fevereiro de 2015

ÂNGELA: A HISTÓRIA DE UMA ESTRELLA NEGRA

Sidney Santiago Kuanza

 

 

 

fotos MANDELACREW e ACERVO PESSOAL

 

 

 

 

 

Ângela Corrêa poderia facilmente ser definida por sua leveza e graça. É dessas mulheres que carregam consigo certa majestade, um estado de soberania, imponência. E foi, também, em razão destes atributos que a paulistana nascida no bairro da Freguesia do Ó ganhou o mundo. Desde cedo teve que se acostumar com a “fama”, uma vez que seu nome de batismo Ângela Maria – homônimo da famosa cantora e atriz brasileira – provocava curiosidade e expectativas por onde passava: “Eu era uma Ângela Maria que não cantava, mas toda vez que dizia meu nome era um acontecimento”, lembra.

 

Das primeiras influências artísticas que embalaram sua infância, recorda-se com alegria das radio-novelas e das interpretações – carregadas de romantismo e dramaticidade – protagonizadas por sua mãe, de voz privilegiada, quando esta entoava repertórios de Ângela Maria e Dolores Duran.  “Minha mãe cantava… e chorava. Com oito anos eu já sofria como uma mulher, embalada pelas de dores de amor”.

 

Filha do casal Honofra Rodolfo Corrêa, a dona Dora, uma corista que chegou a integrar o grupo de Ataulfo Alves e suas Pastoras, e Carlos Corrêa, sapateiro com sapataria própria (localizada na rua Amaral Gurgel, no centro da cidade), e que nas horas vagas atuava como figurante, chegando a participar de grandes produções do cinema nacional. A mais importante delas Sinhá Moça, longa metragem de 1953, produzido pela Vera Cruz e dirigido por Tom Payne, e que teve como destaque a atuação da atriz Ruth de Souza.

 

Aos nove anos, a então pequena Ângela já escrevia suas próprias novelas e chamava os vizinhos para interpretá-las. Foi neste ambiente que a terceira filha de uma família de seis irmãos cresceu. Um lar próspero, erguido com muito trabalho e suor do pai e da mãe; uma vez que esta, com a chegada dos filhos, se viu obrigada a renunciar a vida artística para dedicar-se ao lar e a serviços externos como passadeira. Vivendo entre os bairros da Freguesia, Limão e Tremembé, todos na zona norte da cidade de São Paulo, Ângela aponta interessantes passagens da sociabilidade negra paulistana durante os idos dos anos 1960, algumas delas protagonizadas por sua própria família, festeira e frequentadora dos bailes promovidos pela comunidade negra paulistana, entre eles os famosos concursos da Bonequinha do Café, que objetivavam valorizar a beleza negra feminina.

 

“Papai dizia: ‘vocês preferem uma casa com escada, ou uma casa com banheira?’. Nós comíamos bem, vestíamos bem… Tínhamos a casa mais arrumada do bairro e recebíamos nossos amigos nela. Entre eles, os negros do centro da cidade. As mulheres sempre com coques e bem vestidas. Os integrantes do conjunto Originais do Samba eram figurinhas carimbadas em nossas festas. Nos bailes, as negras usavam casacos de pele, e os negros que não tinham carro desciam um pouco antes do local do baile e tomavam um taxi”.

 

 

A MODA E O DÉBUT

 

No início da adolescência, Ângela chegou a nutrir o desejo de ser dentista. Achava chique a ideia de ter um consultório e vestir avental. Porém, devido ao porte esguio e beleza ímpar, era frequentemente incentivada por populares, amigos e familiares a seguir outra trajetória: “Você tem que ser manequim!”, diziam. Até que um dia, por volta dos 17 anos, ao frequentar o Bar Sem Nome, que ficava na Rua Dr. Vila Nova, na Vila Buarque, foi abordada por um estilista francês recém-chegado ao país que a convidou para ser modelo de testes. Depois deste oportuno encontro passou a integrar o time de manequins da Têxtil Bayard (fábrica de roupas ainda em atividades no bairro do Bom Retiro), trabalho remunerado e com contrato.

Passados alguns meses já abrilhantava as passarelas brasileiras dentro das principais semanas de moda do país, e como destaque nos desfiles televisionados pelo programa Hebe, da apresentadora Hebe Camargo, na TV Bandeirantes. Desta época, início dos anos 1970, guarda a triste imagem de seu pai assistindo a sua estreia na então Semana Internacional de Moda no Brasil do lado de fora, olhando o sucesso da filha pelas vidraças do Clube Paineiras do Morumby.

 

 

AS LUZES DAS RIBALTAS 

 

Com uma vida repleta de causalidades, em 1971, durante sua primeira visita a boate Café Concerto, de Ricardo Amaral – conhecido como O Rei da Noite, é apresentada ao famoso radialista e empresário carioca Oswaldo Sargentelli – que se definia como mulatólogo, mas que ainda hoje é considerado por muitos setores do movimento negro como uns dos principais apropriadores da cultura negra brasileira. Seu nome, no entanto, continua a figurar no hall dos grandes divulgadores do samba. Na ocasião do encontro, encantado com a beleza e o corpo escultural da jovem Ângela, Sargentelli a convida, na mesma noite, para integrar o espetáculo Oba Oba, onde inaugurou o quadro Balé nas Pontas.

Neste período conciliava a carreira de modelo, os shows e as participações nos humorísticos Viva o Gordo e Planeta dos Macacos, ambos da Rede Globo de Televisão. Mas é com sua entrada no espetáculo Brasil Tropical entre os anos de 1972 e 1973, com direção de Edvaldo Carneiro, (o Camisa Roxa), um dos remanescentes do Teatro Castro Alves, que a vida de Ângela ganharia novos contornos. Depois de passar por um teste coordenado por Walter Ribeiro (grande expoente da dança negra no país ao lado de Mercedes Baptista), ela de fato corre o mundo. Brasil Tropical viajou por diversos países da Europa e foi escolhido para substituir o espetáculo de ninguém menos que Josephine Baker, conhecida como Vênus Negra, e grande vedete do Teatro de Revista francês. Na época, Bake estava em cartaz com um revista retrospectiva no Théâtre Bobino de Paris, porém, em  08 de abril de 1975, foi encontrada desfalecida, e a então direção artística do Bobino procurava por uma companhia negra que pudesse cumprir o restante da temporada. Brasil Tropical foi adaptado e ficou um ano em cartaz. Já com residência fixa na capital francesa, onde viveu entre meados de 1974 e 1979, Ângela retoma sua carreira de modelo realizando desfiles e campanhas publicitárias pela Ásia e Europa, vestindo marcas como Yves Saint-Laurent, Paco Rabanne e Jean Patou. Seu retorno aos palcos aconteceu como corista no Teatro Moulin Rouge, na Revista Fo Le Man, estrelada pela grande vedete da Martinica Lizette Maridor.

 

 

NOVOS VENTOS, OUTROS DESAFIOS

 

É no ano de 1988, pelas mãos do diretor de telenovelas Walter Avancini e supervisão técnica de Joel Rufino dos Santos, que o ímpeto dramático e a capacidade dramatúrgica de Ângela foram exigidos. Com a árdua tarefa de dar vida a protagonista Iná Inerã, uma quilombola rebelde com aguerridos sonhos de liberdade, a minissérie global Abolição (1988) mostrou a vida desta mulher e os fatos que culminaram na assinatura da Lei Áurea, em 13 de maio de 1888.

 

Na sequência deste trabalho viéram outros folhetins que também tiveram a temática da escravidão como eixo central: Em 1989, Pacto de Sangue (novela que tematizou o centenário da abolição e a Proclamação da República), na Rede Globo e, em 1990, Escrava Anastácia (minissérie que mostrou o tráfico negreiro seguindo a personagem Ojú Orum), na Rede Manchete. Em paralelo ao trabalho na televisão Ângela continuava estampando campanhas publicitárias para as marcas Tangue e Pernambucanas. Deste período, no auge de seu sucesso como atriz, relembra com certo constrangimento de um convite feito pelo Jóquei Clube de São Paulo, que queria batizar uma égua com seu nome. Discreta, ela preferiu não aceitar tal homenagem.

 

Os encontros com os grandes homens da televisão brasileira Herval Rosano, Henrique Martins e Walter Avancini, foram presentes da vida e se constituíram como sua grande escola. Com uma carreira muito distinta e sólida, Ângela pôde dar vida a grandes personagens que agiam, com nome e endereço. Personagens negras que nunca estiveram na subalternidade, tão comum a dramaturgia e ao áudio visual brasileiro.

 

Em 1993, fez um de seus últimos trabalhos na Rede Globo, a série Caso Marli, com direção de Tizuka Yamasaki, o trabalho foi proibido pela Polícia Militar que na ocasião estava completamente desmoralizada com a repercussão internacional da Chacina da Candelária. Na série, Ângela interpretou Marli, personagem real que teve o irmão assassinado em um Morro pelo polícia militar carioca. Destemida ela reconheceu os policiais e virou símbolo da luta contra o genocídio negro pelo estado brasileiro, seu codinome passou a ser Marli Coragem. A série, no entanto, nunca foi ao ar.

 

Na televisão sua carreira seguiu por passagens entre a Rede Record e o SBT, com trabalhos nas novelas Chiquititas (SBT, 1998), Revelação (SBT, 2008) e Vidas Cruzadas (Record, 2000).

 

Premiada no cinema atuou em dez longas metragens com destaque para A Nuvem (1992), de Fernando Solanas, Carandiru (2003), com direção de Héctor Babenco, e Garotas do ABC (2003), de Carlos Reichenbach. Foi no cinema, aliás, que conheceu Fernando Solanas, afamado cineasta, produtor e atual Senador argentino com quem divide parcerias artísticas, e está casada há vinte anos. Aos 60 anos de idade e atualmente vivendo entre as cidades de Buenos Aires e São Paulo, a artista e mãe de Flecha do Arco-Íris (fruto do seu relacionamento com o cantor e compositor afro-gaúcho Luís Vagner) prepara uma exposição para 2015 com seus desenhos gráficos. Segue também com seus estudos sobre a influência africana na cultura Argentina e está produzindo uma peça sobre a doença de Alzheimer, com texto da paulistana Ana Maria Dias.

 

 

 

ISSO (TAMBÉM) É ÂNGELA MARIA CORREA

 

NA TV

2008 – Revelação (SBT)
2005 – Carandiru, Outras Histórias (Rede Globo)
2005 – Malhação (Rede Globo)
2004 –  Seus Olhos (SBT)
2001 – Amor e Ódio (SBT)
2000 – Vidas Cruzadas (Rede Record)
1998 – Chiquititas (SBT)
1996 – Amor Sagrado (Telefe, Argentina)
1996 – O Campeão (Rede Bandeirantes)
1993 – Guerra sem Fim (Rede Manchete)
1991 –  Filhos do Sol (Rede Manchete)
1990 –  Mãe de Santo (Rede Manchete)
1990 – Escrava Anastácia (Rede Manchete)
1989 – Pacto de Sangue (Rede Globo)
1988 – Abolição (Rede Globo)

 

 

NO CINEMA

2008 – Amygas y Amigos
2007 – Inês
2006 –  Sólo Dios Sabe
2003 – Carandiru
2003 –  Garotas do ABC
2001 – Afrodita, El Sabor Del Amor
1998 – Gasoleros
1998 – La Nube
1992 – El Viaje

 

 

 

A entrevista que resultou neste texto aconteceu em meados de outubro de 2014, em uma rápida passagem da atriz por São Paulo em razão das filmagens de “Apart Horta”, telefilme sobre sustentabilidade dirigido por Cecília Engels.

 

 

 

 

 

Sidney Santiago Kuanza

SIDNEY SANTIAGO KUANZA é ator e membro-fundador da Cia. Os Crespos (SP), pesquisador e estudante de Sociologia e Política (FESPSP).

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.