maio de 2020

A CRÍTICA CULTURAL NA IMPRENSA NEGRA EM BRASAS: SP E RJ

Nabor Jr.

 

 

 

 

 

fotos Arquivo jornal Quilombo/
Arquivo Pessoal

 

 

 

 

 

 

 

 

Fundado na cidade de São Paulo, no ano de 1889, o jornal A Pátria (1) é atualmente considerado o marco fundador da atuação dos “homens de cor” – nome por qual africanos, seus descendentes, negros livres e libertos eram chamados a época no Brasil – por meio de uma imprensa própria, em um movimento editorial de função jornalística que mais tarde ganharia o nome de Imprensa Negra Paulista. Nesses mais de 140 anos o mundo mudou bastante. Na verdade, o mundo é outro – apesar das semelhanças, muitas delas tristes semelhanças, que ainda nos conectam aos séculos passados. Como por exemplo, a própria urgência de uma imprensa negra atuante ainda nos dias de hoje.

 

Entre essas muitas transformações que ocorreram nos mais variados aspectos da vida humana neste período, estão as conquistas que proporcionaram a população negra se aproximar das ferramentas capazes de promover o desenvolvimento de suas reflexões críticas por meio da escrita. Visto, entre outros aspectos, por estar intimamente relacionada ao acesso dessa população a educação e ao conhecimento, indiscutíveis promotores da mobilidade social de um povo.

 

Em termos práticos, porém, de que maneira essas transformações que estreitaram o acesso da população negra a educação formal e, posteriormente, ao universo acadêmico, e que consequentemente também forjaram o nascimento de um refinado corpo de escritores, poetas, músicos, pintores, estilistas, fotógrafos, entre outros profissionais e intelectuais do campo das artes, foram acompanhadas pela imprensa negra em São Paulo? Quer dizer, que contribuição foi dada a reflexão crítica, do ponto de vista jornalístico, a produção artística desses atores, algumas delas responsáveis inclusive por moldar os conceitos que viriam a definir as artes brasileiras de autoria negra nos séculos XX e XXI?

 

 

 

PARALELOS E CONVERGÊNCIAS

Para responder a questão central deste artigo é necessário revisitarmos o Brasil do final do século XIX, especificamente para o ano de 1889, quando o já mencionado jornal A Pátria inaugura a secular história da imprensa negra paulista. Simpático ao republicanismo, movimento que injetou novas perspectivas de esperança entre negros libertos e livres de São Paulo, assim como já fizera a então recém assinada abolição, este periódico foi prosseguido pelo jornal negro O Progresso (1899), considerado o segundo periódico da história da imprensa negra paulista.

 

Distante pouco mais de 10 anos da assinatura da Lei Áurea e vivendo os primeiros dias da recém proclamada República, o jornal O Progresso (1899) – já desiludido com os resultados práticos da abolição e do próprio regime republicano – diferentemente da inclinação política do seu antecessor, afirmava ter o único objetivo de “prestar auxílio desinteressado à raça a que pertencemos”.

 

 

 

Da esquerda para a direita: Átila José Gonçalves, Manoel Antônio dos Santos, Luiz Gonzaga Braga, Henrique Antunes Cunha, o pequeno filho do sr. José Correia Leite, e Sebastião Gentil de Castro, na redação do jornal O Clarim d’Alvorada, nos anos 1920, em São Paulo.

 

 

 

Esses jornais de combate, denúncia e integração, que se ocuparam da crítica cultural em seu sentido mais amplo – que relaciona a crítica cultural tanto à cultura como à sociedade – pavimentaram o caminho para que uma série de periódicos surgissem em São Paulo nas décadas seguintes. Essas publicações, em sua maioria gestadas nos espaços da sociabilidade negra paulista do período, como as associações culturais e os grêmios recreativos, registraria de vez o seu espaço no jornalismo brasileiro nas décadas seguintes com a publicação de títulos como: O Menelick (1915), A Rua (1916), O Xauter (1916), O Alfinete (1918), O Bandeirante (1919), A Liberdade (1919), A Sentinela (1920), O Kosmos (1922) e Getulino (1923), Alvorada (1935), Senzala (1946), União (1948), Mundo Novo (1950), Quilombo (1950), Redenção (1950), A Voz da Negritude (1953), O Novo Horizonte (1954), Notícias de Ébano (1957), O Mutirão (1958), Hífen (1960), Niger (1960), Nosso Jornal (1961), Correio d´Ébano (1963), Árvore das Palavras (1974), O Quadro (1974), Biluga (1974), Jornegro (1977), O Saci (1978), Abertura (1978), Vissungo (1979), Derebo (1980), Chama Negra (1986), Revista Ébano (1980), Tribuna Afro Brasileira (1989), Pode Cre (1993), Agito Geral (1995), Raça Brasil (1996), Visual Cabelos Crespos (1997), Negro Cem por Cento (1998), Rap Brasil (1999), Planeta Hip Hop (2000), Eparrei (2001), Afirmativa Plural (2004), Elementos (2007), entre outros. Adentrando o século XXI e apropriando-se da relativa “democratização” das tecnologias que se popularizaram a partir do inicio dos anos 2000, surgem na internet (ou também ocupam este espaço) e, posteriormente, as redes sociais, iniciativas como Geledés, CEERT (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdade), Portal Áfricas, Blogueiras Negras, Blog do Negro Belchior, Alma Preta e, evidentemente, a própria revista O Menelick 2º Ato.

 

Além da autoria negra, com vistas a atender a comunidade negra com uma representatividade positiva dessa população, todas essas publicações tem em comum o fato de não se constituírem apenas e tão somente como veículos de informação, mas também enquanto espaços de produção de um pensamento reflexivo e crítico sobre a hegemônica presença negra na sociedade brasileira e sua produção artística.

 

 

 

Revista Ébano, fundada em 1980. Retratos ocupando toda a capa e pouco texto sobre a imagem.

 

 

 

Deste modo, ao traçarmos um paralelo entre a produção de conteúdo jornalístico por meio de jornais e revistas produzidos na primeira metade do século XX – a era de ouro da imprensa negra paulista – com as iniciativas atuais, observamos que, inserida no contexto da “cultura de massa”, a crítica cultural na imprensa negra (como resultado de um fenômeno que também acomete a imprensa brasileira de maneira geral) ainda apresenta tímido impacto social, demonstrando apenas um resquício fragmentado do debate que poderia protagonizar.

 

Vale ressaltar que a crítica, no princípio, fora concebida como um espaço voltado para o debate cultural, uma vez que a mesma age como forma de legitimação de sujeitos discursantes, de conceitos relativos à opinião pública e, por fim, de práticas culturais enraizadas no histórico socioeconômico de cada época.

 

 

 

A CRÍTICA CULTURAL NA IMPRENSA NEGRA DE SP

Em sua 31ª edição, publicada em 17 de abril de 1927, o jornal O Clarim d’Alvorada, que apresentava em seu subtítulo a frase Órgão literário, noticioso e humorístico, observamos um texto assinado por Horácio da Cunha, com o título Os pretos e a música. Conforme outras raras incursões no campo da produção musical pelos jornais da imprensa negra paulista do período, este texto não pretende aprofundar um debate sobre a presença negra na música, como sugere a chamada para o artigo. Contudo, tem o mérito de valorizar a erudição musical dos negros, com a nítida intenção de ressignificar estereótipos de inferioridade:

 

 

“Tendo lido há tempos uma chronica no Jornal do Commercio, que uma pessoa interpelou
um ilustre maestro de musica, desejando saber qual era a sua opinião sobre o Jazz-Band,
o maestro depois de fazer varias considerações sobre a musica clássica, terminou dizendo:
‘O Jazz-Band é musica de negro!’.
 Desculpe ilustre maestro da réplica deste despretensioso
negro
 Brasileiro. Chegando em Pariz, uma caravana de musicos Americanos, com um Jazz-
Band, cujos estrumentos excêntricos, compondo-se de:
 Bozina de automóvel, Campainha,
Lata de Kerozene, Chacoalho, etc.
 Pariz a cidade da luz das belezas, das musicas e dos luxos.
Pois bem;
 Pariz, applaudiu com enthusiasmo o Jazz-Band. D´alli esses estrumentos invadiram
todas America do Sul. Aqui, em nossa Pauliceia, essa musica
 teve a maior aceitação, nos salões,
e em casas das mais distintas famílias
 da capital e do interior: é Jazz-Band ao almoço, ao jantar,
ao chá e à ceia.
 Portanto, essa musica não é só para o negro como dissera esse ilustre maestro.
É somente para famílias de bom gosto que estão sentados em Cruzeiros. Nós, os pretos brasileiros,
sempre fomos apreciadores da musica clássica;
 e com orgulho da nossa raça negra, podemos
apresentar diversos músicos
 pretos que muito honraram e honram ainda a nossa raça. Como o
padre preto,
 José Maurício Nunes Garcia, o grande músico da Corte de D. João VI, quando
Mauricio sentava ao piano para a sua execução os portugueses ficavam extasiados; José Patrício,
o grande musico da cidade de Santos; Manoel dos Passos, Carlos Cruz
 Verrísimo Gloria, Custodio
dos Passos e muitos outros que existem ahi pelo interior
 do nosso glorioso estado de S. Paulo”.
(O Clarim d´Alvorada, 1927)

 

 

Apesar da pouca presença da crítica cultural nos periódicos da imprensa negra paulista na primeira metade do século XX e nos anos subsequentes, o texto publicado em O Clarim d’Alvorada não é um caso isolado. O esforço das publicações em diversificar suas áreas de atuação com o intuito de informar e atender uma heterogênea e jovem comunidade negra paulista – cada vez mais bem informada e próxima ao estudo formal – também não se trata de um caso isolado.

 

 

 

José Correia Leite, co-fundador e diretor do jornal O Clarim d’Alvorda (1924)

 

 

 

Na edição de julho de 1960, o jornal Níger, que tinha como subtítulo a frase: publicação a serviço da coletividade negra, publicou na coluna Um pouco de tudo e de tudo um pouco, o texto A respeito do TEN-SP, onde o autor, não identificado, discorre sobre a criação do Teatro Experimental do Negro em São Paulo. Também neste texto, a preocupação do jornal está mais em informar os leitores sobre a existência e atuação da companhia, com ênfase no que hoje entendemos como prestação de serviços:

 

 

“A História do Teatro Experimental do Negro de São Paulo começou há quinze anos,
quando um grupo de intelectuais negros reuniu-se para formar um grupo de atores
negros a fim de que este grupo de atores negros rompesse com a tolice até então
reinante no teatro brasileiro: de se mascarar atores brancos para os papeis que pediam
um negro. Da formação do Teatro Experimental do Negro, tiveram participação ativa
o poeta Lino Guedes, o já desaparecido ator Agnaldo Camargo e o jornalista Geraldo
Campos de Oliveira, braço forte do grupo e que durante vários anos tem liderado o
movimento. […] O TENSP mantém desde 1955 um coral declamatório, e já apresentou
os seguintes programas: Alama do Eito, Negro, Urucungo, África, Inspiração, Novena,
Rua de Pobre, Roteiro para o Poema Universal. Interessante observar a legenda da foto

que ilustra o texto, demonstrando o interesse dos editores da publicação em fomentar o
grupo teatral perante seus leitores: Essa pitoresca fotografia mostra artistas do ‘Teatro
Experimental do Negro’ de São Paulo, na interpretação da coletânea de poemas
‘Inspiração’, levada com êxito no Teatro João Caetano, na Sede do Sindicato dos
Trabalhadores na Construção Civil e outras casas”. (Jornal Níger, 1960. Ano I, N°1)

 

 

Em outubro de 1957, o jornal Notícias de Ébano (Órgão noticioso do “Ébano Atlético Clube”), da cidade de Santos, com o propósito de agregar valor a Semana José do Patrocínio, atividade promovida pela própria organização responsável por gerir a publicação, dedica considerável número de colunas para promover a biografia da atriz Ruth de Souza. Apesar da ausência de uma análise crítica sobre a performance dramatúrgica da atriz, ou de uma reflexão sobre as personagens por ela interpretadas, o texto cumpre (com galhardia) a função de traçar um perfil da artista. Isso porque uma série de revelações e curiosidades sobre a trajetória de Ruth são ali apresentadas, agindo como estímulo aos jovens leitores e leitoras desejosos em seguir semelhante carreira:

 

 

“Desde criança Ruth de Souza sonhava em representar, mas no colégio a professora foi de
opinião que ‘amor ao teatro não era boa coisa’ não
 consentindo que ela tomasse parte em
espetáculos infantis. Mas o sonho
 e o ‘amor ao teatro’, continuaram e, assim, ingressou no
elenco do Teatro
 Experimental do Negro onde interpretou várias peças com grande sucesso,
chamando a atenção da crítica para seu nome. Nos ‘Comediantes’ fez o papel de Joana na
peça extraída do romance de Jorge Amado ‘Terras do Sem Fim’
 que foi transposta para o
cinema onde recebeu o título de ‘Terra Violenta’ e,
 neste filme, Ruth de Souza interpretou o
mesmo personagem que criara no teatro.
 Desde então vem dividindo duas atividades entre
o palco e os estúdios. Ainda no
 Rio de Janeiro tomou parte nos seguintes filmes: ‘Falta alguém
no Manicomio’,
 ‘Também somos irmãos’ e ‘Aglaia’. Em 1950 veio para São Paulo a convite da
Vera Cruz a fim de entrar no filme ‘Terra sempre terra’, onde sua interpretação do papel de
Bastiana lhe fez merecer o Prêmio da melhor coadjuvante do ano (1951),
 conferido pela
Associação dos Criticos Cinematograficos do Rio de Janeiro.
 Imediatamente depois, tomou
parte no filme ‘Angela’ que lhe mereceu o Premio Governador do Estado de São Paulo como
‘atriz coadjuvante’.
 Seu trabalho em teatro e cinema chamaram a atenção da Rockefeller
Foudation, dos EUA, que lhe proporcionou uma bolsa de estudos naquele país, para onde
viajou em setembro de 1951. Durante 10 meses estudou
 em Karamu House, em Cleveland (Ohio)
onde se tomou parte em diversos
 espetáculos. Fez o principal papel feminino da peçaDark
Gunman’, ‘A Street Scene’ e ‘Porgy’.Atuou ainda em diversas cidades norte
 americanas e seu
talento foi comentado em termos altamente
 elogiosos pela critica especializada do país”.

 

 

Nascida em 2015, na cidade de São Paulo, a revista Legítima Defesa Uma Revista de Teatro Negro, uma publicação da Cia. de Teatro Os Crespos, também podem ser entendida como uma consequência contemporânea dessas primeiras inserções, na imprensa negra paulista, do negro enquanto sujeito protagonista da cena dramatúrgica nacional.

 

 

Capa da segunda edição da Revista Legítima Defesa, lançada em 2016. Uma revista negra brasileira inteiramente dedicada ao teatro negro das diásporas africanas.

 

 

 

Com periodicidade anual, a revista Legítima Defesa – Uma Revista de Teatro Negro vem, por meio de um profundo investimento intelectual, conseguindo discutir critérios estéticos e políticos do Teatro Negro produzido na diáspora africana, possibilitando a inscrição e historicização dos processos artísticos além de estimular o debate crítico em torno do tema, como podemos observar no texto A Cena preta do teatro contemporâneo no Brasil, assinada pela pesquisadora Renata Felinto:

 

 

“Se os grupos e coletivos de teatro formados majoritariamente por atores e atrizes
‘eurodescendentes’ não incluem, em sua maioria, colegas de profissão negros e negras
em seus elencos com assiduidade, como uma prática natural e sequer possuem o
interesse ou sensibilidade de realizar pesquisas e montagens que tragam à público
esse ‘Eu’ criativo afro-brasileiro, é legítimo que se formem grupos e coletivos de Artes
Cênicas encabeçados e constituídos somente por afrodescendentes. Os mesmos desejam
ver e rever, pensar e repensar suas realidades históricas a partir de si e de seus semelhantes.
Se o teatro (branco) fala de si, o teatro negro também o faz. E não seja entendida aqui uma
estratégia para apartar ou excluir, todavia, uma forma de se contemplar, se apreciar.
E, ponderando sobre o Brasil, país continental, como será que esses grupos e coletivos de
teatro tem discutido e apresentado a estética negra? Este texto pretende debruçar-se sobre
a apreciação das várias cores e pigmentos que compõem a paleta do que é ou poderia ser
compreendido como estética negra. Mas, primeiramente, para discutir o hoje, revisitemos
a terminologia estética e os princípios do teatro feito por afrodescendentes no Brasil”.
(Revista Legítima Defesa, 2014. Ano I, N°1)

 

 

De modo geral, os espaços de reflexão na imprensa negra paulista que permitem mergulhos mais profundos no que tange a crítica cultural, são desenvolvidos com maior fluidez nas áreas autorais de sites, blogs, portais e veículos impressos, sendo que, na grande maioria das vezes, essas análises aparecem de forma isolada, geralmente, assinadas por colunistas, não representando efetivamente uma “missão” dos veículos.

 

Em São Paulo, apesar da atuação urgente, competente e necessária de iniciativas como Geledés, CEERT, Portal Áfricas, Blogueiras Negras, Blog do Negro Belchior, Alma Preta, e das revistas Legítima Defesa e O Menelick 2° Ato, além daqueles que, especialmente por meio de suas páginas sociais, se situam a meio caminho entre o ensaismo e o resenhismo (Alexandre Araújo Bispo, Cidinha da Silva, Allan da Rosa, Ana Lira, Djamila Ribeiro, Lázaro Ramos, entre outros), observamos que nos dias de hoje ainda, ainda há uma considerável distância entre a crítica midiática, de caráter utilitário, e a crítica acadêmica, intelectual, destinada à reflexão, mas fatalmente fechada ao ambiente universitário.

 

A perda da função social da crítica não pode ser tratada como “natural”, inerente à estrutura capitalista. A partir de outros modelos existentes, dentro e fora do país, em outras épocas ou até mesmo atualmente, fica claro que nem sempre isso aconteceu e que não é necessário que hoje isso aconteça. A crítica também deve ter uma função ativa no ciclo de produções culturais, abrindo espaço não apenas para que a discussão seja ampliada como também para alimentar a própria produção cultural. Apenas dessa forma, a crítica se desloca para uma esfera própria, separada da lógica publicitária, assistencialista (do ponto de vista da camaradagem) e da fragmentação generalizada para se inserir no cotidiano da sociedade.

 

 

 

O CASO DO JORNAL QUILOMBO: VANGUARDISMO NEGRO NA IMPRENSA

Estado que mais forneceu periódicos vinculados a imprensa negra ao longo do século XX, São Paulo, mesmo tendo gestado publicações históricas como O Clarim d’Alvorada, A Voz da Raça e a revista Raça Brasil, não tem em sua trajetória uma publicação com o refinamento reflexivo promovido pelo  jornal Quilombo. Fundado por Abdias do Nascimento, em 1948, como um braço do Teatro Experimental do Negro (TEN), este jornal congregava num mesmo espaço intelectuais negros e brancos que buscavam, por meio de suas colaborações incluir, de fato, a intelligentsia negra na agenda do país. Figuravam entre os colaboradores de Quilombo, entre outros, nomes como: Guerreiro Ramos, Ironilde Rodrigues, Edison Carneiro, Solano Trindade, Nelson Rodrigues, Rachel de Queiroz, Gilberto Freyre, Arthur Ramos, Murilo Mendes, Carlos Drummond de Andrade, Péricles Leal, Orígines Lessa e Roger Bastide.

 

 

Abdias do Nascimento, a contralto estadunidense Marian Anderson e Ruth de Souza, em 1950, folheando algumas edições do jornal Quilombo

 

 

 

Rica e diversa também eram as características dos intelectuais estrangeiros que colaboravam com a publicação, como George Schuyler (jornalista do Pittsburgh Courier), o argentino Efrain Tomás Bó, Estanislau Fischlowitz, Paul Vanorden Shaw e Ralph Bunche. Mantendo-se em sintonia com o que se produzia em Paris, Nova York ou Chicago; Quilombo traduziu e deu a conhecer o texto Orpheu Negro, de Jean-Paul Sartre, entrevistou Albert Camus, reproduziu artigos do The Crisis, jornal dirigido por Du Bois em Nova York; manteve contato regular com a equipe do Présence Africaine, órgão da negritude francesa, assim como com os principais jornais negros norte-americanos. Discutiu a música, o cinema, o teatro e a poesia feitos no Brasil por negros, assim como as manifestações da então chamada “cultura afro-brasileira”, tais como os candomblés.

 

Em sintonia com o mundo cultural brasileiro e internacional, tal qual as mais importantes publicações norte-americanas ou francesas da época, Quilombo foi semelhante e, ao mesmo tempo, bastante diferente de seus antecessores (e muito dos seus sucessores) da imprensa negra. Uma vez que, além de cumprir as funções tradicionais dessa imprensa, como a denúncia, a luta por direitos iguais, alternativas para a inserção negra na sociedade, essa publicação também iluminou e deu voz a erudição negra brasileira  – “negra” não apenas na cor, mas, principalmente, na identidade.

 

Encanta saber as investidas que o periódico fez – na maioria das vezes com profundidade – pela literatura, música, poesia, cinema e, obviamente, pelo teatro. Investidas essas que ainda hoje são vanguardistas em forma e conteúdo.

 

 

 

 

 

Em sua edição inaugural, de 09 de dezembro de 1948, o jornal Quilombo publicou o texto Poesia Afro-americana, de Efrain Tomas Bo, especialmente produzido para a publicação:

 

“O tema que nos impõe o titulo indica uma limitação no sentido da critica literária.
De toda a poesia debruçada em sua expressao, vamos separar aquela que nasceu dos
negros vindos para a America – qualquer seja sua temática. Dentro deste volume de
manifestação intima ou interior, trataremos de assinalar os motivos líricos ouros que
a inspiram e que tem sua fonte autentica na alma do negro, em sua emoção humana
diferenciada, e em seu temperamento espiritual submetido ou adaptado ao clima de
convivência americano. Estas suposições nos permitem afirmar que estão fora de nossa
valorização poética os motivos nascidos para expressar primariamente o pranto ou a revolta,
a resignação ou a luta do escravo. Estes temas podem ter valor em si como incitações politicas
ou sociais, porem em poesia eh somente um estimulo que precisa trabalho literário afim de
transformar-se em arte. A escravidão – e seus sentimentos paralelos de pranto e revolta,
resignação e luta – sao acidentes na condição humana do negro transplantado para a
America ou daquele que trabalha em suas feitorias europeias da Africa. (…) Assim como
Pushkin e A. Dumas – escritores de cor – nao escreveram desde o ponto de vista e desde
a circunstância negra, no século XIX cubano ha escritores de origem africana que se expressam
nos moldes e nos padrões da época. Em muitas composições o tema é subjacente porem não esta
a flor da consciência. Só na poesia popular o negro se expressa com verdade e com beleza sem o
pranto nem a revolta  como matéria dominante de sua arte. Será Nicolas Guillen, o poeta lucido
que construíra seus versos sobre uma temática verdadeira com sólidas raízes em sua alma e com
sabia ideia do essencial na poesia”.

 

 

 

 

 

Vistos os exemplos apresentados ao longo deste texto e a conformação da sociedade negra brasileira, cada vez mais instruída e sabedora da sua história de luta e resistência, mas também de competência intelectual, observarmos o quão importante é estimularmos e valorizarmos iniciativas que, sejam por meio de colunistas ou textos de redação, estimulem o debate crítico para além do bom e do ruim, do gostei e não gostei. A reflexão sobre temas argilosos relacionados à produção cultural negra no Brasil e que ainda hoje não encontram campo para discussão da mídia hegemônica são urgentes. O passado e o presente da imprensa negra mostram que é possível veicularmos tais conteúdos capazes de transgredir fronteiras numa perspectiva ampla da sociedade negra moderna. A mídia pode e deve ser um espaço de empoderamento e reflexão para que possamos ter uma sociedade capaz de enfrentar os desafios cotidianos.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

nota (1)

Imprensa Negra no Brasil do século XIX
Ana Flávia Magalhães Pinto
Selo Negro
São Paulo
2010

 

 

 

 

 

 

 

 

 

[:en]

 

 

 

 

 

 

foto Bob Adelman

 

 

 

 

 

 

 

 

Desde o nascimento, em São Paulo, do jornal A Pátria (1889), considerado o marco fundador da atuação dos “homens de cor” – nome por qual os africanos, seus descendentes, negros livres e libertos ainda eram chamados a época no Brasil – por meio de uma imprensa própria, em um movimento editorial de cunho jornalístico que mais tarde ganharia o nome de Imprensa Negra Paulista, até os dias de hoje, o mundo mudou bastante. Na verdade, o mundo é outro – apesar das semelhanças, muitas delas tristes semelhanças, que ainda nos conectam aos séculos passados.

 

Entre as muitas transformações que ocorreram nos mais variados aspectos da vida humana nos últimos 140 anos, as conquistas da população negra que proporcionaram e esta estreitar suas relações com ferramentas capazes de facilitar o desenvolvimento de suas reflexões críticas por meio da escrita está entre as mais salutares. Visto, entre outros aspectos, por estar intimamente relacionada ao acesso dessa população a educação e ao conhecimento, indiscutíveis promotores da mobilidade social de um povo.

 

Em termos práticos, porém, de que maneira essas transformações que aproximaram a população negra da educação formal e, posteriormente, da academia, e que consequentemente forjaram o nascimento de um incontável número de escritores, poetas, músicos, pintores, estilistas, fotógrafos, entre outros profissionais e intelectuais do campo das artes, foram acompanhadas pela imprensa negra em São Paulo? Quer dizer, que contribuição foi dada a reflexão crítica, do ponto de vista jornalístico, a essa rica e numerosa produção artística, muitas delas responsáveis por moldar os conceitos que viriam a definir as artes brasileiras de autoria negra nos séculos XX e XXI?

 

 

 

PARALELOS E CONVERGÊNCIAS

 

“O Mulato, ou O Homem de Cor” (1833), considerado o primeiro jornal da Imprensa Negra no Brasil

 

 

 

Estudos (1) indicam que o jornal A Pátria (1889) inaugura a secular história da imprensa negra paulista. Simpático ao republicanismo, movimento que injetou novas perspectivas de esperança entre negros libertos e livres de São Paulo, assim como já fizera a então recém assinada abolição, este periódico foi prosseguido pelo jornal negro O Progresso (1899), segundo periódico da história da imprensa negra paulista.

 

Distante pouco mais de 10 anos da abolição e vivendo os primeiros dias da República, o jornal O Progresso (1899) – já desiludido com os resultados práticos da abolição e do próprio regime republicano – diferentemente da inclinação política do seu antecessor, afirmava ter o único objetivo de “prestar auxílio desinteressado à raça a que pertencemos”.

 

Esses jornais de combate, denúncia e integração, que se ocuparam da crítica cultural em seu sentido mais amplo – que relaciona a crítica cultural tanto à cultura como à sociedade – pavimentaram o caminho para que uma série de periódicos surgissem em São Paulo nas décadas seguintes. Essas publicações, em sua maioria, foram gestadas no seio de associações culturais, grêmios recreativos e outros espaços da sociabilidade negra paulista do período. Ainda hoje urgente e necessária (e igualmente desconhecida), a imprensa negra paulista marcaria seu espaço no jornalismo brasileiro nas décadas seguintes com iniciativas como: O Menelick (1915), A Rua (1916), O Xauter (1916), O Alfinete (1918), O Bandeirante (1919), A Liberdade (1919), A Sentinela (1920), O Kosmos (1922) e Getulino (1923), Alvorada (1935), Senzala (1946), União (1948), Mundo Novo (1950), Quilombo (1950), Redenção (1950), A Voz da Negritude (1953), O Novo Horizonte (1954), Notícias de Ébano (1957), O Mutirão (1958), Hífen (1960), Niger (1960), Nosso Jornal (1961), Correio d´Ébano (1963), Árvore das Palavras (1974), O Quadro (1974), Biluga (1974), Jornegro (1977), O Saci (1978), Abertura (1978), Vissungo (1979), Derebo (1980), Chama Negra (1986), Revista Ébano (1980), Tribuna Afro Brasileira (1989), Pode Cre (1993), Agito Geral (1995), Raça Brasil (1996), Visual Cabelos Crespos (1997), Negro Cem por Cento (1998), Rap Brasil (1999), Planeta Hip Hop (2000), Eparrei (2001), Afirmativa Plural (2004), Elementos (2007), entre outros.  Apropriando-se da relativa “democratização” das tecnologias que se popularizaram no início do século XXI, surgem na internet (ou disseminam-se neste espaço) e, posteriormente, nas redes sociais, iniciativas como Geledés, CEERT (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdade), Portal Áfricas, Blogueiras Negras, Blog do Negro Belchior, Alma Preta e, evidentemente, a própria revista O Menelick 2º Ato. Em comum, essas publicações buscam constituir-se não somente como veículos de informação e representatividade, como também enquanto espaços de produção de um pensamento mais reflexivo e crítico sobre a hegemônica presença negra na sociedade brasileira.

 

 

 

Revista Ébano (1980)

 

 

Assim, ao traçarmos um paralelo entre a produção de conteúdo jornalístico por meio de jornais e revistas produzidos na primeira metade do século XX – a era de ouro da imprensa negra paulista – com as iniciativas atuais, observamos que, inserida no contexto da “cultura de massa”, a crítica cultural na imprensa negra (como resultado de um fenômeno que também acomete a imprensa brasileira de maneira geral) ainda apresenta tímido impacto social, demonstrando apenas um resquício fragmentado do debate que poderia protagonizar.

 

Vale ressaltar que a crítica, no princípio, fora concebida como um espaço voltado para o debate cultural, uma vez que a mesma age como forma de legitimação de sujeitos discursantes, de conceitos relativos à opinião pública e, por fim, de práticas culturais enraizadas no histórico socioeconômico de cada época.

 

 

 

A CRÍTICA CULTURAL NA IMPRENSA NEGRA DE SP

 

Em sua 31ª edição, publicada em 17 de abril de 1927, o jornal O Clarim d’Alvorada, que apresentava em seu subtítulo a frase Órgão literário, noticioso e humorístico, observamos um texto assinado por Horácio da Cunha, com o título Os pretos e a música. Conforme outras raras incursões no campo da produção musical pelos jornais da imprensa negra paulista do período, este texto não pretende aprofundar um debate sobre a presença negra na música, como sugere a chamada para o artigo. Contudo, tem o mérito de valorizar a erudição musical dos negros, com a nítida intenção de ressignificar estereótipos de inferioridade:

 

“Tendo lido há tempos uma chronica no Jornal do Commercio, que uma pessoa interpelou
um ilustre maestro de musica, desejando saber qual era a sua opinião sobre o Jazz-Band,
o maestro depois de fazer varias considerações sobre a musica clássica, terminou dizendo:
‘O Jazz-Band é musica de negro!’.
 Desculpe ilustre maestro da réplica deste despretensioso
negro
 Brasileiro. Chegando em Pariz, uma caravana de musicos Americanos, com um
Jazz-Band, cujos estrumentos excêntricos, compondo-se de:
 Bozina de automóvel, Campainha,
Lata de Kerozene, Chacoalho, etc.
 Pariz a cidade da luz das belezas, das musicas e dos luxos.
Pois bem;
 Pariz, applaudiu com enthusiasmo o Jazz-Band. D´alli esses estrumentos invadiram
todas America do Sul. Aqui, em nossa Pauliceia, essa musica
 teve a maior aceitação, nos salões,
e em casas das mais distintas famílias
 da capital e do interior: é Jazz-Band ao almoço, ao jantar,
ao chá e à ceia.
 Portanto, essa musica não é só para o negro como dissera esse ilustre maestro.
É somente para famílias de bom gosto que estão sentados em Cruzeiros. Nós, os pretos brasileiros,
sempre fomos apreciadores da musica clássica;
 e com orgulho da nossa raça negra, podemos
apresentar diversos músicos
 pretos que muito honraram e honram ainda a nossa raça.
Como o padre preto,
 José Maurício Nunes Garcia, o grande músico da Corte de D. João VI, quando
Mauricio sentava ao piano para a sua execução os portugueses ficavam extasiados; José Patrício,
o grande musico da cidade de Santos; Manoel dos Passos, Carlos Cruz
 Verrísimo Gloria, Custodio
dos Passos e muitos outros que existem ahi pelo interior
 do nosso glorioso estado de S. Paulo”.
(O Clarim d´Alvorada, 1927)

 

 

Apesar da pouca presença da crítica cultural nos periódicos da imprensa negra paulista na primeira metade do século XX e nos anos subsequentes, o texto publicado em O Clarim d’Alvorada não é um caso isolado. O esforço das publicações em diversificar suas áreas de atuação com o intuito de informar e atender uma heterogênea e jovem comunidade negra paulista – cada vez mais bem informada e próxima ao estudo formal – também não se trata de um caso isolado.

 

 

 

José Correia Leite, co-fundador e diretor do jornal O Clarim d’Alvorda (1924)

 

 

 

Na edição de julho de 1960, o jornal Níger, que tinha como subtítulo a frase: publicação a serviço da coletividade negra, publicou na coluna Um pouco de tudo e de tudo um pouco, o texto A respeito do TEN-SP, onde o autor, não identificado, discorre sobre a criação do Teatro Experimental do Negro em São Paulo. Também neste texto, a preocupação do jornal está mais em informar os leitores sobre a existência e atuação da companhia, com ênfase no que hoje entendemos como prestação de serviços:

 

 

“A História do Teatro Experimental do Negro de São Paulo começou há quinze anos,
quando um grupo de intelectuais negros reuniu-se para formar um grupo de atores
negros a fim de que este grupo de atores negros rompesse com a tolice até então
reinante no teatro brasileiro: de se mascarar atores brancos para os papeis que pediam
um negro. Da formação do Teatro Experimental do Negro, tiveram participação ativa
o poeta Lino Guedes, o já desaparecido ator Agnaldo Camargo e o jornalista Geraldo
Campos de Oliveira, braço forte do grupo e que durante vários anos tem liderado o
movimento. […] O TENSP mantém desde 1955 um coral declamatório, e já apresentou
os seguintes programas: Alama do Eito, Negro, Urucungo, África, Inspiração, Novena,
Rua de Pobre, Roteiro para o Poema Universal. Interessante observar a legenda da foto

que ilustra o texto, demonstrando o interesse dos editores da publicação em fomentar o
grupo teatral perante seus leitores: Essa pitoresca fotografia mostra artistas do ‘Teatro
Experimental do Negro’ de São Paulo, na interpretação da coletânea de poemas
‘Inspiração’, levada com êxito no Teatro João Caetano, na Sede do Sindicato dos
Trabalhadores na Construção Civil e outras casas”. (Jornal Níger, 1960. Ano I, N°1)

 

 

Em outubro de 1957, o jornal Notícias de Ébano (Órgão noticioso do “Ébano Atlético Clube”), da cidade de Santos, com o propósito de agregar valor a Semana José do Patrocínio, atividade promovida pela própria organização responsável por gerir a publicação, dedica considerável número de colunas para promover a biografia da atriz Ruth de Souza. Apesar da ausência de uma análise crítica sobre a performance dramatúrgica da atriz, ou de uma reflexão sobre as personagens por ela interpretadas, o texto cumpre (com galhardia) a função de traçar um perfil da artista. Isso porque uma série de revelações e curiosidades sobre a trajetória de Ruth são ali apresentadas, agindo como estímulo aos jovens leitores e leitoras desejosos em seguir semelhante carreira:

 

 

“Desde criança Ruth de Souza sonhava em representar, mas no colégio a professora foi de
opinião que ‘amor ao teatro não era boa coisa’ não
 consentindo que ela tomasse parte em
espetáculos infantis. Mas o sonho
 e o ‘amor ao teatro’, continuaram e, assim, ingressou no
elenco do Teatro
 Experimental do Negro onde interpretou várias peças com grande sucesso,
chamando a atenção da crítica para seu nome. Nos ‘Comediantes’ fez o papel de Joana na
peça extraída do romance de Jorge Amado ‘Terras do Sem Fim’
 que foi transposta para o
cinema onde recebeu o título de ‘Terra Violenta’ e,
 neste filme, Ruth de Souza interpretou o
mesmo personagem que criara no teatro.
 Desde então vem dividindo duas atividades entre
o palco e os estúdios. Ainda no
 Rio de Janeiro tomou parte nos seguintes filmes: ‘Falta alguém
no Manicomio’,
 ‘Também somos irmãos’ e ‘Aglaia’. Em 1950 veio para São Paulo a convite da
Vera Cruz a fim de entrar no filme ‘Terra sempre terra’, onde sua interpretação do papel de
Bastiana lhe fez merecer o Prêmio da melhor coadjuvante do ano (1951),
 conferido pela
Associação dos Criticos Cinematograficos do Rio de Janeiro.
 Imediatamente depois, tomou
parte no filme ‘Angela’ que lhe mereceu o Premio Governador do Estado de São Paulo como
‘atriz coadjuvante’.
 Seu trabalho em teatro e cinema chamaram a atenção da Rockefeller
Foudation, dos EUA, que lhe proporcionou uma bolsa de estudos naquele país, para onde
viajou em setembro de 1951. Durante 10 meses estudou
 em Karamu House, em Cleveland (Ohio)
onde se tomou parte em diversos
 espetáculos. Fez o principal papel feminino da peçaDark
Gunman’, ‘A Street Scene’ e ‘Porgy’.Atuou ainda em diversas cidades norte
 americanas e seu
talento foi comentado em termos altamente
 elogiosos pela critica especializada do país”.

 

 

Nascida em 2015, na cidade de São Paulo, a revista Legítima Defesa Uma Revista de Teatro Negro, uma publicação da Cia. de Teatro Os Crespos, também podem ser entendida como uma consequência contemporânea dessas primeiras inserções, na imprensa negra paulista, do negro enquanto sujeito protagonista da cena dramatúrgica nacional.

 

 

Capa da segunda edição da Revista Legítima Defesa, lançada em 2016

 

 

Com periodicidade anual, a revista Legítima Defesa vem, por meio de um profundo investimento intelectual, conseguindo discutir critérios estéticos e políticos do Teatro Negro produzido na diáspora africana, possibilitando a inscrição e historicização dos processos artísticos além de estimular o debate crítico em torno do tema, como podemos observar no texto A Cena preta do teatro contemporâneo no Brasil, assinada pela pesquisadora Renata Felinto:

 

 

“Se os grupos e coletivos de teatro formados majoritariamente por atores e atrizes
‘eurodescendentes’ não incluem, em sua maioria, colegas de profissão negros e negras
em seus elencos com assiduidade, como uma prática natural e sequer possuem o
interesse ou sensibilidade de realizar pesquisas e montagens que tragam à público
esse ‘Eu’ criativo afro-brasileiro, é legítimo que se formem grupos e coletivos de Artes
Cênicas encabeçados e constituídos somente por afrodescendentes. Os mesmos desejam
ver e rever, pensar e repensar suas realidades históricas a partir de si e de seus semelhantes.
Se o teatro (branco) fala de si, o teatro negro também o faz. E não seja entendida aqui uma
estratégia para apartar ou excluir, todavia, uma forma de se contemplar, se apreciar.
E, ponderando sobre o Brasil, país continental, como será que esses grupos e coletivos de
teatro tem discutido e apresentado a estética negra? Este texto pretende debruçar-se sobre
a apreciação das várias cores e pigmentos que compõem a paleta do que é ou poderia ser
compreendido como estética negra. Mas, primeiramente, para discutir o hoje, revisitemos
a terminologia estética e os princípios do teatro feito por afrodescendentes no Brasil”.
(Revista Legítima Defesa, 2014. Ano I, N°1)

 

 

De modo geral, os espaços de reflexão na imprensa negra paulista que permitem mergulhos mais profundos no que tange a crítica cultural, são desenvolvidos com maior fluidez nas áreas autorais de sites, blogs, portais e veículos impressos, sendo que, na grande maioria das vezes, essas análises aparecem de forma isolada, geralmente, assinadas por colunistas, não representando efetivamente uma “missão” dos veículos.

 

Em São Paulo, apesar da atuação urgente, competente e necessária de iniciativas como Geledés, CEERT, Portal Áfricas, Blogueiras Negras, Blog do Negro Belchior, Alma Preta, e das revistas Legítima Defesa e O Menelick 2° Ato, além daqueles que, especialmente por meio de suas páginas sociais, se situam a meio caminho entre o ensaismo e o resenhismo (Alexandre Araújo Bispo, Cidinha da Silva, Allan da Rosa, Ana Lira, Djamila Ribeiro, Lázaro Ramos, entre outros), observamos que nos dias de hoje ainda, ainda há uma considerável distância entre a crítica midiática, de caráter utilitário, e a crítica acadêmica, intelectual, destinada à reflexão, mas fatalmente fechada ao ambiente universitário.

 

A perda da função social da crítica não pode ser tratada como “natural”, inerente à estrutura capitalista. A partir de outros modelos existentes, dentro e fora do país, em outras épocas ou até mesmo atualmente, fica claro que nem sempre isso aconteceu e que não é necessário que hoje isso aconteça. A crítica também deve ter uma função ativa no ciclo de produções culturais, abrindo espaço não apenas para que a discussão seja ampliada como também para alimentar a própria produção cultural. Apenas dessa forma, a crítica se desloca para uma esfera própria, separada da lógica publicitária, assistencialista (do ponto de vista da camaradagem) e da fragmentação generalizada para se inserir no cotidiano da sociedade.

 

 

 

O CASO DO JORNAL QUILOMBO

 

Estado que mais forneceu periódicos vinculados a imprensa negra ao longo do século XX, São Paulo, mesmo tendo gestado publicações históricas como O Clarim d’Alvorada, A Voz da Raça e a revista Raça Brasil, não tem em sua trajetória uma publicação com o refinamento reflexivo promovido pelo  jornal Quilombo. Fundado por Abdias do Nascimento, em 1948, como um braço do Teatro Experimental do Negro (TEN), este jornal congregava num mesmo espaço intelectuais negros e brancos que buscavam, por meio de suas colaborações incluir, de fato, a intelligentsia negra na agenda do país. Figuravam entre os colaboradores de Quilombo, entre outros, nomes como: Guerreiro Ramos, Ironilde Rodrigues, Edison Carneiro, Solano Trindade, Nelson Rodrigues, Rachel de Queiroz, Gilberto Freyre, Arthur Ramos, Murilo Mendes, Carlos Drummond de Andrade, Péricles Leal, Orígines Lessa e Roger Bastide.

 

 

Abdias do Nascimento, a contralto estadunidense Marian Anderson e Ruth de Souza, em 1950, folheando algumas edições do jornal Quilombo

 

 

 

Rica e diversa também eram as características dos intelectuais estrangeiros que colaboravam com a publicação, como George Schuyler (jornalista do Pittsburgh Courier), o argentino Efrain Tomás Bó, Estanislau Fischlowitz, Paul Vanorden Shaw e Ralph Bunche. Mantendo-se em sintonia com o que se produzia em Paris, Nova York ou Chicago; Quilombo traduziu e deu a conhecer o texto Orpheu Negro, de Jean-Paul Sartre, entrevistou Albert Camus, reproduziu artigos do The Crisis, jornal dirigido por Du Bois em Nova York; manteve contato regular com a equipe do Présence Africaine, órgão da negritude francesa, assim como com os principais jornais negros norte-americanos. Discutiu a música, o cinema, o teatro e a poesia feitos no Brasil por negros, assim como as manifestações da então chamada “cultura afro-brasileira”, tais como os candomblés.

 

Em sintonia com o mundo cultural brasileiro e internacional, tal qual as mais importantes publicações norte-americanas ou francesas da época, Quilombo foi semelhante e, ao mesmo tempo, bastante diferente de seus antecessores (e muito dos seus sucessores) da imprensa negra. Uma vez que, além de cumprir as funções tradicionais dessa imprensa, como a denúncia, a luta por direitos iguais, alternativas para a inserção negra na sociedade, essa publicação também iluminou e deu voz a erudição negra brasileira  – “negra” não apenas na cor, mas, principalmente, na identidade.

 

Encanta saber as investidas que o periódico fez – na maioria das vezes com profundidade – pela literatura, música, poesia, cinema e, obviamente, pelo teatro. Investidas essas que ainda hoje são vanguardistas em forma e conteúdo.

 

 

 

 

Em sua edição inaugural, de 09 de dezembro de 1948, o jornal Quilombo publicou o texto Poesia Afro-americana, de Efrain Tomas Bo, especialmente produzido para a publicação:

 

“O tema que nos impõe o titulo indica uma limitação no sentido da critica literária.
De toda a poesia debruçada em sua expressao, vamos separar aquela que nasceu dos
negros vindos para a America – qualquer seja sua temática. Dentro deste volume de
manifestação intima ou interior, trataremos de assinalar os motivos líricos ouros que
a inspiram e que tem sua fonte autentica na alma do negro, em sua emoção humana
diferenciada, e em seu temperamento espiritual submetido ou adaptado ao clima de
convivência americano. Estas suposições nos permitem afirmar que estão fora de nossa
valorização poética os motivos nascidos para expressar primariamente o pranto ou a revolta,
a resignação ou a luta do escravo. Estes temas podem ter valor em si como incitações politicas
ou sociais, porem em poesia eh somente um estimulo que precisa trabalho literário afim de
transformar-se em arte. A escravidão – e seus sentimentos paralelos de pranto e revolta,
resignação e luta – sao acidentes na condição humana do negro transplantado para a
America ou daquele que trabalha em suas feitorias europeias da Africa. (…) Assim como
Pushkin e A. Dumas – escritores de cor – nao escreveram desde o ponto de vista e desde
a circunstância negra, no século XIX cubano ha escritores de origem africana que se expressam
nos moldes e nos padrões da época. Em muitas composições o tema é subjacente porem não esta
a flor da consciência. Só na poesia popular o negro se expressa com verdade e com beleza sem o
pranto nem a revolta  como matéria dominante de sua arte. Será Nicolas Guillen, o poeta lucido
que construíra seus versos sobre uma temática verdadeira com sólidas raízes em sua alma e com
sabia ideia do essencial na poesia”.

 

 

Vistos os exemplos apresentados ao longo deste texto e a conformação da sociedade negra brasileira, cada vez mais instruída e sabedora da sua história de luta e resistência, mas também de competência intelectual, observarmos o quão importante é estimularmos e valorizarmos iniciativas que, sejam por meio de colunistas ou textos de redação, estimulem o debate crítico para além do bom e do ruim, do gostei e não gostei. A reflexão sobre temas argilosos relacionados à produção cultural negra no Brasil e que ainda hoje não encontram campo para discussão da mídia hegemônica são urgentes. O passado e o presente da imprensa negra mostram que é possível veicularmos tais conteúdos capazes de transgredir fronteiras numa perspectiva ampla da sociedade negra moderna. A mídia pode e deve ser um espaço de empoderamento e reflexão para que possamos ter uma sociedade capaz de enfrentar os desafios cotidianos.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

nota

Imprensa Negra no Brasil do século XIX
Ana Flávia Magalhães Pinto
Selo Negro
São Paulo
2010

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Nabor Jr.

Nabor Jr. é fundador-diretor da Revista O Menelick 2° Ato. Jornalista com especialização em Jornalismo Cultural e História da Arte, também atua como fotógrafo com o pseudônimo MANDELACREW.

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.