março de 2012

POETIZAR A EXISTÊNCIA E O SER FEMININO: QUATRO POETISAS DA POESIA PRETA PAULISTANA

Renata Felinto

 

 

 

fotos Cassimano e MANDELACREW
ilustrações Renata Felinto

 

 

 

 

 

 

As obras fundamentais de Carolina Maria de Jesus (1914 – 1977) e de Conceição Evaristo e, sem dúvida, de outras escritoras que estão criando Brasil afora como Dinha, Miriam Alves, Cristiane Sobral, Alzira Rufino, Elisa Lucinda, Geni Guimarães, Cidinha da Silva, entre outras, semearam frutos em terras paulistanas. A literatura pensada, imaginada e idealizada por mulheres afrodescendentes não é nascente: é viva, pulsante e crescente. Basta dar uma passada em qualquer dia da semana pelos vários saraus que vêm brotando cidade af(l)ora. Neles, temas como amor, relacionamento, sociedade, política, ancestralidade, memórias, existência, entre outros, demarcam as produções de mulheres pretas dos vários cantos de São Paulo. Mulheres que frutificam a criação, representam as personas de mães, companheiras, amantes profissionais, cidadãs e “escrevevivem”. Apresentamos aqui quatro delas: Elizandra Souza, Priscila Preta, Raquel Almeida e Tula Pilar.

 

Três paulistanas de nascimento e uma de coração que em suas produções têm como bases comuns a oralidade na qual avós, pais e outros parentes (re) contam e (re) criam suas próprias trajetórias, suas referências; a tradição dos cordéis que se relacionam com as questões de oralidade e identidade; a cultura hip hop e de periferia, juntamente com as trocas e descobertas feitas nos saraus que frequentam: e, o ser feminino, que dia a dia se aprende a ser, mulher negra, preta.

 

 

Elizandra Souza ou Mjiba, tem 28 anos é jornalista formada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, desde 2010 e redatora da Agenda Cultural da Periferia (Ação Educativa). Ah, e retomando as leis que durante séculos tentaram restringir o acesso de negros e mestiços aos meios de ensino formais, Elizandra foi aluna cotista (PROUNI). Agora, só no século 21, é que as leis estão mudando e tentando minimizar o grande prejuízo sofrido pela população afrodescendente.

 

Sua família mudou-se de São Paulo para Nova Sorue (BA), quando Elizandra tinha dois anos. Cidade de origem de seus familiares, Nova Sorue exerceu grande influência estética na moça. Deste período, carrega belas memórias, e como a poesia do cotidiano corre pelo seu sangue, ela as intitulou de “Sorriso amargo e lágrima doce”, sintetizando os momentos de visita à casa dos avôs que moravam numa fazenda, e a vontade de se deliciar saboreando castanha de caju, maça e bolacha recheada, pequenos prazeres de criança. A literatura estava presente em sua família via os livretos de cordéis da coleção de sua Tia Zefinha que, vez ou outra, contava uma história para os sobrinhos.

 

O seu interesse pela literatura surgiu quando, ainda menina, se juntava à sua irmã para ler pequenos livros e histórias em quadrinhos, tentando, deste modo, se esquivar do trabalho doméstico. Foi na escola que tomou contato com a poesia de Castro Alves (1847 – 1871) e de outros poetas do período romântico.

 

De volta a São Paulo, em 1996, conheceu a cultura hip hop e, pouco tempo depois, passou a produzir o fanzine. Sua relação com a oralidade, com os cordéis, com a cultura hip hop e o fanzine, tudo isso junto e misturado, despertou em Elizandra o desejo de escrever poesias. Nesta época passou a adotar o codinome Mjiba, que significa “jovem mulher revolucionária” nomeando as mulheres que participaram da luta armada pela independência de Zimbábue. Conheceu, e se apaixonou pelo termo, após ler o livro “Zenzele – Uma carta para a minha filha” (1996) da escritora de Zimbabue, J. Nozipo Mairare.

 

As suas poesias versam sobre muitas temáticas como negritude, identidade, racismo, pois como disse Elizandra: “utilizo a minha escrita como luta política, como forma de conscientização”. Mas, considera que uma das “maiores lutas do século é o amor”. Tem pensando sobre as dificuldades para a concretização das relações de amor e de respeito mútuo entre homens e mulheres negras, mais que isso, na solidão que vive a mulher negra numa sociedade na qual homens brancos e negros desejam o amor advindo do padrão de beleza feminino cristalizado. Sobre as dores e prazeres de ser mulher, Elizandra se posiciona:

 

Sangre mais uma vez!/ Expila do seu corpo/ O embrião não fecundado/ Junte todo o amargor/ E sangre outra vez!/ É dolorido/, Mas sinta com intensidade essa cólica/ Esse mal estar/ Mas sangre mais uma vez!/ Sangre nessa hipócrita sociedade/ Junte todas as dores expelidas/ Retire da calcinha/ Esse absorvente enxarquecido/ E jogue fora todos esses sangrados/ Mas Menstrue e Ação! (MenstruAção)

 

Elizandra já teve seus poemas publicados em várias coletâneas e antologias, como dos Cadernos Negros e possui um livro escrito em parceria com o poeta Akins Kintê e editado pela Edições Toró, chamado Punga (2007), para quem se interessar por conhecer seu trabalho. Quem desejar conhecê-la ao vivo e a versos pode tentar encontrá-la no Sarau da Cooperifa, que ocorre todas as quartas no Bar do Zé Batidão, no Jardim Guarujá, zona sul de São Paulo.

 

 

A preocupação com a saúde emocional e amorosa da mulher negra em nossa sociedade machista, sexista e racista, também é uma das preocupações e temas da poeta Priscila Santos Martins, ou Priscila Preta. Com 27 anos de idade, a poeta, formada no curso de Comunicação das Artes do Corpo da PUC (SP) também é atriz e fundadora da Companhia de Arte Negra As Capulanas. O nome Priscila Preta apareceu nas escolas privadas nas quais estudou como forma de distingui-la da maioria de “Priscilas” brancas, uma vez que era, geralmente a única negra.

 

Conheceu a literatura escrita ainda criança, pois por obter boas notas era presenteada com livros. Entretanto, foi ao ter aulas com um professor de literatura que também era músico que despertou para a cena artística multimídia (artes cênicas, música e literatura), já que além da criação de textos, o professor promovia a encenação das histórias cunhadas por seus alunos. O que não faz um bom professor na vida das pessoas…

 

As impressões e vivências cotidianas são referenciais para a sua produção artística, como a prática de sua avó Maria que era benzedeira: “… tudo que ela fazia pra mim era muito mágico, eu observava a dança de suas mãos com a arruda molhada na água com sal, ela falava palavras que nunca consegui entender e depois batia a arruda nas mãos da pessoa… Eu via isso muitas vezes no mesmo dia, mas não me cansava de ver e de ser benzida também… E eu ficava ali me apaixonando cada minuto por ela”.

 

A poeta de aparência forte e corpulenta, que por vezes parece até estar pronta para a guerra, em verdade é puro coração. Apesar de em sua poesia trazer a tona vários temas, são as paixões do corpo que dominam a sua escrita atualmente: homem e mulher, sensualidade e erotismo.

 

Preto que boca é essa?/ Vem falar aqui nas minhas ruas/ Nuas escuras/ Deixa eu provar dessa boca berinjela/ Crua/ Carnuda/ Deixa eu me achar nesse céu molhado/ Deitar nesse travesseiro algodão doce/ Preto que boca é essa?/ Seca minha língua/ Ostra minha pérola/ Espera na esquina/ Corre pro ponto/ Chega/ A.C.O.N.C.H.E.GAAAA… (Enú Yanjú)

 

Priscila acredita que a poesia hoje é uma nova forma de (re) ver a vida, “Criar outros desenhos”. Ainda no início de sua carreira como poeta, ela acredita que a poesia possa se apresentar como uma forma de minimizar a depreciação histórica do corpo, psique e coração da mulher negra, tornando-a protagonista, ao menos de suas criações. “A mulher preta durante muito tempo foi privada de muitas coisas. A liberdade é vigiada por alisantes, posturas e estigmas. Somos consideradas fogosas e muitas vezes não temos a oportunidade de fazer amor, apenas se dar pro encontro, pra troca… A poesia é minha bomba, uma forma de explodir os grandes prédios culturais do racismo, do machismo, das relações de poder e construir ocas não ocas… Casas que tem tenham pessoas, trocas e principalmente circularidade”.

 

Com seus poemas publicados em antologias como a III Antologia do Sarau na Brasa (2011), que frequenta há algum tempo, também pode vista declamando nos saraus da Cooperifa, do Binho e Elo da Corrente. Prefere ser chamada de poeta, afinal, como disse: “A palavra já é feminina”.

 

 

E por falar no sarau Elo da Corrente, foi Raquel Almeida da Silva, de 24 anos, que o organizou, em 2007, juntamente com outros escritores. Formada, como ela mesma explica, pelas histórias de sua família, pelas músicas e leituras que faz, pelas relações de amizade e afeto que construiu, pelas pesquisas que realiza, Raquel Almeida, como é conhecida, assim como Elizandra, também teve na literatura de cordel uma de suas primeiras referências. O Almeida de seu sobrenome e que adotou como nome artístico é uma homenagem à sua avó após ter percebido o quanto ela valorizava o sobrenome que carregava.

 

No caso de Raquel, também aparece um tio conhecedor de literatura de cordel que juntava os sobrinhos para recitar e realizar performances e cantorias. Alias, a música também está muito presente em sua vida familiar. Ela se recorda também de que havia muita musicalidade em seu cotidiano: “… me lembro que em todas as atividades feitas em casa, comida, limpeza, construção da casa, meu pai em especifico, cantava musicas conhecidas e no meio disso inventava canções, minha família tem uma coisa curiosa em tudo que faz, faz cantando, é engraçado (risos)”

 

Quando pequena observava sua mãe escrevendo poesias de forma tímida e passou a escrever também, em um caderninho, porém, ainda como um exercício, sem se preocupar com o ato da criação, da temática.

 

A avó, o tio, o avô, a mãe. É evidente que a questão familiar é muito importante tanto na vida quanto no processo criativo de Raquel. Muitos familiares são citados e são referenciais quando ela fala tanto de suas influências quanto de suas memórias. A sensibilidade em adotar o sobrenome que sua avó tanto se orgulhava demonstra este vínculo ancestral, que tem também a função de localizar os indivíduos nesta contemporaneidade que tem privilegiado valores individualistas. As bases de Raquel são os que estão antes dela, os que lhes dão chão, seus antepassados.

 

Preciso beber da fonte ancestral/ Comer feijão com farinha/ Amassado entre os dedos/ Peixe com coco e dendê/ Preciso beber dessa fonte/ Tomar banho de manjericão/ Me encolher no seu colo/ Pedindo proteção/ Preciso me alimentar dessa fonte/ Ouvir suas historias/ Transmiti-las em sonho e orgulho/ Me embalar nas tuas lembranças/ Colher frutos futuros/ Preciso beber dessa fonte/ Fonte materna de inspiração/ Prudência/ Fazer reverencia/ És a ave que escuta os ancestrais e a descendência/ Preciso beber da tua fonte… (Preciso beber da fonte ancestral)

 

Dentre as leituras de sua formação estão livros de suspense, infantis, filosóficos, e, mais uma vez, a música em forma de poesia, nas letras de rap dos Racionais MCs, que os vizinhos ouviam em alto e bom som e que sei pai achava que era música de marginal, de bandido. Proibindo seus filhos de ouvirem. Depois leu o livro do Preto Ghóez “Sociedade do Código de Barras” (2006), outro mundo que se abriu: “…li e fiquei inquieta demais, inconformada, sei lá, acho que foi um estalo que me despertou pra varias coisas”.

 

Pensa na poesia como um instrumento de transformação com maior poder de abrangência do que as manifestações violentas, especialmente quando o assunto é a questão racial: “… vejo que muitos conflitos e preconceitos que eu passava na infância e na adolescência sobre a identidade racial, ainda são tão presentes e agressivos nos dias de hoje, mas falar em forma de gritos, esbravejando militância nem sempre atinge quem realmente queremos, a poesia tem sido um dos meios de transmitir isso, gritando ou não”.

 

Para Raquel apesar do potencial transformador da poesia, é muito importante que as pessoas passem a se informar, a ler mais e a conhecer a história do país, pois sem o autoconhecimento não haverá transformação, mudança. E essa ação deve começar com o espaço no qual vivemos.

 

Para conhecer Raquel basta ir ao sarau Elo da Corrente, em Pirituba, e no Poesia na Brasa, na Brasilândia. Ainda é possível tomar contato com seu trabalho por meio do livro Duas Gerações – Sobrevivendo no Gueto (2008), feito em parceria com a poeta Soninha M.A.Z.O, pelo selo Ela da Corrente Edições. A poeta, ou melhor, poetisa, prefere ser chamada desta forma porque, segundo ela, esta palavra “afirma uma escrita feminina”.

 

 

Dentro deste grupo de quatro poetas, ou poetisas, Tula Pilar Ferreira, nascida em Leopoldina (MG), é a mais experiente, portanto, com uma potência feminina muito latente. A sua maneira de se mover no mundo é lascivamente feminina. A primeira vez que a vi, em 2010, no Sarau do Binho, ela apresentava uma coreografia a partir da dança do ventre, inclusive, trajada a caráter. Foi impressionante observar como os sorrisos nervosos e as brincadeiras de alguns frequentadores eram mais um mecanismo para mascarar a libido despertada pela apresentação sensual. Sim, temos problema em falar sobre sexo e desejo de uma maneira natural. Mas, a mulher é poderosa!

 

Formada pela vida e participante de várias oficinas e cursos livres é conhecida em São Paulo por “Pilar”, nome pelo qual lhe tratava um ex-patrão de origem espanhola. Na infância, criada em casa de pessoas com alto poder aquisitivo, teve acesso a várias leituras próprias do universo da criança das fábulas e contos de fadas europeus às aventuras dos personagens infantis de Monteiro Lobato (1882 – 1948), com os quais ficava fascinada. Se lembra até de ter estudado um pouquinho de inglês nesta época: “Tinha uma moça americana que me ensinava tudo o que perguntava, guardo na memória até hoje”. Criação de moça grã-fina.

 

Começou a escrever, tanto influenciada pela miríade de livros aos quais tinha acesso quanto por seu próprio desejo pessoal. Entretanto, tem consciência de que as histórias que leu a inspiraram profundamente, apesar de muitas vezes não permitirem que ela mergulhasse nas águas da leitura: “… rasgavam tudo e me mandavam trabalhar, fazer algum serviço… Eu era a menina pobre que lia todos os dias enquanto limpava”. Foi a leitura do livro Negras Raízes (1976), de Alex Haley, que a direcionou para as temáticas relacionadas à sua origem afrodescendente e lhe trouxe sabor amargo para a vida, descobrir a maneira como os escravizados norte-americanos foram tratados foi um choque. Também se identificou com o livro A Cor Púrpura (1982), de Alice Walker: “… a história dela é parecida com a minha e de minhas irmãs”.

 

Pilar poderia ser uma pessoa amargurada pelos percalços da vida, entretanto, é das pessoas mais positivas que conheço. Suas poesias refletem esta maneira não vitimizada de ver o mundo e falam sobre o erotismo e sensualidade e também sobre família. Acredita que a poesia está aí para quem quiser, porém que poucos conseguem compreende-la e que, por vezes, apreciar poesia ou ser poeta, pode se tornar um motivo de chacotas tanto por parte de “ricos e pobres, negros e brancos, acadêmicos ou não”. Pilar é mãe, amante, mulher. Isso é o mais fascinante em Pilar, como poucas mulheres, pretas ou não, ela consegue ser tudo isso: a “Oxum-Vênus-Negra” nessa preta é forte! Mas, ela aconselha, ele educa e prepara para vida, como as coisas deveriam ser:

 

Ai moleque/ Ouça o que sua mãe diz/ Tome banho/ Limpe o ouvido e o nariz

Agora/ não é hora de jogar essa bola/ Não enrola, vai pra escola./ Seja inteligente/

Não faça prova copiando cola/ Caminhando ou de lotação/ Vá pedindo informação/ Pra chegar ao curso (grátis/) Lá no Capão/ À tarde tem obrigação/ Cuidar do irmão… (Trecho da poesia Se Liga Moleque)

 

 

 

Faz Muito tempo

As mulheres/ As meninas/ As moças/ As mães e as tias da periferia/ Querem homens profundamente/ Mais educados educadores/ Mais pensantes pensadores/ Mais elegantes não só reprodutores/ Mais generosos e não geniosos/ Mais humanos cidadãos/ Porque a história tem seu ciclos sim/ E tudo se renova de olhos atentos/ E principalmente as avós/ Querem homens que enterrem seus mortos.

 

Faz Muito Tempo, poema presente no livro Negrices em Flor (Edições Toró, 2007), de autoria da poetisa Maria Tereza, paulistana da Nova Cachoeirinha falecida em janeiro de 2012 de uma doença pouco conhecida e, no mínimo, com nome curioso: Síndrome Poems.

 

 

 

 

 

 

 

Renata Felinto

RENATA FELINTO é professora adjunta de Teoria da Arte da URCA/CE. Doutora e mestra em Artes Visuais pelo IA/UNESP, bacharel em Artes Plásticas pela mesma instituição. Licenciada em Artes Plásticas pelo Centro Belas Artes. Especialista em Curadoria e Educação em Museus de Arte pelo MAC/USP.

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.