junho de 2019

DE OLHOS BEM ABERTOS OU, ALGUMAS POUCAS PERGUNTAS ESCRITAS PARA UM PUNHADO DE RESPOSTAS A SEREM DITAS

Nabor Jr.

 

 

 

 

 

 

fotos MANDELACREW
Henrique Saad

 

 

 

 

 

 

Não são poucas as semelhanças que tecem o novelo de proximidades que existe entre as artistas Lídia Lisboa e Sheyla Ayó. Mulheres, negras, mães… e atualmente com trabalhos expostos em duas mostras coletivas na cidade de São Paulo. Lisboa, ao lado de outros 13 artistas negros, em PretAtitude – Emergências, insurgências, afirmações, com curadoria de Claudinei Roberto, no Sesc Vila Mariana. Ayó, na companhia de 17 artistas (Lídia Lisboa entre elas), todas mulheres “racializadas”, conforme afirma a curadora da exposição, Carolina Lauriano, em “A noite não adormecerá jamais nos olhos nossos”, na Baró Galeria.

 

O mesmo fio da trama que as entrelaça, contudo, também tem seus nós, fazendo surgir a subjetividade que as constitui. A performática Lisboa – e suas instigantes instalações – soma mais de 20 anos de carreira, dezenas de exposições realizadas e um bom número de obras já comercializadas. A contida Ayó – e suas spirituals paints – mesmo com a produção ininterrupta de cerca de uma década, faz seu batismo, de fato, agora, em “A noite não adormecerá jamais nos olhos nossos”.

 

Desatando as distintas trajetórias artísticas, ambas compartilham, curiosamente, sentimentos comuns sobre o momento de suas carreiras: Lisboa e Ayó comungam grande expectativa com relação ao significativo aumento das temáticas envolvendo raça e gênero nas recentes exposições apresentadas no país, e como este “movimento” pode impactar em suas carreiras. O entusiasmo se repete com a competente e ascendente geração de curadoras e curadores negros brasileiros.

 

À convite da Revista O Menelick 2° Ato; Lisboa e Ayó se dispuseram a elaborar, por escrito, sete perguntas com curiosidades que pudessem ter sobre a obra e a vida uma da outra. Sem que soubessem previamente o teor das questões, elas nos receberam em seus respectivos ateliês para se responderem, para se falarem, no escuro. Sem se verem.

 

De olhos bem abertos ou, algumas poucas perguntas escritas para um punhado de respostas a serem ditas é, portanto, uma conversa, agora tornada pública, entre duas importantes artistas contemporâneas brasileiras. Desfrutemos.

 

 

 

 

 

SHEYLA PERGUNTA, LÍDIA RESPONDE

 

 

Sheyla Ayó – Como você elabora os seus processos criativos? Qual é a fonte ou, quais são as fontes que alimentam esses processos?

Lídia Lisboa – Tem muita coisa que me inspira. Por exemplo, quando comecei meu processo de arte – em uma época em que trabalhava num ateliê de alta costura, já em São Paulo, na rua Simão Alvares – nesse período, e isso aconteceu lá pelos idos de 1988,  tive muito contato com chapéus, flores, rendas, miçangas, cristais… E de repente comecei a pegar gosto por aquele trabalho, pelas coisas com que mexia, que manipulava… pelos tecidos, pelas miudezas… enfim, elementos que ainda hoje estão presentes no meu trabalho.

 

Numa outra época conheci uma mulher – que me chamou muito a atenção – e que certa vez me disse: “Você é artista de tudo! Deve procurar seu caminho”. Isso me encorajou. Aí comecei a pesquisar, ir atrás…

 

Mas resumindo, o meu processo é todo interligado. É como se fosse uma continuação do meu corpo. Eu penso, esse pensamento entra em mim e sai pelas minhas mãos… Eu não sei explicar. Simplesmente é uma coisa que faz parte de mim. O meu processo sou eu.

 

 

Lídia Lisboa em seu ateliê: “o artista não pode ser medíocre, não pode se trair. O artista tem que ser verdadeiro”

 

 

 

 

Sheyla Ayó – Ser mulher, artista e negra é um incômodo para o mundo?

Lídia Lisboa – Essa vergonha não é minha! Eu não tenho problema nenhum em ser mulher, em ser artista e em ser negra. Sou negra e daí!? Eu já falava isso desde criança. Vinha uma e dizia: “ahhhh, sua neguinha!” Eu olhava bem no olho dela, e dizia: “Sou neguinha, e daí!?”

 

Tenho nome e sobrenome. Isso pra mim, para ser sincera, não me incomoda. Não é um problema meu. Se a pessoa é racista, isso é problema dela! Ela que vá se cuidar, se tratar. Eu estou aqui, nada vai mudar. Vou continuar produzindo, vou continuar trabalhando, vou continuar criando… e isso eternamente. E ainda tem mais, minha obra faz parte do mundo. Ela não vai morrer. Então, eu sou eterna.

 

Sheyla Ayó – Na sua obra “Casulos”… Ainda existe algum casulo interno que pode ser revelado?

Lídia Lisboa – Não. Todos os meus casulos já foram revelados. Essa história do casulo existe, na verdade, por causa da Dindinha. Quando eu era criança, com meus cinco, seis anos de idade, no Mato Grosso, a Dindinha tinha a casa – o casulo – do bicho da seda, e eu gostava muito de ver… gostava de ver aquela luz do sol entrando no casulo, aqueles fios passando…

 

Até hoje não sei o grau de parentesco que eu tinha com a Dindinha, mas ela sempre viveu na minha família.

 

(…) Bom, a verdade é que o tempo passou, eu cresci… e aí estou lá um belo dia interagindo com tule, vendo tule, e isso e aquilo e aí venho na memória, aquela memória que vem de longe, sabe? E essa memória me levou lá na casa do bicho da seda da Dindinha. Daí eu falei pra mima mesma: ‘Meu Deus! Os meus casulos! Eu vou fazer os meus casulos!’ E o tule representa muito bem aqueles casulinhos, aquela cor, aquela linha que puxa… sou apaixonada por este trabalho. É uma lembrança maravilhosa que amo muito.

 

 

Casulo
Tule
2012

 

 

 

Sheyla Ayó – De arte ativismo, se sobrevive no Brasil?

Lídia Lisboa – Eu estou sobrevivendo… não vou dizer de ativismo, porque eu não estou tão ativista assim. Hoje estou meio parada. Eu sempre falo: ‘quando eu era criança, eu era muito mais ativista do que agora’. Atualmente eu diria que estou chocando ovo, e que daqui a pouco vão sair os pintinhos!

 

(…) Eu acho que não tem ativismo no meu trabalho. Eu diria que é uma coisa mais de inspiração, de alegria de viver; eu tenho muita alegria de viver. A minha fortaleza é grande. Existe uma fortaleza muito grande dentro de mim… eu diria que eu sou assim como a Muralha da China. Há uma coisa muito forte em mim.

 

 

“Sempre soube desde criança que eu era artista. Meu primeiro trabalho foi uma cama de campana, que fiz para o meu tio Pazinho. Fiz essa cama com várias folhas de feijão guandu e coloquei uma florzinha amarela do próprio feijão guandu no meio da cama. Só que Tio Pazinho ficou muito intrigado com aquilo. E pediu para que minha mãe ficasse de olho em mim, ele dizia que eu não fazia parte desse mundo, que eu era diferente. Depois de um tempo, quando ele veio no meu ateliê, isso mais ou menos em 1994, aqui em São Paulo, ele falou: “Agora eu entendi quem era aquela criança. Aquela criança era uma artista”. Talvez por isso eu não consiga explicar o meu processo. Isso faz parte do meu cotidiano, enquanto eu bebo, enquanto eu ando, vejo, trabalho… eu estou processando tudo a todo momento, estou criando enquanto tudo isso acontece. Tudo está muito ligado, minha vida e minha produção”.

 

Sheyla Ayó – Qual a sua opinião quanto aos olhares de muitos curadores só agora para as artes visuais negras. Existe algum indício de mudança positiva para nós?

Lídia Lisboa – Existe muito. Estou levando em consideração que estou nas mãos de gente muito boa. Nas mãos de gente que olha pra mim, que olha para o que estou fazendo.

 

Por exemplo, quando eu tinha 11 anos de idade, eu era atleta. E nessa época eu tinha muita convivência com o meu professor. Antônio Alves Moreira era o nome dele. Lembro que a esposa dele – ele já era um senhor – também o ajudava. E eles estavam o tempo todo junto comigo, o tempo todo cuidando de mim. E eu sinto isso pelos curadores. O Claudinei (Roberto), por exemplo, quando ele vem aqui no meu ateliê, ele olha o que eu estou fazendo, olha pra mim… mostra-se muito interessado. A Fabiana Lopes a mesma coisa, ela vem aqui, ela olha, ela vê, quer saber o que está acontecendo, como estou fazendo… O Hélio Menezes veio aqui também e ficou enlouquecido, porque ele viu vida nisso aqui (casa/ateliê da artista). Aqui tudo é quente. Nada aqui é frio, porque sou eu que faço, que confecciono, que cuida de tudo.

Cupinzeiros
Terracota
2013

 

 

 

Sheyla Ayó – A arte negra é sempre uma arte política?

Lídia Lisboa – Se a gente olhar para a obra do Sidney Amaral, por exemplo, ele era um ativista. E ele colocava na nossa cara o que estava acontecendo. O trabalho dele mexia muito comigo. Me fez enxergar muita coisa.

 

Mas eu diria que a arte negra pode ser política, mas nem sempre. Eu não sou uma artista política. Mas existem os artistas negros da arte política. O No Martins, por exemplo, basta ver os seus trabalhos. A Sônia Gomes, por outro lado, não é. Já a Rosana Paulino é e não é ao mesmo tempo. Ela é muito genuína, organizada… Acho que é isso.

 

 

Cordão Umbilical
Botões e contas de cerâmica
2014

 

 

Sheyla Ayó – Uma artista precisa sempre costurar seus retalhos de memória para criar?

Lídia Lisboa – Não, não precisa. Mas é preciso ser verdadeiro. O artista não pode ser medíocre. (…) O artista não pode se trair. O artista, se não descansa, carrega pedra. Aqui no Brasil você ser artista as vezes é passar fome, mas você continua artista. Eu acho que é isso o que vale.

 

 

 

 

 LÍDIA PERGUNTA, SHEYLA RESPONDE

 

Sheyla Ayó, em seu ateliê: se o racismo me derruba? Não, ele me leva a diante.

 

 

 

Lídia Lisboa – Como e quando a arte nasceu dentro de você?

Sheyla Ayó – A arte nasceu em mim desde que eu nasci. Me lembro de algumas passagens de quando era bem pequena, e eu tinha o gesto de rabiscar as paredes. Minha mãe ficava bem brava com isso. E vendo hoje, ali era um modo meu de comunicação.

 

Sempre fui uma criança que teve poucos brinquedos. Filha mais velha de dois irmãos, então a gente brincava muito de rabiscar, de inventar o nosso mundo através do desenho. E a gente fazia isso através das paredes, usando caquinho de giz, de louça, pedrinhas… e criando um mundo à parte.

 

 

“O vínculo do candomblé com a minha produção artística começou há dois anos. Na época eu estava passando por vários problemas pessoais, de saúde, alguns episódios de depressão, enfim… a coisa estava ficando muito difícil. Procurei a religião pra me acalmar um pouco, mas acabei me apaixonando, entrei de cabeça e estou até hoje. Ela (a religião) me deu muito calma, minha produção hoje é mais limpa, faço as coisas com mais tranquilidade. É um outro trabalho. É como se ela me despertasse, como se abrisse uma porta dentro de mim que estava trancada e que tinha algo ali que precisava sair. E eu não estava encontrando a chave para fazer isso, e com a religião foi mais fácil”.

Lídia Lisboa – Você é educadora. As crianças te inspiram?

Sheyla Ayó – Muito. Às vezes estou lá – na sala de aula – mais para aprender do que para ensinar. Tem situações que estou vivendo algo difícil e busco muito o sentimento dentro da minha aprendizagem com as crianças.

 

Lídia Lisboa – Você agrega os problemas do mundo a sua arte?

Sheyla Ayó – Eu acho que sim. Na verdade, querer eu não quero, mas eu proponho que as pessoas respondam sobre os problemas do mundo através da minha arte. Por isso não coloco título nas minhas obras, quero que as pessoas se encontrem, sem intermediação, dentro dos trabalhos que produzo.

 

Sem título
Nanquim sobre tela
2018/2019

 

 

Lídia Lisboa – O racismo te derruba, ou te leva adiante?

Sheyla Ayó – O racismo é cruel, né. A gente sabe como é que ele funciona. E se eu começar a falar aqui de questões acerca do racismo eu vou ser repetitiva. Mas o racismo me leva a diante. Ele me impulsiona. Sabe a história da massa de pão: de quanto mais você bate, mais ela cresce? Eu acho que isso acontece comigo.

 

 

“Essa exposição na Galeria Baró vai ser um termômetro. Vamos ver como as pessoas vão reagir. Porque uma coisa é você mostrar seus trabalhos no Instagram, que tem um público fracionado, enfim. Outra coisa é abrir para o público da Baró, que é um público mais refinado, que não conhece minha produção… vamos ver qual leitura eles farão do meu trabalho. É diferente.”

Lídia Lisboa – A sua família te vê como artista?

Sheyla Ayó – Isso é engraçado. Minha mãe acha que eu só faço desenhos. Meu pai acha que meus trabalhos, especialmente esses trabalhos mais atuais, precisam de um pouco de cor. Mas, do modo deles, eles me veem como artista, sim.

 

“Algumas pessoas já me disseram que este trabalho, apesar de transparecer
uma aparente calma,
em alguns momentos se torna violento”.

 

 

 

“Esses trabalhos parecem, ou melhor, eles são, algumas visões que eu tenho durante o transe. Porque eu sou uma Iaô. E o Iaô é aquele que entra no transe, que incorpora… E em alguns momentos do transe eu vejo linhas parecidas. Até que um dia, despretensiosamente, comecei a reproduzir essas linhas. Depois a pintura foi fluindo, foram surgindo alguns gráficos e se deu essa vazão de sentimentos. E como eu sou uma filha de Oxum, fui fazendo correlações com a água, seus movimentos… e produzindo.

Lídia Lisboa – Você acha possível viver de arte no Brasil?

Sheyla Ayó – Pra viver de arte no Brasil você precisar ter uma estratégia. Na verdade, uma não, mas duas, três, quatro estratégias na manga. Porque a gente tem que matar um leão por dia. Mas acho possível, sim. Com planejamento, com garra, com produção, coerência. Acho possível. Tem exemplos aí que a gente vê como a Rosana Paulino, o Moisés Patrício, a Lídia Lisboa, pessoas que fazem a gente crer nisso. A gente tem que se organizar, tem que produzir e achar os caminhos certos pra que isso aconteça.

 

 

 

 

Lídia Lisboa – Que mensagem você deixa para nós, artistas?

Sheyla Ayó – Não parem de produzir. Nunca deixem de produzir. Mesmo que as pessoas digam que o seu trabalho não é bom. Já ouvi tanta coisa de curador… que o meu trabalho não era tão bom assim, que eu precisava estudar muito mais. Enfim, não pare de produzir, porque muitas vezes tem gente se inspirando em você, sempre tem alguém que está te vendo. Então essa é minha mensagem: não parar de produzir.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

+

  • PretAtitude
    Até 18 de agosto
    Sesc Vila Mariana
    Rua Pelotas 141
    São Paulo/SP

 

  • A noite não adormecerá jamais nos olhos nossos
    Até 20 de julho
    Baró Galeria
    Rua da Consolação, 3417
    São Paulo/SP

 

 

 

 

 

 

 

Nabor Jr.

Nabor Jr. é fundador-diretor da Revista O Menelick 2° Ato. Jornalista com especialização em Jornalismo Cultural e História da Arte, também atua como fotógrafo com o pseudônimo MANDELACREW.

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.