fevereiro de 2016

PERSPECTIVA DISSONANTE: A AUTORIA DE MULHERES NOS CONTOS DOS CADERNOS NEGROS

Adelia Mathias

 

 

 

 

 

 

Durante o período de 2009 a 2013, li um número crescente de textos acadêmicos que faziam uso da palavra e do conceito de dissonância. Foram artigos em periódicos, dissertações e teses, todas com o evidente objetivo de mostrar vozes que divergiram das ideologias dominantes, na poesia e na prosa, nos diferentes momentos históricos, nacionalidades e segmentos sociais. Essas pesquisas trouxeram novos desafios e novas problematizações para a literatura brasileira contemporânea. O uso do termo dissonância aparecia, em quase todas as produções, associado a outra palavra/conceito: o ruído. Intrigada com a incorporação de conceitos musicais no campo literário, resolvi voltar às aulas de teoria musical e relembrar o básico de tais conceitos para entender melhor a apropriação deles na literatura, especificamente na representação da literatura contemporânea.

 

A dissonância se opõe à consonância inicialmente no quesito harmônico (produção de sons simultâneos – os acordes – a partir de uma escala musical). Enquanto a consonância tem como característica a suavidade harmônica e a estabilidade sonora, a dissonância soa as tensões da harmonia musical e expõe a instabilidade presente nos sons. Já a diferença entre ruído e som está meramente na percepção sensorial e no juízo de valor, enquanto o som é considerado algo bom, o ruído é entendido como um barulho indesejado.

 

Essa breve explicação sobre ruído e dissonância nos encaminha para a proposta deste texto. Se, na teoria musical, dissonância e ruído expõem a tensão sonora, ausente na consonância, de que modo as perspectivas de escritoras afro-brasileiras se diferem e tencionam as perspectivas dominantes?

 

Para confirmar que essas autoras partem de um lugar de fala – a perspectiva – diferenciado, assim como a dissonância difere dos sons harmonicamente estáveis, utilizamos dados da pesquisa Personagens do Romance Brasileiro Contemporâneo (2005). Eles mostram que, de um total de 165 escritoras/es, 120 são homens (72,7%) e 45 são mulheres (27,3%), e que 154 (93,9%) são brancas/os enquanto não brancas/os somam apenas 5 (2,4%). Como a maior parte da autoria é produzida por escritores brancos de classe média, podemos inferir que a autoria de mulheres afro-brasileiras, representantes do grupo que compõe a base da pirâmide social brasileira, destoa dessa perspectiva. Alguns/mas pesquisadores/as conseguem encontrar características nessa autoria que corroboram com tais inferências.

 

 

No artigo Gênero e violência na literatura afro-brasileira, Constância Duarte faz uma reflexão: “Já há algum tempo, quando leio escritos de autoria feminina, reparo que raramente eles tratam da questão que me parece a mais urgente, a mais premente, que nenhuma mulher pode ignorar. Onde estão as marcas literárias da violência a que cotidianamente as mulheres são submetidas? Onde, as dores do espancamento, do estupro, do aborto?”

 

Após esse questionamento, a pesquisadora diz encontrar tais representações, com certa regularidade, na autoria das escritoras afro-brasileiras dos Cadernos Negros.

 

Em minha pesquisa de mestrado sobre os Cadernos Negros, pude verificar essa representação da realidade de muitas mulheres brasileiras, sejam elas negras ou não. Por um lado, a literatura tradicional continua fazendo o uso do papel de mulheres como musas inspiradoras ou mulheres modernas com a sensação de liberdade de locomoção – digo isso porque a mesma pesquisa das personagens coordenada por Regina Dalcastagnè mostra que as personagens femininas circulam mais nos ambientes domésticos. Por outro lado, em seus contos, as escritoras afro-brasileiras escrevem sobre violência simbólica, moral e física e abordam temas como feminicídio, violência doméstica e institucional e a violência da imposição de papéis de gênero engessados pelas práticas sociais contemporâneas. Em Ana Davenga (Cadernos Negros, 1995), de Conceição Evaristo, Davenga, chefe do tráfico no morro, manda assassinar Maria Agonia porque ela não aceitou virar sua esposa, já Ana é executada por um policial, mesmo sem representar ameaça nenhuma à investida policial ao barraco no qual mora com Davenga. Já em Alice está morta (CN, 1989), de Miriam Alves, Alice sofre violência doméstica de seu companheiro até ser jogada por ele em um lixão.

 

Em sua tese de doutorado sobre a maternidade negra, Vânia Vasconcelos apresenta outras duas importantes contribuições para entendermos a perspectiva diferenciada das escritoras afro-brasileiras: a sororidade e a matrifocalidade.

 

De modo geral, nas obras canônicas encontramos a animalização e a hipersexualização de personagens negras: Tia Nastácia, por exemplo, é reiteradamente animalizada pela boneca de pano Emília (Monteiro Lobato); Bertoleza morre focinhando em meio aos restos de peixes (Aluísio Azevedo), Gabriela (Jorge Amado) e Rita Baiana (Aluísio Azevedo) mexem com o imaginário dos homens por serem descritas como cheirosas, fogosas e provocativas – além de estéreis como bem coloca o pesquisador Eduardo de Assis Duarte em seu artigo Mulheres marcadas: literatura gênero, etnicidade (2009). Já nos contos das escritoras dos Cadernos Negros, existe uma preocupação com a representação positiva da afetividade das personagens femininas negras, e Vasconcelos trabalha com essas duas formas de manifestação que em muito contrastam com a animalização e a hipersexualização.

 

O termo sororidade vem do latim sorór (irmãs), mas não fazia parte do português brasileiro e é aqui compreendida como a experiência de afetividades positivas e saudáveis entre as mulheres. Assim, a sororidade contradiz o que foi inculcado no senso comum nacional de que mulheres são rivais, sentem inveja umas das outras e não conseguem se apoiar mutuamente. Vasconcelos nos diz que:

 

“Essa solidariedade é peculiar às afrodescendentes, que formam uma espécie de aliança objetivando a transmissão da memória de tradição da cultura afro-brasileira e o exercício da solidariedade em situações difíceis, em particular aquelas que envolvem os conflitos de gênero e raça; na maioria das vezes, esses conflitos também estão relacionados a questões de classe. A cooperação entre mulheres negras verifica-se também na função maternal; isto se manifesta não apenas no exercício do cuidar dos seus, mas também no enfrentamento diário das situações difíceis, cercadas pelos conflitos acima mencionados. Essa cooperação foi fundamental para que as novas gerações pudessem alcançar posições sociais melhores, pois dessa forma, as mulheres conseguiram manter seus filhos longe do trabalho infantil, permitindo-lhes o acesso à escolaridade, graças à possibilidade do trabalho de suas mães; isto só se tornou possível com a colaboração mútua entre essas mulheres, que passaram a dividir trabalhos domésticos”.

 

 

 

 

Nos Cadernos Negros, a sororidade também aparece de forma recorrente. A personagem Baby, do conto À procura de uma borboleta preta (CN, 1993), de Esmeralda Ribeiro, e Lau, do conto O retorno de Tatiana (CN, 1999), de Miriam Alves, dão suporte emocional a mulheres que cometeram aborto. No primeiro caso, as mulheres não se conhecem pessoalmente, somente por telefone, e no segundo, Lau é irmã mais nova de Tatiana, que também é acolhida por uma mãe de santo que não a conhecia, mas a auxilia emocional e espiritualmente. Em Anda Davenga (CN, 1995), as mulheres dos integrantes do bando de Davenga viviam as incertezas de serem companheiras de bandidos e com a ausência de “seus homens” emprestavam dinheiro umas às outras, cuidavam de suas/seus filhas/os e dos/das filhas/os das outras, repassavam informações que recebiam dos maridos e chegavam a dividir até alimentos entre as famílias.

 

Sobre a matrifocalidade de africanas e afro-brasileiras, Teresinha Bernardo nos diz que: “Tanto para a mulher africana, quanto para a afro-brasileira, a matrifocalidade, aparentemente, não foi só uma imposição da escravidão e do pós-abolição – com a consequente marginalização do homem negro. A mulher negra parece viver essa opção de forma diferente das mulheres brancas. Em minhas pesquisas anteriores, pude verificar que, para essas mulheres, a matrifocalidade não é encarada como sofrida, pesada; pelo contrário, acentua sua autonomia”.

 

 

 

 

A matrifocalidade é uma herança africana não encontrada em nenhuma obra canônica, mas utilizada como pilar principal de muitos contos de autoria feminina nos Cadernos Negros. Nos contos Rosa da Farinha (CN, 1999), de Lia Vieira e Histórias da vó Rosária (CN, 1981), de Geni Guimarães, as avós mantêm a família unida mesmo com a ação do tempo. São guardadoras de memória, contadoras de histórias, têm sempre conselhos e, na maioria das vezes, são exemplos de resistência cultural e social do grupo de afro-brasileiras/os. Um elo de corrente(CN, 2003), de Lourdes Dita, também é um exemplo sobre a maternidade, mas nesse caso a matrilinearidade é o foco. Em ambos os casos é importante percebermos a maternidade e a união familiar como experiência de empoderamento das mulheres negras. Diferente da esterilidade e do papel de mãe preta proposto pela literatura tradicional brasileira, na literatura afro-brasileira, essas personagens não têm suas/seus filhas/os apartados de si e conseguem montar uma rede de afetos, responsáveis por acalentar e encorajar as novas gerações – as quais, muitas vezes, ainda sofrem com preconceitos sociais que minam sua autoconfiança e lhes oprimem.

 

Com esses exemplos de narrativas que falam sobre violência contra a mulher, maternidade e sororidade, conseguimos notar que as perspectivas das escritoras afro-brasileiras tensionam a harmonia apresentada pelo cânone literário, diferindo e mostrando novas possibilidades de ruídos ou sons ignorados pela consonância literária.

 

Na música, a teoria diz que a dissonância não pode ser considerada como algo ruim. Trata-se apenas de um modo diferente de soar um instrumento sonoro, baseado na tensão dos acordes que causam instabilidade e, para apreciá-la, é preciso adotar outro modo de recepção e ter desapego em relação ao tradicionalmente construído como bom para ampliar as possibilidades de produção e circulação musical. Certamente, existem pessoas que preferem melodias consonantes, mas não aceitá-la como parte do todo que é a música é ignorar estilos musicais como o blues, o jazz e o rock. A qualidade estética proposta pela dissonância musical do blues instrumentalizado e vocalizado por Robert Johnson, ou do blues em trânsito com o jazz de T-Bone Walker mostram a beleza da dissonância e do som considerado “sujo”, ou ruído, por críticos musicais de suas épocas.

 

Assim como a literatura afro-brasileira, o blues não foi valorizado durante muito tempo, mas a despeito da crítica feita por determinados agentes musicais – não por acaso o blues também é um produto cultural da diáspora africana –, os/as autores/as desse novo estilo musical continuaram a trabalhar e compor melodias. Hoje, essas melodias exercem grande influência na música ocidental, têm diversas/os admiradores/as e, finalmente, um lugar legitimado.

 

O lugar de falar certamente foi um dos propiciadores dessa nova forma de fazer música. Escravizados/as e ex-escravizados/as norte-americanos/as aprendiam a tocar instrumentos para divertirem seus/suas senhores/senhoras e, apropriando-se desse novo código de expressão, passaram a produzir o que essa autonomia propiciou para se inscreverem no mundo. Seus/as descendentes, por sua vez, mantiveram essas aprendizagens e seguiram tocando instrumentos, experimentando novos arranjos e produzindo outras músicas. Em um processo similar, acreditamos que as mulheres afro-brasileiras aprenderam o código da escrita, apropriaram-se dele e hoje o utilizam como instrumento de empoderamento para se inscreverem em uma sociedade na qual a escrita é tão valorizada.

 

Ainda há resistência no campo literário no que se refere à aceitação da perspectiva feminina afro-brasileira, mas, com o passar do tempo, ela vem se consolidando cada vez mais e evidenciando a riqueza que a dissonância pode gerar na literatura.

 

Sabemos que as condições de produção influenciam muito na escrita literária e que a maioria das mulheres negras ainda não dispõe das melhores condições para produzir literatura, por isso, a produção de textos sucintos é ainda uma das mais adotadas por essas escritoras. Mesmo assim, acreditamos que, da mesma forma que o blues se tornou o precursor de estilos musicais como o rock e jazz – além de influenciar tantos outros como a própria MPB –, a autoria de contos das escritoras afro-brasileiras nos Cadernos Negros faz parte de um processo literário que se consolida cada vez mais, já influencia a autoria feminina de romances afro-brasileiros e, com o passar dos anos, deverá ser respeitada como um exemplo estético de dissonância.

 

Para finalizar é importante ressaltar que o otimismo expressado neste artigo não pressupõe que não existam escritos literários de afro-brasileiras com qualidade estética questionável. Na literatura afro-brasileira, assim como em toda literatura, encontraremos boas e más obras, o que não se pode fazer é supor de antemão que a dissonância proposta por essas escritoras não configura um importante ingrediente para democratizar, ampliar e enriquecer os estudos literários brasileiros.

 

 

 

 

Adelia Mathias

ADELIA MATHIAS é doutoranda em literatura, trabalha com literatura afro-brasileira e intersecção entre raça e gênero.

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.