fevereiro de 2019

REZA DE PRETX: UM ESPETÁCULO CÊNICO-SONORO-DANÇANTE SOBRE AS CONDIÇÕES DA MULHER NEGRA NAS PERIFERIAS DAS CIDADES BRASILEIRAS

Jorge Vasconcellos e Leonardo Moraes

 

 

 

 

 

 

fotos claudia ferreira

 

 

 

 

 

 

A população da cidade do Rio de Janeiro experimenta, nos últimos anos, a profusão de produções artísticas[1], cujo protagonismo em diversificadas esferas tem sido, para ira dos racistas, o da negritude.

 

Esse apontamento talvez não seja o real sentido e justificativa que aqui utilizamos para defender o que queremos dizer sobre as muitas produções que atualmente experienciamos em museus, galerias, salas de espetáculos e teatros. Porém, compreendemos que apontar esse fato produz agenciamentos, traduções e olhares à produção artística da negritude no Brasil. A arte cênica que nos debruçamos a conversar nesse texto, em certa medida, é uma herança das ações afirmativas, tão demandadas pela população negra brasileira, entre os anos 1960 e 1990. Hoje podemos experienciar o lugar do protagonismo artístico, mesmo que ainda pairando sobre as nuances do debate étnico racial. Debate esse, aguçado pelas linhas guias que apresentam e demandam reconfigurações e reparações históricas.

 

Em maio de 2018, completou-se um ciclo de 130 anos de abolição da escravatura no Brasil. Esse marco legitima a necessidade de um olhar mais amplo e específico ao rol de produções que artistas negros e negras vêm criando e anunciando questões, principalmente relacionadas a negritude, que ainda vive sob a dinâmica do silenciamento, da invisibilidade e da subalternidade sedimentada no/pelo Estado.

 

Reza é um espetáculo poético-musical encenado pela recém-criada companhia de jovens artistas negrxs, Orquestra de Pretxs Novxs, sob a concepção e adaptação/direção de Carmen Luz. O espetáculo nasce no meio da polarização da violência, do sexismo e do racismo acirrado no Brasil. Um exemplo disso é a eleição de um presidente racista, xenófobo, LGBTQIfóbico, que assina a pasta perversa e pérfida da sociedade racista brasileira, instituindo mais uma vez o lugar menor, na dinâmica e na cadeia de inferiorização da negritude.

 

 

 

Dito isso, o debate sobre ancestralidade, mobilidade, inferioridade marcados pelo recorte de gênero, classe e raça – dado por um viés preto – é eixo central no trabalho da Orquestra dos Pretxs Novxs, no espetáculo Reza. Um teatro musical que condiciona em seu enredo notas da vida dura e dolorosa que a pretitude experimenta cotidianamente.

 

Reza é fundamentação do paradoxo de quem pode viver e de quem deve viver. Necropolítica, no sentido aquele que nos tem ensinado o filósofo camaronês Achille Mbembe, em seus livros e artigos. E é justamente sob este signo que o espetáculo se propõe a contar a história de Reza. Espetáculo encenado, sonorizado e dirigido por corpas/corpos negras/negros, que conta a história sem o risco de ser a única contada, uma história plural que mostra o dia a dia de quem decide não ser mais estatística.

 

Nas muitas produções visuais, sonoras, corpóreas e performáticas, ou não, potencialidades para além das narrativas contadas pela branquitude, revelam-se as magnitudes de experiências que demonstram a rica fonte de saberes e conhecimentos que advém da negritude. Essas experiências estético-políticas, a contrapelo do racismo estrutural, possuem arcabouço poético e afetivo que legitimam o lugar de fala daqueles e daquelas que experimentaram e experimentam, ainda, na contemporaneidade, o doce amargo da violência que se produz em detrimento da efetivação do “racismo nosso de cada dia”.

 

“Reza é fundamentação do paradoxo de quem pode viver e de quem deve viver”.

 

Temos ocupado, nós: pretas e pretos, os muitos espaços que antes eram somente da branquitude, como forma de resistência e de reinvenção dessas práticas/lugares artísticos. O desenho desse mosaico de afrobrasilidades artísticas articula o que há de mais singelo ao que se quer e pensa como futuro. Configura-se, nessa noção, o espaço de mediação de vozes múltiplas no bojo de elementos que carregam a marca diaspórica como elemento de diálogo estético-político, que conta como contra-narrativa a história real da negritude, em forma de Arte. Dessa maneira, se possibilita a revelação de cenários estéticos cujo percurso poético vivido na condição de discriminação racial, intolerância religiosa e desigualdade social, expurga o que há de mais doloroso e também insurgente que a negritude possui. Nesse sentido, a memória vista cenicamente aciona, no emaranhado da descolonização, a experiência da diversidade de memórias vividas e estruturada em dinâmicas muitas.

 

Partindo de uma sociedade a qual o matriarcado seria esperado e por nós desejado, o lugar da mulher preta favelada, mãe solteira, dona do barraco e da “cabocla” protetora, resistente à condenação do corpo negro (tal qual define Fanon em seus Condenados da Terra), empregada pela branquitude, conduz e desenha o percurso dessa história. A história da subalternização dos corpos pretxs, especialmente da mulher preta. As miríades de Pérolas de nosso país. Entretanto, Pérola é única e plural a um só tempo. Matriarcado que, sucumbido pelo patriarcado, cuida, ama e mata Lavanda(s).

 

[2] Dentre os espetáculos de Teatro, Teatro-Dança e Musicais produzidos, escritos, adaptados e encenados recentemente no Rio de Janeiro por artistas negrxs, destacamos: O pequeno príncipe negro; Contos negreiros do Brasil; Lívia e Boquinha… assim surgiu o mundo, ambos do Coletivo Preto; Traga-me a cabeça de Lima Barreto, da Cia dos Comuns; O Encontro – Malcolm X e Martin Luther King Jr.

 

“Enquanto o conto de Allan da Rosa prima por explorar certos elementos psicológicos e sociológicos do modo de vida de uma mulher da periferia paulistana, Carmen Luz escolheu abordar os elementos propriamente afetivos das mulheres negras periféricas da cidade do Rio. Isso sem, evidentemente, negligenciar os muitos aspectos sócio-políticos, raciais e sexuais, dessa política dos afetos das mulheres negras cariocas”.

 

Reza é obra de singular potência. O espetáculo apresenta as vicissitudes, agruras, lutas, resistências e resiliências cotidianas do povo preto da(s) periferia(s) de uma grande cidade brasileira, aqui, no caso, o Rio de Janeiro, a partir da vida de uma/três mulher(es) negra(s): Pérola(s). O espetáculo que não se pretende propriamente um musical, no sentido que o público tem assistido nos últimos anos entre nós, conseguiu uma inflexão bem particular que articula o engajado teatro musical negro dos anos 1950/60 com o teatro-dança contemporâneo. E isso, com certeza, não é pouca coisa. Afinal, articular em um mesmo espaço cênico inúmeras manifestações de dança que atravessam os corpos negrxs periféricos da cidade carioca, como o funk, com a dança afro, com dança de rua e com canções inspiradas, mostra algumas das virtudes de Reza.

 

 

 

 

Reza é um coro cênico-sonoro-dançante sobre a condição da mulher negra nas periferias das grandes cidades brasileiras. O Rio foi a cidade que Carmen Luz escolheu para adaptar o conto do escritor paulistano Allan da Rosa, uma verdadeira adaptação fiel, traidora e potente do excelente texto que deu ensejo ao espetáculo. Tratou-se, todavia, de uma relação que tergiversa entre a fidelidade e a traição, justamente porque na passagem da literatura à cena, da voz narrativa à voz dramatúrgica, da cidade de São Paulo à cidade do Rio de Janeiro, deu-se uma viragem na proposta de Reza de Mãe à Reza. Enquanto o conto de Allan da Rosa prima por explorar certos elementos psicológicos e sociológicos do modo de vida de uma mulher da periferia paulistana, Carmen Luz escolheu abordar os elementos propriamente afetivos das mulheres negras periféricas da cidade do Rio. Isso sem, evidentemente, negligenciar os muitos aspectos sócio-políticos, raciais e sexuais, dessa política dos afetos das mulheres negras cariocas.

 

 

 

 

 

Reza pulveriza/multiplica Pérola, a personagem atratora/central de Reza de Mãe, em várias Pérolas: uma Pérola Negra, uma Pérola Funk, uma Pérola Trans. Desdobrada hetereronimicamente em PérolaS. Mulher com vagina, mulher com pau. Verdadeiro achado dramático, colocando em questão determinados marcadores heteronormativos de gênero ao fazer com que um homem interprete uma das Pérolas. Dispositivo cênico narrativo também utilizado na concepção da(s) personagem(ns) Lavanda, filha(s) de(das) Pérola(s). Já que uma das Pérolas também é interpretada por um ator, esse dispositivo acaba por se tornar extremamente relevante no processo dramático, pois no espetáculo (como na vida) estamos diante dos ataques sexistas, tanto sofridos por mulheres (quase sempre jovens) quanto por homens (quase sempre pretos). Afinal, sexismo e racismo são, de fato, filhos do patriarcado… essa parece ser a posição tomada por Reza, a qual concordamos plenamente.

 

 


REZA
 APONTA FLECHAS E MUITAS MIRAS


Sofisticadamente, a montagem de Reza utiliza de um universo acústico, que rompe com a estrutura do gênero sonoro confortável. Funk, pagode, charme, entre outras nuances musicais recriadas/inventadas pelo diretor musical e ator Andre Muato, apontam, desse modo, o aspecto inovador da cena que realinha no mesmo patamar das “ditas sonoridades aceitas”, a composição desse musical que muito fala de pretitude.

 

Nesse universo composicional, a utilização de dinâmicas diferenciadas em que vozes e instrumentalizações, falam, cantam e exprimem ecos de uma dinâmica outra. Assim, pauta-se uma potencialidade que revela a criatividade e a experiência com outras proposições sonoras. Proposições que obedecem as perspectivas criativas de texto/som, cujo ensejo desse processo está em conduzir expectadores a um envolvimento com uma produção musical que não se dinamiza no nosso dia a dia.

 

Esse aspecto acústico que Reza congrega, dinamiza de alguma maneira um interpelo ao que entendemos como música, imposto e construído na Modernidade, em que a produção eurohegemônica ainda permanece determinando os processos criativos sonoros, bem como o registro desses processos. Assim, compreendemos que espetáculos como esse possibilitam a aproximação com um universo outro, no qual sonoridades revelam e nos conduzem a experimentações diferenciadas daquelas que até então entendíamos como música.

 

 

                               

 

 

Em outra chave, defendemos que a corporeidade da juventude preta é mostrada para além dos clichês em Reza. O trabalho do/de corpo no espetáculo procura escapar das expectativas que nossa sensibilidade e subjetividade se constituem. Trata-se, queremos crer, de fazer com esses corpos/corpas negrx se orientassem a partir de outras partituras que não aquela da branquitutde. Entendemos que a Orquestra de Pretxs Novxs, sob a direção de Carmen Luz, o fez.

 

Assim, para finalizar e convidar os/as leitores/as a fruir a Reza de Pretx que esse espetáculo, sobre o qual escrevemos, denuncia inúmeras questões e intempéries que sofremos (nossa gente: xs pretxs) em nosso cotidiano. Questão salarial, da moradia, da mobilidade urbana e da intolerância religiosa, entre outras; são expostas como ponto de partida à reflexão e como linha de fuga a tudo que está posto, tentando sensivelmente redesenhar pelo canto, pela dança, a dinâmica perversa da sociedade. Reza apresenta essas questões de nossa atualidade sem temor ou tremor.

 

Apontamos essas questões, como chave de leitura do espetáculo, justamente por compreendermos a máquina moedora de corpos negros que, nas traduções dos significados impostos à negritude, se legitima na condução coercitiva do capitalismo e insurge obrigatoriamente à preponderância do lugar que esses corpos devem ocupar. Dominação e repressão são armas que esse espetáculo mostra. “Não esculacha não ô seu polícia” é o que todo/a jovem negro/negra pede para não acontecer, na sua vida. Esse grito ecoa na favela, onde pretx é tratado como nada… e na pista, sendo entendidx como bandidx, partindo da célebre frase que “bandido bom é bandido morto”. Necropolítica.

 

 

“Reza de Mãe”, livro de contos de Allan da Rosa, originalmente lançado em 2016.

 

 

Somos marcados pela maldita herança da inferioridade que subjaz o nosso destino.  Destino esse que condiciona “às pessoas de bem” (pretas) apenas o papelão para dormir durante a semana, pois, com o salário que se ganha, não é possível pagar passagem durante cinco dias na semana, somente a de segunda e de sexta. Esse é o fatídico movimento da galera que pega o negreiro (o busão) “pra lá e prá cá”, para trabalhar na casa da Sinhá, sem nem mesmo “o rango” para se alimentar.

 

De todo modo, com a potência emanada do espetáculo, estamos diante de uma Reza de Pretx a nos alimentar o espírito.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

NOTAS DE RODAPÉ

[1] Dentre os espetáculos de Teatro, Teatro-Dança e Musicais produzidos, escritos, adaptados e encenados recentemente no Rio de Janeiro por artistas negrxs, destacamos: “O pequeno príncipe negro”; “Contos negreiros do Brasil”; “Lívia” e Boquinha… assim surgiu o mundo”, ambos do Coletivo Preto; “Traga-me a cabeça de Lima Barreto” da Cia dos Comuns; “O Encontro – Malcolm X e Martin Luther King Jr.

[2] Exemplificamos: o Teatro Experimental do Negro (TEN), concebido por Abdias do Nascimento; e, a Cia Étnica, dirigida por Carmen Luz.

 

 

 

REFERÊNCIAS

  • FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1968.
  • MBEMBE, Achille. Necropolítica. Biopoder, soberania, estado de exceção, política a morte. São Paulo: n-1 edições, 2018.

 

 

 

FICHA TÉCNICA DO ESPETÁCULO

Direção e Adaptação: Carmen Luz
Elenco: Wal Azzolini (Pérola), Andre Muato (Peão/Cão), Edmundo Vitor (Lavanda), Lorena Lima (Lavanda), Luiza Loroza (PérolaFunk), Leonardo Paixão (Dona PérolaIrina) e Samara Costa (Lavanda)
Músicos: Vinicius Santos (violão, guitarra, bandolim e violino), Júlio Florindo (contrabaixo elétrico e acústico) e Thiago Kobe (bateria, percussão e vibrafone)
Direção Musical e Composições Originais: Andre Muato
Produção: Paulo Mattos e Junior Godim
Coreografia: Cia. Étnica de Dança (Alison Moreira, Amanda Corrêa e Carmen Luz)
Figurinos e Adereços: Marah Silva, Gessica Justino, Iara Neri e Carmina Dellaluccia
Iluminação: Mantovani Luz
Design de Som: Branco Ferreira
Preparação Corporal: Amanda Corrêa, Alison Moreira e Wall Azzolini
Preparação Vocal: Angela Hertz, Luiza Adnet, Luiza Borges
Fonoaudióloga: Ana Calvente
Assistentes de Direção: Amanda Corrêa, Patrick Batista e Alison Moreira
Assistentes de Produção: Leo Paixão, Patrick Batista e Orquestra de Pretxs Novxs
Design Gráfico: Alonso Martinez
Fotografia: Claudia Ferreira e Adriana Medeiros
Vídeo: Carmen Luz e Ronaldo Soares
Costureira: Iara Neri
Parcerias: Caces, Atelier Cretismo
Produtores Associados: Espaço Sequência, Cia. Étnica Produções Artísticas Ltda.
Idealização do Projeto Orquestra de Pretxs Novxs: Andre Muato
Realização: Orquestra de Pretxs Novxs.

 

 

 

 

 

 

Jorge Vasconcellos e Leonardo Moraes

JORGE VASCONCELLOS pai de Valentina, Joaquim e Zoé. Teórico das Artes. Professor Associado da Universidade Federal Fluminense/UFF. Ativista, juntamente com sua companheira Mariana Pimentel/Professora UERJ, do Coletivo de ações estético-políticas 28 de Maio. Autor entre outros de Arte, Subjetividade e Virtualidade: ensaios sobre Bergson, Deleuze e Virilio (2005), Deleuze e o Cinema (2006), Arte, Vida e Política: ensaios sobre Foucault e Deleuze (2010) ............................................................................................................................................................................................................................................................ LEONARDO MORAES filho de Celma Moraes Batista e de Carlos Alberto Batista. Musicista, pesquisador e professor. Atualmente coordena a pasta de Arte Educação e Relações Étnico Raciais, na Gerência de Cultura, na Diretoria de Programas Sociais do Sesc Nacional. É Doutorando em Etnomusicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Música da UFRJ. Atua como docente no Conservatório Brasileiro de Música, na Especialização em Educação Musical. É presidente do Fladem Brasil (2017-2020).

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.