fevereiro de 2016

SOBRE ALTERIDADE, MEMÓRIA E SOLIDÃO: ENGRAVIDEI, PARI CAVALOS E APRENDI A VOAR SEM ASAS

Soraya Martins

 

 

 

fotos Roniel Felipe

 

 

 

 

DJ: “Várias mulheres vivem em mim. Uma mulher que sabe da sua condição no mundo, e que muitas vezes está alheia a isso; uma mulher que agarra tudo que vem à sua frente, outra sem paradeiro; uma mulher sufocada, uma mulher desgostosa da vida com muita sede de viver; uma fêmea extremamente vulnerável e triste, algumas vezes conformada, outras revoltada, às vezes até feliz; sábia, determinada, forte; uma mulher carente de amor, que ama. Porque amor é colírio, desembaça os olhos. Amor é água que brota e não cessa, irradia, fertiliza e floresce. Quem crê no amor tem fé, aquela luz que não se vê, mas guia”.

 

Qual o sentido de refletir sobre a alteridade no contexto atual? Qual a relação entre as alteridades e a literatura? Penso que a reflexão sobre a alteridade é urgente no mundo todo, mas principalmente em países como o Brasil que, apesar de viver numa democracia, é palco de violações contra uma maioria excluída do sistema hegemônico. A Literatura, dentro desse contexto, representaria a possibilidade de espaço de linguagem em que é sempre o outro que vem dizer. E esse outro é o que se faz ouvir como uma forma de experiência. Nas últimas décadas não se pode subestimar a importância da escrita dos sujeitos discriminados, excluídos nas sociedades ditas civilizadas, convertidos nos “outros”, seja pela classe social, condições físicas, raça, religião ou outras idiossincrasias. Reflexões sobre alteridade aparecem como respostas que buscam construir novos sentidos.

 

É dentro dessa perspectiva que emerge o texto dramático Engravidei, Pari Cavalos e Aprendi a Voar sem Asas, da escritora Cidinha da Silva. Aqui a autora, através de uma interpretação outra da diferença, marca a alteridade pautada por gênero, cor, memória e afetos correlatos.

 

 

O texto dramático de Cidinha, encenado pelo grupo de teatro paulistano Os Crespos, abre com a imagem de cinco atrizes sentadas no proscênio, de frente para o cenário, esperando a entrada do público. Elas usam apitos para indicar o 3° sinal. No cenário vê-se escrito: “Engravidei e Pari Cavalos, Pari com força, Pari sem dor. Pari entre um sonho e outros. Depois virei outra pessoa. Em respeito a mim mesma, Aprendi a voar sem asas. Maria Tereza”.

 

O texto apresenta um pequeno recorte, mas significativo, da vida de cinco mulheres negras que são acometidas pela violência física e moral e pela solidão gritante que pulsa em seus corações e corpos.

 

A história tem como cenário um prédio de dois andares, um bar e um salão de cabeleireiros na cidade de São de Paulo. As personagens não dialogam entre si, o prédio é uma alegoria de qualquer grande cidade brasileira, onde tudo se cruza, mas pouca coisa conversa. O texto não é dividido em atos, quadros ou fragmentos, mas sim em movimentos, ao todo são quatro. É interessante pensar que “movimento” significa ato de mover ou se mover, mudança de lugar ou posição. Aristóteles define “movimento” como passagem de potência a ato, distinguindo o movimento como deslocamento no espaço; como mudança ou alteração de uma natureza; como crescimento e diminuição; e como geração. As cinco mulheres do texto são mulheres furações que, a maneira de cada uma, movimentam/mudam o viver; agem potencializando a própria existência. Tais mulheres não têm nome próprio, são identificadas a partir do seu trabalho e condição social, uma estratégia de construção textual, uma vez que nomear restringi, individualiza, e o que o texto de Cidinha da Silva pretende é ser uma ferramenta coletiva de resistência, ampliar o discurso. A Dona de Salão de Cabeleireiros, A Puta, A Princesa do Carnaval, A Alcoólatra ou A Moradora de Rua pode ser qualquer mulher, principalmente ser for negra.

 

 

No 1º movimento ocorre uma espécie de apresentação do lugar de fala das personagens, o que chama atenção logo de início é que tais apresentações-memórias são feitas pelas próprias protagonistas, misturando a primeira e a terceira pessoa do singular, num jogo de aproximar versus distanciar, quase que dizendo: “Eu sou A Puta, A Alcoólatra ou A Princesa do Carnaval, mas poderia ser Ela ou Você”.

 

“AS MARCAS DA VIDA CONSTITUEM NOSSA MEMÓRIA AFETIVA”

Dona do Salão de Cabeleireiros: é uma empreendedora que está abrindo o terceiro salão. Filha de pai preto e mãe branca, desde pequena teve os seus cabelos alisados para ser impedida de enxergar sua negritude. Deseja e está à procura de pessoas, embora com mulher sente que tem mais carinho e conversa. Uma mulher carente de amor, que ama.

 

A Puta: tem 32 anos, 8 filhos e se tornou prostituta porque encontrou na profissão a alternativa digna para criar seus filhos sem que lhes faltasse comida. O marido nunca a beijou na boca. Ele foi embora com a vizinha branca de 18 anos. A Puta não ama ninguém, só os filhos. Amor para ela é ilusão de novela das 9. Uma mulher carente de amor, que ama.

 

 

A Princesa do Carnaval: Morenona gostosa que deseja sair da quebrada e morar em um lugar bom. Engravidou de um homem, fez muita trança para conseguir dinheiro e abortar e pegou uma infecção horrorosa no “hospital” em que fez tal procedimento. Jurou para si mesma que não seria uma princesa de areia. Uma mulher carente de amor, que ama.

 

A Alcoólatra: Não sabe se o que doía mais era o abuso do pai ou as surras da mãe. Foi para o crime para preencher o vazio dentro de si. Largou a droga e o crime, mas começou a beber para suportar o vazio. Teve uma mulher – amor delicado – que a abandonou por causa do vício, apesar de amá-la. A única filha e a ex-mulher a visitam uma vez por mês. Uma mulher carente de amor, que ama.

 

 

A Moradora de Rua: Aos 15 anos escolheu o seu próprio nome, Darlene Glória – em homenagem à diva do cinema-, pois não gostava do nome que sua mãe lhe tinha dado. Desde criança tinha o hábito de tomar banho para ver se a tristeza saía de sua pele. Tristeza da fome, de ser abusada pelo tio e de não ter amor de mãe. O amor para ela é muita mágoa, violência do sistema. Uma mulher carente de amor, que ama.

 

As histórias dessas mulheres são apresentadas a partir de uma construção alternativa da memória, traumática muitas vezes, em que a força do testemunho coloca em cena uma produção que não descarta de modo algum o resgate da experiência, bem como o sentido político dessas enunciações na construção de uma nova axiologia.

 

 

“Meu filho não parava de chorar, ele deu uma bordoada no menino e ele calou. Eu voei pra cima dele, azul de ódio, mas aí fui eu que levei outra bordoada e fiquei tonta e o home me “estrupou”. Nem sei se o menino viu. Eu não vi mais nada, o “nol” apertava meus olhos. Aquela lembrança toda, meu tio, o esposo da minha mãe, o homem branco. Acordei com o menino lambendo o sal da minha cara, chupando a maça do meu rosto, comendo o gostinho dela. O home tava sentado, engraxando sapato e disse que tinha comida no fogão, que eu e o menino pudia comê. Cumemo a panela toda. O home falô que só precisava fazê com força da primeira vez, porque ele ficava doido demais com o cheiro de cadela preta largada na rua”. (Trecho de Engravidei, Pari Cavalos e Aprendi a Voar sem Asas)

 

“(…) sempre soube que era negra. Ninguém a deixou esquecer. Quem é que a deixaria esquecer? Ela aprendeu a amar no lixo, ela é a outra face do lixo. Seu amor veio do lugar de quem não tem amor nenhum. Ela não é uma pessoa doce, sempre foi dura, verdadeira. Quando a sociedade achou que ela era um lixo, ela se tornou um ser humano. O lixo reciclou sua vida, suas idéias”.

 

De acordo com Pierre Nora, a memória é “um elo vivido no eterno presente (…) porque afetiva e mágica, a memória não se acomoda a detalhes que a confrontam; ela se alimenta de lembranças vagas, telescópicas, globais ou flutuantes, particulares ou simbólicas, sensíveis a todas as transferências, cenas, censuras ou projeções”. Essas cinco mulheres têm seus corpos como depósito da memória, repertório de conhecimento incorporado, invocado pela dor, gestos, músicas e lembranças traumáticas. Elas ligam o profundamente privado com as práticas sociais. A memória aqui é altamente eficiente pois, trabalhando em conexão com outras memórias, funciona no agora.

 

Assim, a potência dessas cinco mulheres, juntamente com a capacidade de movimento/transformação/ato, desafia a impressão de que o indivíduo é um ser estável, alheio ao que acontece à sua volta. De acordo com Diana Taylor, o corpo no âmbito da memória incorporada é sujeito de mudança – no texto, apesar das adversidades, Cidinha da Silva ressignifica o percurso das personagens: A Puta constrói sua casa e se liberta do marido; A Princesa do Carnaval bota um sorriso no rosto e não é mais uma princesa de areia; A Alcoólatra entrou para um grupo de apoio e a cada dia comemora o fato de estar limpa; A Dona do Salão de Cabeleireiros faz a cabeça de várias negras para que elas se sintam livres com a beleza que lhes foi dada; e a Moradora de Rua:

 

“(…) sempre soube que era negra. Ninguém a deixou esquecer. Quem é que a deixaria esquecer? Ela aprendeu a amar no lixo, ela é a outra face do lixo. Seu amor veio do lugar de quem não tem amor nenhum. Ela não é uma pessoa doce, sempre foi dura, verdadeira. Quando a sociedade achou que ela era um lixo, ela se tornou um ser humano. O lixo reciclou sua vida, suas idéias”.

 

 

E a insistência no corpo é porque é impossível pensar a memória e a identidade como desencorporadas, pois “os corpos que participam da transmissão de conhecimento e memória são, eles mesmos, o produto de determinados sistemas taxonômicos, disciplinares e mnemônicos”. O gênero também determina a maneira como esses corpos participam desse processo, uma vez que o “corpo é mapeado por práticas de identidade individual e coletiva racializadas e marcadas pelo gênero”. Nesse sentido, ser mulher negra aponta um lugar de fala e sinaliza, de maneira combinada, gênero, raça e posicionamento socioeconômico e cultural de limiaridade. Qual é o lugar da mulher negra na sociedade? Além das questões sociais que inevitavelmente o texto trás, Cidinha da Silva aborda uma pauta, também social, que é a afetividade soterrada das mulheres negras. Diria que, além do aspecto sociocultural, a solidão e a afetividade de tais mulheres é uma questão de saúde pública: são essas mulheres que, com a autoestima baixíssima, são afligidas pela depressão e por outras doenças de caráter psicológico e são marcadas pelo celibato definitivo, que as torna doentes na alma e no corpo.

 

Nesse sentido, as cinco mulheres do texto dramático, apesar das individualidades, falam todas desse lugar de solidão. Todas elas querem ser afetadas pela delicadeza do amor, hetero e/ou homoafetivo, não importa. O que está em jogo é a realização do afeto, o que é cada vez mais difícil para a mulher negra.

 

Solidão todo mundo passa. Homem, mulher, preto ou branco. Sim, todo mundo passa, mas a dupla invisibilidade da mulher negra – por ser mulher e negra – em nossa sociedade (sem falar das travestis e das transgêneros) a coloca num lugar de quase eterna espera do amor. A mulher negra é preterida tanto pelos homens negros quanto pelos homens não negros. O homem negro, a grosso modo, independente do nível de escolaridade e posição social, ainda tem registrado a velha máxima de que é preciso “branquear” os descendentes, por isso a escolha de uma mulher não negra ou que não é tida socialmente como tal. Além do “branqueamento” da prole, uma mulher não negra legitima, na cabeça desse homem, uma mudança de status quo. Já para os homens não negros, também de maneira geral, a mulher negra está no lugar do fetiche, do gozo, do prazer carnal, do carnaval, do relacionamento flutuante, na calada da noite, em que um amanhecer juntos, abraçados é quase impossível.

 

“O beijo da novela nos restituiu a humanidade, o desejo. Não é ópio, é sonho de padaria, espelho da realidade forjada que não nos reflete. O beijo da novela é o doce que se pode comprar clicando o power da TV”, diz Cidinha da Silva.

 

E o que resta a essas mulheres que desde cedo aprenderam que era “importante vestir o branco sagrado do matrimônio, só não sabiam que o vestido não era feito para os seus corpos. Como se ao vesti-lo sujassem de preto a cena da união? Definitivamente, não serviam para casar”. A essas mulheres resta a possibilidade de oferecer meios dignos de sobrevivência para os seus filhos e filhas, de reacender a chama da vida, mas o amor é cada vez mais distante e quase impossível. Dos sonhos despetalados, elas recolhem os pedaços, secando o suor e ressignificando as dores.

 

Essas mulheres negras, apesar de serem as maiores vítimas do feminicídio, serem a grande maioria se prostituindo por pequenos valores, as maiores vítimas do aborto inseguro, criarem os filhos e filhas sozinhas, serem maioria em celibato definitivo, sobrevivem para nos transmitir suas vivências e de tanto sobreviver se reinventam. Viver e ser feliz para a mulher nessas condições é um ato revolucionário.

 

 

Assim, parir cavalos e voar sem asas funciona como um conceito epistemológico alternativo, essa sequência de significantes produz uma maneira outra de ler a performance do corpo negro feminino (interpretação outra da diferença), que fala do sagrado, do alimento, da força e da recriação. Engravidei, Pari Cavalos e Aprendi a Voar sem Asas vem dos versos do poema de Maria Tereza Moreira, poeta negra paulistana, falecida em 2010 e homenageada por Cidinha da Silva e pela Cia. Os Crespos. Esses versos, assim organizados, dizem o que normalmente não está dito e performatizam uma força ancestral que explica a potência da cultura negra da Diáspora que vive, se recria e voa constantemente sem asas.

 

 

 

 

 

 

 

 

SORAYA MARTINS é mestre em Teoria da Literatura do Programa de Pós- Graduação em Letras: Estudos Literários, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Graduada em Letras (modalidade: licenciatura dupla, habilitação: Português/ Italiano) na Universidade Federal de Minas Gerais, com experiência acadêmica na Università di Bologna (Itália) e formada no Curso Técnico Ator em Nível Médio do Teatro Universitário da UFMG. Desde 2011, atua no cenário artístico mineiro como atriz e pesquisadora do teatro afro-brasileiro e tem em seu currículo trabalhos realizados junto a diversas companhias, entre elas Cia. Candongas e Outras Firulas, Grupo do Beco e Cia. Caixa de Fósforos.

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.