março de 2013

A ARTE NEGRA CONTEMPORÂNEA NA ERA DO PÓS HIP-HOP

Nabor Jr.

 

 

 

fotos MANDELACREW

 

 

 

 

 

 

Mundialmente conhecido como o berço da cultura Hip Hop, os Estados Unidos, em especial a cidade de Nova Iorque, pouco mais de 40 anos após os primeiros registros oficiais do movimento na metrópole, segue sendo intensamente influenciada por seus aspectos sociais, econômicos e culturais. Em suma, o Hip Hop, especialmente a partir do final dos anos 80, esta para Nova Iorque, tal qual o samba para o Rio de Janeiro, ou seja, intrínseco ao seu cotidiano. E isso não é pouca coisa se tratando da mais importante cidade do mundo, radar para os demais grandes centros urbanos do planeta.

 

Essa quase onipresença pode ser observada, por exemplo, nos trens e metrôs nova-iorquinos, onde a cada 5 ou 10 minutos (no máximo), jovens, adultos, homens e mulheres desfilam seus fones de ouvido coloridos com o volume no talo, ecoando a singular e inconfundível batida do rap que incontrolavelmente se espalha pelos vagões do subway. O peculiar modo de se vestir e gesticular, não somente nos guetos, nem tão pouco apenas entre os jovens e negros, e para além do Bronx, Queens, Brooklyn e Harlem, também é visível nas principais ruas da rica Manhattan. Muitos cafés, restaurantes, lanchonetes e barbearias tem o rap como música ambiente e o graffiti como decoração interior. A forte presença negra e latina nos quatro cantos da cidade explica, talvez, um pouco deste fenômeno cultural.

 

No entanto, para além dos seus conhecidos quatro elementos estruturais (Mc, Dj, Graffitti e o Breakdance), os desdobramentos e ramificações por quais passaram a cultura Hip Hop ao longo das últimas décadas, em virtude do processo de massificação que o movimento sofreu e, principalmente, pelo modo como a indústria se apropriou dele, o transformou em um grande e lucrativo negócio, movimentando um mercado de cifras astronômicas dentro e fora dos EUA. Em parte, desvirtuando suas intenções iniciais.

 

Em parte, pois, por outro lado, a essência do movimento, basicamente surgido como uma resposta à escassez de políticas públicas voltadas aos jovens negros e latinos moradores das periferias de Nova Iorque, é quem continua a dar fôlego e subsídio cultural a essa manifestação. Andando pelas ruas da cidade observamos que parcela considerável dos jovens negros e latinos das bordas da Big Aple ainda hoje veêm no Hip Hop uma ferramenta de apoderamento, e seguem espalhando suas rimas ásperas, rabiscos contestados, danças acrobáticas e inspirados scratchings com a única pretensão de se sentirem parte de um determinado grupo. O celeiro das ruas é farto, rico culturalmente, descolado e admirado. Não por acaso, há quase três décadas o Hip Hop constrói ídolos, dita tendências, influencia pessoas e organizações nos Estados Unidos.

 

 

Incorporado, a sua maneira, a sociedade norte-americana, a presença da cultura Hip Hop na televisão, rádio, capas de revistas, jornais ou simbolizada em roupas e na atitude de alguns dos homens e mulheres mais ricos e poderosos do país não é mais discutida. O movimento está lá, ocupando o seu devido lugar, e ponto. Atualmente, a reflexão proposta por alguns pensadores da sociedade estadunidense que estuda o movimento Hip Hop esta concentrada na maneira em que ele é utilizado passado o processo de apropriação que atravessou, no legado artístico construiu em cerca de 40 anos de intensa produção e na busca por interpretações que sinalizem os rumos que o Hip Hop seguirá nas próximas décadas.

 

Em 2013, os Estados Unidos vive a era do pós Hip Hop, fato que impulsiona uma discussão e uma reflexão da complexidade do movimento para além do MC, graffiteiro, Dj e breakdancer. Uma vez que sua influência estética e comportamental hoje também está refletida no trabalho de videomakers, artistas plásticos, performers, estilistas e em vanguardista das artes em geral.

 

É e justamente a criação artística negra de ponta, fortemente influenciada pela cultura Hip Hop, o mote da exposição e-merging: visual art & music in a post-hip-hop era alojada no MoCADA (Museum of Contemporary African Diasporan Arts), no Brooklyn, em Nova Iorque, e que fica em cartaz até o final do próximo mês de maio.

 

 

“A partir do Harlem Renaissance (movimento cultural centrado no Harlem entre os anos de 1919 e início dos 30 e caracterizado pela ampla variedade de elementos e estilos culturais produzidos pelos negros), passando pelo Black Arts Movement (ramo artístico do movimento Black Power e que ocorreu entre 1965 e meados de 1975. É considerado um dos momentos mais ricos e controversos da história da literatura americana) e chegando ao Hip Hop, a cultura negra tem uma história de movimentos interdisciplinares nas artes. A contribuição de hoje a esta tradição é ampliada e expandida pelas facilidades da conexão. O acesso para o mundo inteiro esta a apenas alguns cliques de distância. O movimento artístico de hoje emerge da quase onipresença da cultura global do Hip Hop, e mantém muitas das suas características estéticas e postura política. No entanto, em 2013, resolvemos que essa produção cultural de décadas anteriores fosse filtrada através de um ambiente complexo de sonhos globais, tradições, nostalgia, futurismo, todos em uma era de conectividade intercontinental. e-merging é uma experiência curatorial que coloca a arte visual e a música lado a lado, explorando uma variedade de expressões artísticas que definem este e-mergente como única fusão de culturas e formas de arte”, afirma o curador da mostra e diretor do MoCADA, James Bartlette.

 

Muito bem montada no pequeno, mas agradável espaço expositivo do museu, e-merging está divida em quatro ambientes. Com ar futurista, a mostra reúne obras que passeiam entre instalações, vídeos, pinturas, colagens e músicas que nos estimulam a refletir sobre o impacto do movimento Hip Hop na jovem produção artística negra contemporânea em diversas partes do mundo. Também nos leva a crer que o intercâmbio cultural entre artistas e produtores de diferentes nações onde o Hip Hop é, de fato, uma manifestação consolidada, pode ser uma das chaves para a constante evolução estética e fortalecimento das artes negras.

 

Voltando a exposição, o primeiro ambiente nos revela um ousado conceito de arte negra contemporânea, sem estereótipos e com pouquíssimos precedentes, ao menos a baixo da linha do Equador. No espaço revezam-se na parede branca do museu a projeção de vídeos de artistas e coletivos que dialogam com a vanguarda do que entende-se por arte negra moderna, misturando o universo lúdico do Hip Hop (com suas vestimentas e acessórios característicos), com dança, oralidade, performance e aspectos da vida do jovem negro urbano das grandes metrópoles.

 

 

A sala é composta por vídeos do artista Kudzanai Chiurai (Iyeza, 2009), natural do Zimbabwe; uma parceria entre os artistas norte-americanos Hawk Willis Thomas e Kambui Olujimi (Winter América, 2006); um trabalho em conjunto entre a antenadíssima revista de fotografia dedicada a subcultura, artes e conflitos Hycide e o filmmaker nova-iorquino Cinque Northem (Black Magic, 2012); um vídeo da jornalista dedicada ao universo do Hip Hop e crítica cultural Dream Hampton (Queens, 2012), do filmmaker Kahlil Joseph (Until the Quiet, 2012 e Black Up, 2011) e do fotógrafo sul-africano Pieter Hugo (Control, 2011).

 

No mesmo ambiente, uma pequena instalação com colagens e pinturas feitas em capas de discos de soul music, rap e R&B antigos, além da colorida tela The Minister of Arts and Culture (2009), do artista plástico Kudzanai Chiurai, dividem espaço com músicas que ora exploram a plataforma de vídeo-instalações, ora interagem com a atmosfera do ambiente e dialogam com as imagens expostas. A dupla THESSatisfaction (também autora do vídeo performance Queens), o músico e produtor Flying Lotus, o afro-futurisma músico sul-africano Spoek Mathambo, uma parceria entre os conhecidos Jay-Z e Chris Martin (Coldplay) e a dupla Shabazz Palaces, de Seattle, assinam a progressista parte musical do espaço.

 

 

“Com novas formas emergentes de comunicação e a conexão cada vez maior de pessoas em todo o mundo, a convergência artística chegou a um novo nível de intensidade. E em nenhum lugar isso é mais evidente do que nas obras de artistas negros contemporâneos. Partindo de uma linhagem histórica de inter-artes e movimentos, a partir do Harlem Renaissance, passando pelo Black Arts Movement até chegarmos ao movimento Hip Hop, a arte negra contemporânea, a partir dessas tradições, estabelece novas bases para o crescimento cultural. E o Hip Hop talvez seja a primeira cultura verdadeiramente global que temos. Há poucos lugares na terra que não foram significativamente tocados por sua música, estética, auto-empoderamento/engrandecimento e psicologia. Convergente e fundindo-se com culturas e tradições locais para criar inúmeras sub-culturas, a influência mundial do Hip Hop criou uma linha comum de partilha de experiências que se estende ao redor do globo. A influência deste quadro cultural comum foi ampliado exponencialmente pela tecnologia moderna que tem conectado simultaneamente o mundo. Esses dois fenômenos, nostalgia comum e conectividade generalizada, vieram a definir a era contemporânea da arte negra. Ao contrário dos últimos movimentos de arte negra que foram quase exclusivamente dominados pelos afro-americanos, a época atual mostra um achatamento do mundo, com artistas negros de todas as partes moldando ativamente o diálogo cultural”, ressalta Bartlett.

 

 

Caminhando pela mostra chegamos ao segundo ambiente, um pouco menor que o primeiro e onde prevalecem as pinturas, colagens e a música. De um lado, ao som de Blitz The Ambassador (Free Your Mind, 2011), estão três quadros do artista plástico californiano Kajahl Benes, que explora em suas pinturas sutilezas raciais, sociais e psicológicas dos africanos e dos afro-americanos com influências do universo tribal primitivo e urbano contemporâneo.

 

Ainda no segundo ambiente, ao som dos quenianos do Just A Band (82), três coloridos trabalhos do artista marroquino Hassan Hajjaj, cuja produção é composta por técnicas e campos visuais que vão desde a concepção e produção de mobiliários feitos com materiais reciclados e artefatos do norte da África, até a utilização de roupas produzidas sob encomenda e fotografia. Uma das molduras das obras em exposição é feita com as tradicionais, ao menos no Brasil, latas verdes de guaraná antártica.

 

So Much Trouble in The World, na voz de Bob Marley, convida o visitante a explorar o terceiro, e penúltimo ambiente da e-merging, claramente dedicado às mulheres. De um lado a jovem artista plástica jamaicana Ebony G. Patterson, que discute em sua produção questões relacionadas à identidade e ao corpo feminino, nos apresenta a instalação Russian, da série Out and Bad, composta por diversos utensílios de tapeçaria, fotografia e calçados adornados a mão.

 

 

No mesmo abiente encontram-se cinco pequenos quadros da franco-senegalesa Delphine Diallo, fotógrafa que acrescenta colagens, desenhos e cores as imagens capturadas por sua câmera.

 

“Uma terceira característica que define a era atual da arte negra mundial é que cada vez mais estão difusas as linhas entre gêneros e formas. Enquanto as definições de mudança e limites são inerentes a arte, a fusão de tradições culturais e o acesso à tecnologia criadas na contemporaneidade facilitaram a hiper-descentralização do poder cultural. Sempre que a energia é distribuída entre muitos, as definições ficam embaçadas, porque não há autoridade para dar respostas definitivas. Assim, ficamos com perguntas como: qual é a diferença entre um vídeo de música, um vídeo de arte, e um curta-metragem?”, avalia Bartlett.

 

Enfim chegamos a última sala da mostra, por sinal, a única com a participação brasileira. Encostadas as paredes do espaço algumas poltronas e fones de ouvido convidam o visitante a sentar, acomodar-se e a assistir ao vídeo The Model, de Kahlil Joseph, que tem em sua trilha algumas canções do experimental e orgânico projeto musical Seu Jorge e Almaz. Intercaladamente, também é projetado nas paredes do mesmo espaço outro vídeo, este produzido em parceria entre os artistas Blitz The Ambassador e Terence Nance.

 

 

Ambos os vídeos discutem a relação escravocrata do negro no mundo moderno. Bartlett finaliza dizendo: “Emergentes apresenta questões sobre a era atual da arte negra, explorando as conversas e nuances artísticas que a caracterizam. É uma experiência curatorial que coloca a arte visual e música lado a lado, e examina uma série de expressões artísticas que moldam o único, o emergente, e a fusão de culturas e formas de arte que continuam a cadeia ininterrupta de energia artística de artista para artista e de geração em geração”.

 

Realmente trata-se de uma exposição fundamental para interessados na jovem e efervescente cultura contemporânea influenciada pelo movimento Hip Hop. E também para jogar luz a produção de talentosos e emergentes novos protagonistas das artes que buscam refletir a condição do negro na sociedade.

 

O recorte preciso apresentado na mostra nos revela as possibilidades e ramificações possíveis para uma arte que não deve se conter em reproduzir seu passado ancestral. Mas, sim tê-lo como referência de uma estrutura estética que não deve nos engessar, mas sim nos impulsionar para voos mais altos. e-merging é um sopro de vitalidade a e inspiração nas artes negras. Bem vindo ao pós Hip Hop chegou.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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e-merging: visual art & music in a post-hip-hop era

MoCADA (Museum of Contemporary African Diasporan Arts)
80 Hanson Pl, Brooklyn, NY 11217, Estados Unidos
Até 26/05
MoCADA

 

 

 

 

 

Nabor Jr.

Nabor Jr. é fundador-diretor da Revista O Menelick 2° Ato. Jornalista com especialização em Jornalismo Cultural e História da Arte, também atua como fotógrafo com o pseudônimo MANDELACREW.

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.