abril de 2011

MEMÓRIA E RESISTÊNCIA NA ARTE CONTEMPORÂNEA AFROBRASILEIRA

Renata Felinto

 

 

 

 

 

 

 

 

A arte contemporânea brasileira recebe influências diversas e envereda por vários caminhos, sendo um dos observados a tendência a um grande recorte ou mesmo releitura de tudo o que já foi produzido em artes plásticas até hoje.

 

A pesquisadora Kátia Canton, explicita e contextualiza esta disposição às apropriações, citações e releituras apontadas por meio de uma pesquisa na qual mapeou 70 artistas brasileiros e identificou temáticas recorrentes como, por exemplo, a memória física e psíquica; identidade e anonimato; estranhamento e auto imagem. Algumas das temáticas citadas estão em consonância com a produção de artistas afrodescendentes contemporâneos como Edson Barrus, Eustáquio Neves e Rosana Paulino, que aproximam-se destes assuntos contemplando aspectos estéticos e tecendo reflexões sobre a trajetória e o lugar ocupado pela população negra.

 

Barrus, Neves e Paulino coincidem na temática norteada pelo fio antropológico, ancestral, negro, escravo e na opção por técnicas derivadas da linguagem fotográfica, porém, sobretudo, estabelecem relações entre suas heranças africanas e seu presente afrodescendente apresentando obras que não se limitam à menção da religiosidade afrobrasileira, ampliando, assim, a compreensão do que vem a ser a arte afrodescendente.

 

Edson Barrus é pernambucano, formado em Zootecnia e Mestre em História da Arte. Sob o título Base Central Cão Mulato, sua obra metaforiza e compara a qualidade de mulato à de um cão vira-lata, ambos resultados de cruzamentos.

 

Em sua instalação, Barrus simula o cruzamento dos DNAs de raças de cães previamente selecionadas, que se completa na Base Central Cão Mulato formada por vários equipamentos. O racismo praticado contra o mulato, que de forma contundente e agressiva é comparado a um vira-lata é o mote da obra. O quadro observado revela a inquietação: “o que são os mulatos dentro da sociedade brasileira?”. Inquietação que permeia o trabalho de Barrus, já que o mulato, de fato, não é branco e nem negro, é exatamente os dois, um tipo novo, que se reinventa, na visão categórica do artista, assim como um cão vira-lata.

 

EUSTÁQUIO NEVES
Série Futebol
1997

O mineiro Eustáquio Neves é autodidata desde 1984, e abandonou a profissão de químico técnico para se dedicar integralmente à fotografia. Seus trabalhos são produtos de imagens fragmentadas que se reconstroem através do processo químico, pela superposição de negativos, dando origem a imagens duplas, até múltiplas, conferindo às mesmas aspecto antigo, espectral, que pode ser relacionada à memória, ao ancestral. Neves desvela, através das imagens da série Arturos, a condição de humanidade que séculos de escravidão tentaram subtrair aos descendentes dos africanos no Brasil. Os Arturos constituem um grupo familiar de negros que vivem em Contagem (MG). A manutenção da cultura negra e afro-religiosa recebida de seus ancestrais e materializada em festas é a sua principal característica. A origem da comunidade é o negro Arthur Camilo Silvério.

 

“As obras destes artistas caminham para além do aspecto formal, pois incomodam, comunicam e socializam certos saberes, demonstrando que eles estão na contramão da tendência da arte que cita a si própria e que, não raramente, gera produções ininteligíveis restringindo e afastando o grande público da apreciação da arte contemporânea”.

 

Com está série, Neves fez com que a tradição se revestisse de roupagem atual, despertando naqueles que tomam contato com a obra valores ancestrais estranhos à realidade pós-moderna. Quantos não são os afrodescendentes que não sabem a história de suas famílias? De seus ancestrais? Com Arturos, Eustáquio Neves recupera a narrativa de descendentes de africanos que se recriam e se relembram no seu simples modo de ser, viver e pertencer.

 

Rosana Paulino, paulistana formada em Artes Plásticas retira de suas vivências o seu assunto principal. No universo da sua intimidade, transmite e causa reflexões ao compartilhar o exercício de ser “mulher e negra” em um mundo moldado para o “homem e branco”. Na pequena série Sem título, na qual a artista usa como suporte bastidores de bordado com fotografias de mulheres de sua família transferidas para o tecido, evidencia a condição de mulheres que se sentem impotentes diante de uma sociedade que as menospreza, que ignora suas opiniões, seus anseios e sua estética. Todas essas privações foram exteriorizadas por Paulino através de um ato doméstico: costurar, coser. O inocente ato de costurar ou de bordar é transformado em agressão, coação, deformação. O que de belo resultaria da confecção das linhas coloridas de um bordado, manifesta-se como a impossibilidade de ser, ter e pertencer a todos os valores que estão agregados a este fazer: ter um marido, uma família, constituir um lar.

 

ROSANA PAULINO
Série Bastidores
1996/1997

 

 

Suas mulheres são cerzidas, assim como algumas mulheres que sofrem a excisão, e por isso são privadas do prazer sexual, neste caso, privadas do prazer de viver com dignidade, com a consciência do próprio valor. Esse contra-senso, ou até “castração social”, é perceptível no cotidiano de mulheres negras abandonadas à própria sorte pelo companheiro, pelos serviços sociais, pela sociedade.

 

ROSANA PAULINO
Classificar é saber 2?
Imagem transferida sobre papel e colagem
56 X 42 cm
2016

 

 

Barrus, Neves e Paulino tocam em feridas mal cicatrizadas que persistem no cotidiano do povo brasileiro e também resistem ao ambiente misterioso da arte contemporânea nacional.

 

 

 

 

 

Renata Felinto

RENATA FELINTO é professora adjunta de Teoria da Arte da URCA/CE. Doutora e mestra em Artes Visuais pelo IA/UNESP, bacharel em Artes Plásticas pela mesma instituição. Licenciada em Artes Plásticas pelo Centro Belas Artes. Especialista em Curadoria e Educação em Museus de Arte pelo MAC/USP.

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.