Foto Tally Campos

 

 

 

Em abril de 2016, a cidade de São Paulo viu surgir no centro da capital, especificamente na Rua Apa, 78, em Campos Elíseos, a Aparelha Luzia, liderada por Erica Malunguinho. A Aparelha conseguiu se constituir em pouquíssimo espaço de tempo – reunindo, no primeiro momento, alguns dos mais atuantes artistas, estudantes, acadêmicos, jornalistas, agentes culturais da cidade – no mais importante território do pensamento negro contemporâneo progressista de São Paulo. Com o tempo, se transformou na meca paulistana da comunidade negra lgbtqia+, mas ainda atuando como um importante espaço de afetividades, de construção e afirmação de identidades, e acolhimento. Na mostra, a Aparelha se faz presente por meio da reprodução de alguns registros do seu purpurinado álbum de retratos do Instagram. Foi na Aparelha Luzia, aliás, que ocorreu a mais recente edição do urgente Festival BixaNagô, representado em Interseções por registros fotográficos e por seu necessário Vídeo Manifesto.

 

 

 

Manifesto BixaNago

 

 

 

A partir de meados do início dos anos 2000, em um movimento que se desdobrou ainda pelos primeiros anos da segunda década, a cidade de São Paulo registrou o nascimento de um potente movimento literário periférico, que teve na proliferação de saraus e slams, e na formação de novos escritores e leitores, uma revolução silenciosa vinda de baixo para cima. Se por um lado as expectativas iniciais não se cumpriram em sua plenitude – é fato que a literatura produzida nas periferias de São Paulo neste início de século entrou na agenda cultural da cidade, com a sedimentação de editoras, feiras e uma constante produção de novos títulos. A literatura negra, majoritariamente interseccionada com a literatura periférica sob a perspectiva social, aproveitou o momento – já diante de uma longa tradição literária – para ocupar um espaço mais denso na cena. Intersecções homenageia autores e editoras negras e periféricas de diferentes gerações por meio da exibição de livros, antologias e na criação de um ambiente imersivo alusivo ao Sarau Elo da Corrente, realizado no Bar do Santista, em Pirituba.

 

 

 

Alguns dos livros exibidos em Intersecções.

 

 

 

Com curadoria de Jera, o núcleo indígena tem como pontos de destaque a relação antagônica com aquilo que comumente se vê em mostras que se debruçam sobre essa comunidade. Não espere ver plumas, penas, ou outros elementos estereotipados sobre a cultura indígena de São Paulo. Jera e Eleilson optaram por reproduzir uma casa de rezas, com áudios gravados da aldeia guarani Tekoa Kalipety. Também há na exposição um jarro com a água da cachoeira Capivari da terra Tenondé, que é a única e última com água limpa dentro do município de São Paulo.

 

Intersecções e espaços culturais como o Museu da Cidade, corroboram com a ideia de que instituições públicas com artes, atentas às movimentações de uma produção cultural local, cumprem um papel fundamental não apenas para a desmistificação das artes visuais no país, aproximando o público deste universo ainda pouco inclusivo, mas principalmente agindo na valorização e fomentação de agentes culturais, artistas interdisciplinares de pouca visibilidade e seus territórios, responsáveis por sedimentar as bases da cultura do Brasil e por oferecer caminhos para uma sociedade melhor.

 

 

 

 

 

 

 

Nabor Jr.

Nabor Jr. é fundador-diretor da Revista O Menelick 2° Ato. Jornalista com especialização em Jornalismo Cultural e História da Arte, também atua como fotógrafo com o pseudônimo MANDELACREW.

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.