março de 2020

ELAS MANDAM A LETRA

Flavia Rios

 

 

 

 

 

 

 

fotos diogo nunes

 

 

 

 

 

 

 

Palavra. Rima. Ritmo. Não só. Performance. Para segurar o mic ou chegar ao centro da roda tem que ter firmeza. É preciso mais: projetar a voz, o corpo, a letra em movimento. É preciso emocionar, criticar e…. surpreender. O coração bate forte, a poesia quase sempre já vem preparada, mas também pode ser improvisada. Tudo na cabeça, mas, não raro, é preciso segurar o papel ou mesmo o celular nas mãos trêmulas. Às vezes a letra corre direto, em outras, um olhar rápido nas escrevivências deixadas na página garante a sequência; outras vezes, porém, é preciso ter humildade: é hora do recomeço. Respirar fundo, pedir desculpas para o público e começar do zero. Sim, mesmo para as mais bem preparadas, mesmos para as poesias já surradas de tão ditas nas quebradas, nas favelas, nos saraus, nos centros culturais, nas festas, nos transportes públicos, nas universidades, nas praças e nas demais rodas da vida, mesmo nelas e delas escapam um verso e até uma estrofe inteira. O recomeço faz parte da performance. Cativa a plateia atenta, gera um silêncio ensurdecedor, marca a cumplicidade entre a poeta e o seu público. A poesia às vezes dura dois ou até três minutos. Pode passar num piscar de olhos ou durar uma eternidade. Em batalhas ou em exibições não competitivas, cada slammer pode fazer várias apresentações seguidas e alternadas por outras minas. É um ritual. As palavras ferem como navalhas, muitas vezes cicatrizam a alma.

 

“Para cada abuso novo, um branco te orienta: negra é forte, negra aguenta”,
MC Dall Farras

Há muito o que dizer sobre os Slams. Não é possível fugir ao seu parentesco com a cultura Hip Hop dos anos 1980 nos EUA. Mas é verdade que ele só chega ao Brasil no início do século XXI – especificamente na zona Oeste de São Paulo, pelas mãos da artista Roberta Estrela D’Alva. Na cidade de arranha-céus, a poetry slam logo se espalha nas periferias urbanas e floresce na encruzilhada do Rap com a literatura das margens. O fenômeno de poesia falada e performada com voz e corpo parte de São Paulo e logo ganha espaço em outras grandes cidades brasileiras, como foi o próprio percurso do Rap nacional. No entanto, diferente do rap e dos demais elementos da cultura Hip Hop, que começaram predominantemente masculinos e só recentemente passaram a ter uma cena feminina mais expressiva, no Slam as minas logo tomaram de assalto as batalhas da poesia falada. Talvez seja, hoje, uma das arenas da cultura pública e popular a apresentar maior presença de mulheres, particularmente aquelas oriundas das periferias. Assim como na literatura periférica ou literatura negra, são cada vez mais visíveis a presença e a autoria de mulheres nos slams, em particular percebe-se forte presença de mulheres negras. Tal presença não é apenas descritiva, sua marca também se faz visível no conteúdo da poesia.

 

 

 

Slam das Minas RJ. Final/ 2017. Performance de Carol Dall Farras. vídeo lian tai

 

 

O estudo de Jonas Medeiros1 sobre o movimento de mulheres na zona Leste de São Paulo mostrou que os valores e as práticas feministas, assim como a consciência das desigualdades raciais e do racismo nos bairros mais afastados do centro da cidade, tinham forte influência dos movimentos culturais, em particular dos saraus e slams, vistos como verdadeiros portadores e agentes da difusão dos discursos antirracistas e contra o machismo na juventude das periferias de São Paulo.  Já a pesquisa “Feminismo negro em três tempos”2, conduzida pela autora deste artigo e pela professora Regimeire Maciel, aponta que as ideias feministas e do movimento negro estavam cada vez mais articuladas nas identidades da nova geração de mulheres, especialmente entre aquela juventude que se formou no contexto das jornadas de junho de 2013 e no florescimento da primavera feminista. Nessa nova identidade de mulheres negras, o tema da sexualidade ganhava mais centralidade associado ao discurso da pertença territorial, no caso, originar-se das periferias ou estar à margem dos espaços centrais ou ainda do poder encarnam o adjetivo periférico ao ativismo político e cultural. Neste estudo, os slams aparecem como um dos vetores da popularização das ideias do feminismo negro, mesmo quando as mulheres não se identificam com o termo feminista para a sua autonomeação.

 

Tudo indica que, assim como ocorreu no rap, as batalhas de slams passaram a incorporar as mulheres, como também os discursos sobre as desigualdades e diferenças de gênero e sexualidade.  A pesquisa de Matheus Cunha 3 mostra a acrescente presença de Mcs mulheres e LGBTQ+ na recente guinada da cultura Hip Hop.  Em diálogo com o autor, meu argumento aqui é que o slam parece estar na vanguarda dessa transformação de gênero, já que se trata de uma produção mais horizontalizada, formada muitas das vezes por coletivos autônomos, e que ainda não entrou na lógica do grande mercado, como foi o caso do rap nacional.

 

 

 

Slam das Minas RJ

 

 

Em meio às metáforas políticas e de afirmação identitária, nos slams, as minas não passam pano para ninguém. Criticam a política institucional, as epistemologias eurocêntricas nas universidades, os partidos, as autoridades doutas, pastores que pregam intolerância religiosa, empresários, playboys, patricinhas brancas, enfim, o conflito é da natureza da poesia falada. Crítica à moral burguesa e heteronormativa. Flechas no patriarcado. Bombardeio na branquitude. As minas recriam em poesia a dureza do cotidiano e revelam as forças por traz da opressão e da exploração. Nas letras de autoria feminina, emergem cenas de ônibus lotado, da fila dos desempregados, da marmita fria, da falta de grana para fechar o mês, do aumento do pão, do choro da criança, do luto das mães, da bala perdida com destino certo, do estupro e da violência doméstica. Mas aparecem também imagens do gozo feminino, da menstruação, da religiosidade, da sagacidade e inteligência das mulheres pobres, da beleza negra, do afeto, do amor, da correria lado a lado entre elas.

 

“Assim como na literatura periférica ou literatura negra, são cada vez mais visíveis a presença e a autoria de mulheres nos slams, em particular percebe-se forte presença de mulheres negras. Tal presença não é apenas descritiva, sua marca também se faz visível no conteúdo da poesia”.

Diferentemente de São Paulo, a presença do Slam no Rio de Janeiro é mais recente. Segundo a pesquisadora Luana Fonseca (UERJ)4, os ataques de poesia falada vêm ganhando força na cena carioca há apenas três anos.  Competições públicas e intervenções nos espaços públicos centrais e também em transportes têm sido produzidos por diversos coletivos que apareceram na cidade do Rio de Janeiro. Mas o slam não ficou preso aos limites da capital fluminense. Rapidamente atravessou a baia de Guanabara, pelo mar ou pela ponte, e já se encontra em várias localidades periféricas da região metropolitana.  No primeiro semestre de 2019, por exemplo, o Slam Praça Preta, de Niterói, completou um ano. Organizado por um coletivo de jovens vindos de vários lugares periféricos como São Gonçalo, Rio e Niterói. Em um ato irreverente, eles insistiram em alterar a paisagem urbana. Num espaço de arquitetura moderna, pintado somente com tinta branca, estudantes e trabalhadores deparam-se pelo menos uma sexta-feira do mês com as batalhas em verso. De tempos em tempos, especialmente nos intervalos, ouve-se o chamado: poesia na praça…. e o público responde em coro e em alta voz: Preta!

 

No campeonato deste ano, o prêmio era o famoso livro Cumbe, de Marcelo D´Salete. Nas várias rodadas de poesia falada cinco jovens se apresentaram e foram avaliados naquela noite. Só havia uma mulher competindo, embora o público fosse majoritariamente feminino. Entre poesias mais políticas, outras mais filosóficas, os slammers lutavam simbolicamente e sabiam também elogiar a rima complexa do adversário. A plateia atenta prendia a respiração quando, por um segundo, a letra não vinha numa ou noutra ocasião. Mas também vibrava quando o fechamento trazia um lacre daqueles que só os/as maiorais eram capazes de fazer. Embora houvesse apenas uma mina, foi ela quem conseguiu ganhar a parada. Chamava-se Mota -Tai. Experiente, a slammer tinha repertório amplo: ancestralidade, a mulher negra, genocídio negro, violência policial, racismo e resistência cultural. Na letra dela: “o meu corpo está fechado, os meus olhos arregalados e minha língua é um armamento/vou metralhar com palavras, uma bala de prata, seus fracos argumentos”.

 


Slam das Minas RJ

 

 

Mas nem só de competições vivem os Slams. Os ataques poéticos podem servir para somar batalhas coletivas políticas e culturais com outras linguagens. Um exemplo foi o caso de um domingo frio na favela do Vidigal, em julho de 2019. Um grupo de mulheres organizou um evento para a comunidade na associação cultural. Organizado pelo Favela no Feminino, uma rede de mulheres da comunidade que se articularam no contexto das fortes chuvas que abalaram o morro no início do ano.  Além da solidariedade aos moradores e às moradoras, elas conseguiram fazer o evento para discutir temas das suas vidas diárias, como aborto paterno e violência do Estado. A atividade contava com crianças, idosas, adolescentes, mães e avós. Foi lá que se apresentou um dos maiores coletivos do Rio de Janeiro: o Slam das Minas-RJ.

 

O Slam das Minas RJ se autonomeia batalha “lúdico-poética”. Segundo as integrantes do Slam, buscam “um espaço seguro e livre de opressões para o desenvolvimento de mulheres (héteras, lésbicas, bis ou trans), pessoas queer, agender, não binaries e homens trans”. São poesias calibradas, vibrantes e afiadas como uma navalha. Uma parece ter chamado mais a atenção da plateia no Vidigal. Era a poesia da Gênesis. Na letra da slammer: “tô cansada de ver macho bebendo à tarde na calçada e espancando na madrugada”. Era mensagem de sororidade, de dororidade. De mulher para mulher. Olhos da plateia brilhavam vidrados na poesia, e a poetiza mandava o papo sem meias palavras: a mulher não pode apanhar nem viver em relacionamento abusivo. Aplausos efusivos. Uma mensagem encontrou acolhida: uma semente da primavera havia sido plantada pela arte das minas.

 

 

Slam das Minas RJ. Final/ 2019. Performance de Moto-Tai. vídeo lian tai

 

 

E, assim, da cultura à política, marcados pela performance face a face, pelo sangue nos olhos, pela coluna ereta, pela voz altiva, os coletivos de Slams se apresentam com uma das expressões mais pulsantes da arte pública da cena contemporânea. Além de popularizar a poesia, rompem com a naturalização da violência diária e a indiferença do cotidiano. As minas, de fato, mandam um papo reto: a rebeldia dos versos é a expressão dos tempos em que a arte é a própria re(existência) da vida.

 

 

 

Niterói, primavera de 2019.

 

 

 

 

 

 

 

 

/// notas ///

 

1 Movimentos de mulheres periféricas na Zona Leste de São Paulo:
ciclos políticos, redes discursivas e contrapúblicos
Jonas Medeiros
Tese de Doutorado
UNICAMP, Campinas
2017

 

2 Feminismo negro em três tempos Labrys, études féministes/ estudos feministas, v. 1
Flávia Rios e Regimeire Maciel
2018

 

3 Ascensão social na trajetória e discurso do HIP HOP
Matheus Cunha
Monografia
UFF, Niterói
2019

 

4 Entre ataques poético e desatamentos de nós da mente
Luana Fonseca
Qualificação de mestrado
UERJ, Rio de Janeiro
2019

 

 

 

 

 

Flavia Rios

FLÁVIA RIOS é socióloga e professora da Universidade Federal Fluminense. Escreveu em coautoria os livros "Lélia Gonzalez" (Selo Negro, 2010) e "Negros nas Cidades Brasileiras" (Intermeios, 2018).

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.