outubro de 2014

BITITA: ALÉM DOS QUARTOS DE DESPEJO E DAS CASAS DE ALVENARIA

Christiane Gomes

 

 

 

ilustração Roberto Camelo (Krust)

 

 

 

 

 

O negócio dela era o papel. Com ele obteve, por uma fase de sua vida, seu sustento e de seus filhos. Com ele também passava madrugadas escrevendo seus pensamentos, histórias, poemas, questionamentos, alegrias e tristezas. Dona de uma personalidade marcante, seu traço fundamental era a autonomia e a coragem em não se submeter ao lugar que a sociedade para ela havia reservado.

 

Falamos de Carolina Maria de Jesus. É ela quem celebramos. Em 2014, ano em que se completa o centenário de seu nascimento, ocorrido na pequena cidade de Sacramento, em Minas Gerais, se festeja também a obra da inquieta e questionadora Carolina, que desde os tempos de Bitita (seu apelido de infância) exteriorizava perturbações complexas de sua condição de mulher, negra e pobre.

 

Mas, se você espera ler nas linhas que se seguem algo da superfície da história da mulher favelada, que apesar de viver na miséria escreveu um livro e fez sucesso, por favor, pare por aqui. Melhor nem continuar. Trataremos, sim, de sua história, porém, sob outra perspectiva: a de uma grande escritora brasileira que teve sua existência marcada por condições adversas e difíceis, realidade que não impediu o florescimento de seu talento para a literatura.

 

Desde pequena, Carolina incomodava a todos por sua curiosidade e perspicácia. Quando aprendeu a ler, entre os sete e nove anos (no início dos anos de 1920), lia tudo o que lhe aparecia na frente. O nível disso era tanto que, de família espírita, chegaram a pensar que ela estava com algum problema de ordem sobrenatural. Não gostava de frequentar a escola, onde só esteve por dois anos, mas teve em seu avô, a quem chamava de Sócrates Africano, uma importante referência de sabedoria que lhe acompanharia por toda a vida.

 

Vida esta marcada por grandes dificuldades e privações. Depois de ser presa em sua cidade natal, acusada de roubar o dinheiro de um padre, sofreu violência física e psicológica na cadeia, chegando inclusive a pensar que iria morrer. Suspeita esta que não se confirmou. Em vida, a própria escritora contava que, na cela, recebera a visita do espírito de um médico que cuidou de suas feridas e lhe disse que ainda viveria por muitos anos. Por volta do final da década de 1930, quando acharam o verdadeiro culpado pelo roubo e a libertaram, conta a história que, ao sair da prisão, a jovem Carolina partiu com a roupa do corpo.

 

Após passar por algumas cidades do interior paulista, em 1937,com suas pouco mais de 20 primaveras, finalmente chega a São Paulo, onde acreditava que teria uma vida melhor. Depois de trabalhar como empregada doméstica por alguns anos, finca sua morada na primeira favela que se tem notícia da cidade, a Favela do Canindé, na zona leste da capital, lugar onde teve seus três filhos: João José, José Carlos e Vera Eunice. Lá, ganhava seu sustento vendendo o papel que recolhia nas ruas da “cidade”, como ela chamava o centro da capital. Em parte destes papéis recolhidos, Carolina escrevia seu diário. Páginas e mais páginas que, juntas, diagramadas e intituladas, transformar-se-iam no livro Quarto de Despejo: O Diário de Uma Favelada, best seller literatura nacional, traduzido para mais de uma dezena de línguas e com milhares de exemplares vendidos dentro e fora do país, tornando sua autora conhecida internacionalmente. A viabilidade da publicação do diário, cuja primeira edição foi lançada em 1960, veio através do jornalista Audálio Dantas que, em 1958, a conheceu ao fazer uma reportagem sobre a vida na comunidade do Canindé, que ficava às margens do Rio Tietê, onde hoje fica o estádio da Associação Portuguesa de Desportos.

 

Carolina, conforme dito anteriormente, lia muito. Compulsivamente. Por isso também escrevia a todo o momento. “A imagem mais forte que tenho da minha mãe é ela com o papel e caneta tinteiro nas mãos. Ela escrevia onde era possível. Nunca jogou papel fora porque escrevia em todos eles. Vi isso a minha vida inteira. Vinham as ideias, ela sentava em qualquer lugar e começava a escrever”, relembra sua caçula, Vera Eunice Lima de Jesus.

 

Professora de literatura da rede municipal de ensino de São Paulo, Vera Eunice me recebeu em sua casa com muita generosidade, em uma manhã de sábado, regada a muitas histórias e suco de manga. Nelas, relembrou a personalidade forte e intensa da mãe que, em uma entrevista concedida a época, se autodenominou uma “bomba atômica”. A escrita se fazia presente até mesmo nos momentos de raiva. Quando brigava com os filhos, escrevia cartazes enormes e os espalhava pela casa contando as razões do conflito, quando não escrevia nas próprias paredes, cujos escritos ficavam lá por semanas.

 

Quando a primeira edição de Quarto de Despejo foi publicada o sucesso foi imediato. Carolina tornara-se uma celebridade (para usar um termo atual de visibilidade no mercado da indústria cultural). Todos queriam saber a história daquela mulher. Havia uma curiosidade mórbida em conhecer a vida na favela em condições miseráveis. Tanto que o subtítulo de sua estreia literária reforçava essa ideia: Diário de uma Favelada. Mas passado o “frisson” da burguesia brasileira em saber sua história, Carolina seria “devolvida” ao seu lugar de invisibilidade.

 

Para a pesquisadora Fernanda de Miranda, que estudou a obra de Carolina em sua dissertação de mestrado, defendida em 2003 na Universidade de São Paulo, Quarto de Despejo, quebrou muitos paradigmas quando foi lançado, pois seu conteúdo, escrito em primeira pessoa por alguém que vivia a realidade da favela rompia com o imaginário romântico do morro “pertinho do céu”. Porém, Miranda é crítica à edição do livro que, segundo ela, suprimiu passagens filosóficas e questionadoras. “A voz de Carolina, para ser legítima mesmo, não poderia ser tão intelectualizada quanto vemos no livro. Era preciso ter mais violência e menos Sócrates. Mais fome e menos solidariedade; mais detalhes das brigas entre casais e menos reflexão sobre a vivência naquele espaço. E o editor se concentrou nestes pontos”, afirma.

 

Também pesquisador da obra da autora, o escritor Marciano Ventura, do Selo Ciclo Contínuo Editorial, aponta que, mesmo com as repetidas edições promovidas há traços de genialidade em Quarto de Despejo. “Imagine o que podemos encontrar nos manuscritos originais da publicação?”, provoca.

 

Polêmicas a parte no que se refere à figura de Audálio Dantas, é preciso reconhecer seu papel, não de descobridor, mas de fomentador da publicação do primeiro livro de Carolina. Bem ou mal, foi através dele que os escritos da mineira ganharam o mundo. “Não podemos deixar de reconhecer esse feito, embora tenhamos diversas críticas. No meu caso, lamento que ele não tenha procurado olhar com mais atenção para os textos literários de Carolina”, destaca Raffaella Fernandez, que pesquisa a obra carolineana em sua tese de doutorado na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

 

 

 

CAROLINEANDO NAS LETRAS

 

O sucesso estrondoso de Quarto de Despejo despertou em Carolina o desejo de se firmar como escritora. Era a oportunidade de se aperfeiçoar e melhorar sua escrita mostrando ao mundo suas outras produções literárias. Para ela, a ficção tinha um valor diferente dos seus diários. “Era pelo romance e pela poesia que Carolina gostaria de ser conhecida enquanto escritora, em detrimento da fama e da popularidade angariadas com a publicação dos seus textos autobiográficos”, afirma Fernanda.

 

Em 1961, um ano após a publicação de seu mas famoso livro, mais um Diário foi editado: Casa de Alvenaria, que relatava agora o cotidiano de Carolina depois de sair da favela do Canindé. Do barraco para a casa de tijolos. Neste momento, ela vivia em um sítio em Parelheiros (extremo sul da cidade de São Paulo), comprado com os recursos obtidos com as vendas de Quarto de Despejo. A repetição do sucesso estrondoso não veio. Afinal, a curiosidade burguesa em saber mais sobre a favela já havia sido sanada. E o público a via como sendo uma exceção, pois representava uma mulher que já tinha tido a sua oportunidade da vida e que, agora, deveria voltar para sua vida invisível. Com isso o interesse das editoras em publicar outros materiais da escritora foi mínimo. Para o grande público da época, Carolina já tinha usado seus 15 minutos de fama.

 

Porém, falamos de uma escritora cuja altivez, autonomia e independência eram marcas registradas. Assim, apesar da frustração, Carolina não se contentou com o que a sociedade lhe havia dado. Queria mais. Em 1963, com recursos próprios, custeia a publicação do romance Pedaços da Fome e do livro de pensamentos Provérbios.

 

Pedaços da Fome conta a história de Maria Clara, filha de um poderoso coronel do interior paulista que se apaixona por Paulo, personagem dissimulado que a convence a fugir com ele para a cidade grande. Iludida pelo rapaz, que se diz rico e com posses, abandona sua família em busca do amor. Mas a realidade é bem outra e o que Maria Clara encontra é a pobreza da vida em um cortiço do centro paulistano. Neste romance se encontra a cidade e a escassez, pontos centrais da obra carolineana e as tensões sociais que as acompanham, sempre com reflexões filosóficas sobre a existência. Já Provérbios reúne pensamentos e aforismos baseados na convivência com seu avô, a quem, como já citado aqui, chamava de Sócrates Africano.

 

Não se sabe ao certo o quanto estas duas publicações venderam, mas os números foram ínfimos. Não se encaixavam na “sagrada tríade” do estereótipo mulher, negra e pobre, onde as editoras gostariam que elas estivessem. “Minha mãe ficava triste com isso tudo. Na época, ninguém a via como uma escritora. Foi uma grande frustração não conseguir sair da coisa do diário”, relembra Vera Eunice.

 

Mesmo com tantas negativas e frustrações, Carolina seguia escrevendo compulsivamente e assim foi até o final de sua vida, em 13 de fevereiro de 1977. Em Diário de Bitita, obra póstuma publicada em 1982, e que de acordo com Vera Eunice originalmente se chamava Um Brasil para os Brasileiros, observamos uma Carolina já madura, onde a genialidade da autora, como de habitual, se faz presente ao produzir um escrito que relembra passagens de sua infância e juventude, com os sonhos, expectativas e questionamentos da Carolina dos 6 aos 20 anos de idade. Novamente as crises existenciais profundas estão presentes: “Se Deus não gosta de nós, por que nos fez nascer?”; “O mundo é um teatro de agruras”, são algumas das passagens do livro.

 

A obra carolineana é caracterizada pela denúncia, com temas fortes e árduos, mas que fazem rir e chorar com seu estilo poético e questionador. A poetisa e assistente social Débora Garcia, que recentemente lançou o livro Coroações, classifica a letra de Carolina como “um tapa de luva de pelica”, pela sua capacidade de equilibrar a dureza da crítica com a leveza da poética. “Não existe conto de fadas na obra dela, mas não é uma leitura dura e amarga. Dói, mas com poesia e sem dramalhão porque temos lirismo naquelas palavras. Apesar do tema, a literatura de Carolina é suave e é este talento que a gente precisa celebrar”. Raffaella Fernandez completa: “Carolina é múltipla, mas a que me pega e não solta nunca mais, sem dúvida nenhuma é a quixotesca, prosadora e poetisa. Ela que me fascina, embora a humorista, crítica e a sarcástica me proporcionem momentos de euforia, revolta e empatia”.

 

A multiplicidade da artista Carolina de Jesus é algo que, realmente, surpreendeu esta jornalista que vos escreve. A vontade de mostrar sua arte ao mundo, de gritar seu olhar e percepções se materializa, por exemplo, na gravação do disco Quarto de Despejo. A gravação, extremamente rara, faz parte do acervo do jornalista, crítico e pesquisador musical José Ramos Tinhorão, e esta sob a guarda do Instituto Moreira Sales (IMS). Em suas 12 faixas, estão a crônica social, a realidade, o humor e a ironia embaladas em sambas, choros e marchas de carnaval como em Vedete da Favela e O rico e o pobre, compostas e cantadas pela própria Carolina.

 

A capacidade de se reinventar da escritora também pode ser observada nos tempos que antecederam a publicação de Quarto de Despejo, quando Carolina declamava suas poesias em um circo da capital paulista. Vera Eunice conta que nesta época – quando tinha por volta dos cinco anos de idade, sempre acompanhava a mãe, que não a deixava com ninguém. No circo, Carolina usava um figurino que ela mesma produzia. “Era um vestido comprido, com um tecido todo furadinho, meio duro, onde ela costurava pequenas lâmpadas, daquelas de Natal. Se chamava Vestido de Luzes. Para mim é uma lembrança muito forte ela toda iluminada declamando poesias no circo”, conta Vera emocionada.

 

 

PARA OS PRÓXIMOS 100 ANOS

 

O centenário de nascimento de Carolina (1914 – 2014) tem sido marcado por diversas celebrações, especialmente protagonizadas nos meios acadêmicos e pelos movimentos sociais e culturais. Atividades que se propõe a debater, discutir e apresentar Carolina a um público que não a conhece, ao mesmo tempo em que aborda outras facetas da escritora para além de Quarto de Despejo. A escritora Cristiane Sobral, autora de livros como Só por Hoje vou Deixar meu Cabelo em Paz (2014) e Não Vou Mais Lavar os Pratos (2010) destaca que este é um trabalho permanente e que é preciso atenção para que, passada as comemorações do centenário, sua obra não volte para a invisibilidade. “Precisamos estar atentas para Carolina não sumir por mais 100 anos. Minha tristeza é que estou na Academia e quando falo da Carolina, parece que não estamos falando da mesma pessoa. A que eles conhecem é o estereótipo de uma mulher favelada e semi-analfabeta. Uma pessoa ignorante que foi iluminada por um momento e escreveu seu diário”, critica. Para ela, mais do que participar de seminários e discussões é preciso ter contato com a literatura carolineana. “Se você não sentar pra ler, não se compromete, fica algo frio, teórico. Eu como artista acredito no impacto da obra de arte no ser humano. Por isso precisamos cada vez mais ler Carolina. É este contato, que vai mudar a percepção das novas gerações e mesmo dos cânones da literatura. A gente acredita na qualidade da obra literária de Carolina e é por isso que temos que lutar para defender sua obra”.

 

Se depender dos círculos culturais da literatura periférica de São Paulo, é isso que vai acontecer. Para Debora Garcia esta é uma responsabilidade destes movimentos. Mesmo porque, Carolina Maria de Jesus pode ser considerada precursora da literatura produzida a pleno vapor atualmente nas bordas das grandes cidades e que tem na capital paulista sua energia mais pulsante. “Para mim, foi Carolina que abriu este espaço. Eu, por exemplo, já escrevia há muitos anos, mas não me via como escritora. Quando me deparei com ela, uma mulher autodidata que produzia literatura naquele contexto, vi que era possível. E ela foi a primeira que falou com propriedade da periferia se inserindo nesta narrativa.  A Carolina inovou neste sentido e abriu os caminhos pra gente fazer a nossa crítica e contar as nossas histórias”, diz Débora.

 

Mesmo com comprovada excelência literária de Carolina, observada, por exemplo, nas falas de importantes estudiosas do gênero aqui apresentadas, e no sucesso editorial de Quarto de Despejo, encontrar as obras da escritora nas mais tradicionais livrarias do país ainda é uma tarefa árdua. Buscas e pesquisas em sebos acabam sendo a melhor, quando não a única opção. Mas, para alegria dos amantes da sua escrita e do seu legado, um novo livro, com dois contos inéditos de Carolina, acaba de ser lançado: Onde Estaes Felicidade? (organização de Dinha Maria Nilda e Raffaella Fernandez) publicado no último mês de novembro e viabilizado através de uma parceria envolvendo a Fundação Cultural Palmares e o Selo Ciclo Contínuo Editorial, o livro mantém agramaticalidade da língua portuguesa processada nos escritos originais da autora. “Sabia da importância de uma publicação mais genuína que devolvesse a integralidade da obra da autora ainda por vir. Sabíamos das dificuldades da publicação de uma obra literária desse porte via editoras de grande circulação e reconhecimento público, pois essas não reconhecem e/ou não apostam nas texturas da Carolina escritora”, conta Raffaella Fernandez.

 

Há ainda uma grande produção literária de Carolina Maria de Jesus sendo descoberta e estudada, especialmente no universo acadêmico, e a Revista O Menelick 2ºAto tem a honra de publicar dois destes textos inéditos. São eles o conto O Escravo e o poema Os Feijões. Desta maneira, acreditamos estar contribuindo para a popularização dos escritos de Carolina Maria de Jesus. Somente assim sua obra permanecerá viva e andante não apenas por mais 100, 200 anos, mas para sempre, como toda a obra de um grande representante da literatura brasileira.

 

MARIA CAROLINA DE JESUS / OBRAS PUBLICADAS (PRIMEIRAS EDIÇÕES)

 

Quarto de Despejo – Diário de uma favelada (1960)
Casa de Alvenaria – Diário de uma ex-favelada (1961)
Pedaços da Fome (1963)
Provérbios (1965)
Diário de Bitita (1982)*
Meu Estranho Diário (1996)*
Onde Estaes Felicidade? (2014)*

*Obras póstumas.

 

PARA OUVIR

Disco: Quarto de Despejo
Disponível em: radiobatuta.com.br

 

PARA VER

O Papel e o Mar
Disponível em: www.youtube.com

 

PARA CELEBRAR

Em 2015 o Bloco Afro Ilú Obá de Min, sediado na cidade de São Paulo, homenageará a escritora em seu carnaval. Os ensaios já começaram!
+ INFO facebook.com/ilu-oba-de-min.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Christiane Gomes

CHRISTIANE GOMES é jornalista, mestra em Comunicação e Cultura pela USP e coordenadora do corpo de dança do Bloco Afro Ilú Obá de Min.

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.