janeiro de 2013

INAICYRA FALCÃO: URDUME E TRAMA DE UMA ARTISTA

Luciane Ramos Silva

 

 

 

 

 

No mês da consciência negra, fervor das ações, encontros,  debates e revides  focados nas questões que instigam e inquietam a realidade da diáspora negra. O Brasil das matrizes africanas, múltiplo em nuances de negritude de norte a sul, revela-se em belezas, sabedorias e profundos desafios em ser negro sem artifícios ou paliativos  e reconhecido como vetor essencial da experiência nacional.

 

A consciência negra é ainda pouco compreendida como reflexão sobre a responsabilidade de uma mudança que não se concretiza apenas na prática do negro, mas de todos brasileiros – o genocídio em curso nas periferias das grandes metrópoles é indício gritante do quanto nosso país retrocede em suas desigualdades.

 

Fomos a Salvador, território de marcantes pisadas negras, orgulhosas e participativas, mas também de inúmeros revezes e contradições, e conversamos  com uma das principais referências no pensamento sobre  corpo, ancestralidade e as dimensões contemporâneas para a educação e a arte. Entre mares avistados da orla de Ondina, cruzamos águas imaginadas e concretizadas na trajetória de Inaicyra Falcão, doutora e livre docente  recém aposentada pelo Departamento de Artes da Universidade Estadual de Campinas, onde lecionou por mais de duas  décadas e permanece coordenando  o grupo Grupo 
Interdisciplinar
de
Pesquisa
Rituais
e
Linguagens,  orientando pesquisadores e fomentando a presença das matrizes africanas na academia  – um universo ainda pouco poroso para os saberes negros e suas formas de expressar, construir e disseminar conhecimento. Vale lembrar que no espaço mais específico da formação em dança  raramente os currículos universitários incorporam as técnicas de matrizes africanas e o estudo de suas linguagens e veredas para o treinamento do bailarino. Dialogando em predominância com as técnicas eurocentradas, o saber fazer das matrizes africanas parece ser ainda “estrangeiro”.

 

Além de  acadêmica, Inaicyra é artista e pesquisadora, percebendo o mundo a partir de diversos prismas –  do sensível, da transformação e do encantamento. Herdeira na sexta geração da familia dos Asipá, uma das linhagens fundadoras do reino de Ketu, atuais territórios do Benin e Nigéria, é filha de Deoscoredes Maximiliano dos Santos, o Mestre Didi, sacerdote, escritor e artista plástico e neta de Maria Bibiana do Espírito Santo, mais conhecida como Mãe Senhora, terceira yalorixá  do Ilê Axé Opô Afonjá em Salvador e uma das mais respeitadas lideranças do candomblé no Brasil. O legado dessas ancestralidades é captado pela artista naquilo que traz de mais precioso para a cultura brasileira – formas de ser, pertencer e conceber o mundo.  Estabelecendo uma distinções daquilo que é “ da porteira para fora” e “ da porteira para dentro” ( metáfora de mãe Senhora, que diz respeito à territorialidade da tradição nagô), Inaicyra recria toda a experiência e lembrança de sua infância, da vida cotidiana em conversas, festas, comidas… cortando búzios ou ouvindo contos.

 

Suas inserções em territórios de tradição yoruba atravessaram o Atlântico desembocando na Universidade de Ibadan, Nigéria, onde obteve o título de mestre em artes teatrais. Suas pesquisas seguiram  ganhando corpo com as experiências no Laban Centre for Movement and Dance Center ( Inglaterra) , no Studio Alvin Ailey ( Nova York)  e finalmente em sua pesquisa de doutorado na Faculdade de Educação da USP quando define o método de trabalho “Corpo e ancestralidade” , desenvolvido junto aos estudantes de graduação e pós graduação do curso de dança da Unicamp e que toma o universo mítico da cultura afro brasileira como referência principal para acessar a ritualização dos gestos e cantos bem como os elementos vivos  nos hábitos alimentares, formas de vestir, pensar e agir que mostram a ancestralidade ,não como algo estritamente ligado ao passado, mas como recriação do vivido.

 

Seu método abriu importantes caminhos para a prática pedagógica valorizadora não só das matrizes africanas, mas do pensamento criativo e da experiência estética que catalisam emoções, memórias e levam a um processo de aprendizagem que recupera, atualiza e potencializa as trajetórias pessoais.

 

Revelando outros tablados para processos de criação assim como para uma formação humanizada a partir da arte, o trabalho de Inaicyra incentiva as práticas artísticas e pedagógicas atentas para os percursos históricos, as mitologias e os atravessamentos da vida contemporânea oferecendo ao corpo potenciais motivos para o ato criador.

 

Suas ações avançam  além do campo das artes do corpo e bailam no universo do canto lírico com seu trabalho Okan Awa – cânticos da tradição yorubá, produzido em homenagem ao centenário de mãe Senhora. Alí  a cantora desenrola as energias presentes nos elementos da natureza, retomando poesias míticas e devolvendo em técnica e emoção toda sua  universalidade.

 

Pessoa que transforma, a professora nos mostra visões arejadas sobre as possibilidades de ler, interpretar e girar com a tradição, percebendo a dança como prática que pode e deve ser reinventada no espaço profano atualizando a experiência simbólica para a sala de aula, incentivando-nos a praticar artes e pedagogias alicerçadas nas cartilhas suadas, de gestos e rodas, das matrizes negras. Cientes de onde viemos, podemos caminhar com o pés firmes  em nossas ancestralidades, aprofundar as raízes e flutuar com galhos que nos levam a todos lugares.

 

Se no imaginário social  brasileiro prevalece a carência, pobreza de valores e toda sorte de miserês acerca das contribuições negras, respondemos com abundância e sabedoria. Louvada seja a fartura, como disse Inaicyra.

 

 

Nestes últimos dias acontece aqui em Salvador uma série de encontros que levantam questões sobre identidade, representação e que questionam as histórias introjetadas e a  responsabilidade de reconstruir essas histórias e elaborar outros discursos.

Pois é… Nunca fui militante, essa coisa do negro e “óh” não sei o que, mas estou consciente, tenho esse compromisso, tanto que meu trabalho sempre veio com esses elementos, especificamente da cultura em que nasci, a cultura Nagô, Yoruba. Quando eu estava na universidade, em meus trabalhos, quando deixavam, quando eu tinha que fazer as coreografias, por exemplo no segundo ano, que aprendemos o negocio do espelho, bloco, aquilo, aquilo outro, eu inventei um mito, uma história de um deus que vinha e aquela comunidade estava morrendo e as pessoas sofrendo e vinha esse deus, botei uma máscara com palhas, quer dizer, porque era o universo que permeava meu cotidiano, de ver as histórias dos livros do meu pai, de ir para o terreiro com a minha avó, isso tudo é o que fica e fica até hoje na minha cabeça, muito  forte. Fora disso eu ia pra escola como todo mundo que vai, quer ver um exemplo que eu acho muito interessante o  Wole Soyinka que vem ai… .Ele fala inglês mais do que o britânico. Quando faz um trabalho, escreve com esse inglês. Agora, é claro que ele faz referências a cultura dele, livros que falam sobre a mitologia, os hábitos. Eu mesma li um livro dele sobre um  rapaz que foi pra Inglaterra e depois quando o pai morreu ele tinha que voltar pra sua cidade natal, assumir o papel do pai e o menino não queria ir, não queria voltar, aquela coisa toda que é da cultura, de você assumir a herança a tradição e tudo mais.. (…) Quanto mais a gente viaja, vive, mais escolhas temos. Imagina se eu pego o eixo de onde eu sou, quem sou e pra onde que eu quero ir.

 

E como que você enxerga a dinâmica das tradições; no seu trabalho existe uma referência bem forte ao conhecimento das sabedorias tradicionais, mas sem perder a conexão com o dia a dia e com as renovações inevitáveis. São inevitáveis, você concorda?

Concordo, não tem como, já é assim. Quando eu era pequena, ia para o terreiro  onde eu aprendi – um aprendizado lúdico, vamos dizer assim, de brincadeira e tal, mas eu tinha que ir pra escola Getúlio Vargas…  de malinha, sentava na cadeirinha e ficava escutando muitas vezes “aí o negro, as raças, negro, raça branca, negro é assim, nariz assim, é isso, é aquilo”, um monte de coisa que eles falavam e eu pensava “eu não vejo isso” , porque o  Axé Opô Afonjá parecia que era uma coisa de outro mundo; aquelas senhoras com anáguas, com aquelas roupas com  muito dourado, era uma coisa assim que eu bem sei o que dizer. Então é inevitável, a minha própria tradição se vê que não é em si, ela precisa estar se readaptando. Vivemos cada vez mais pressionados, a maneira de ser é em si o próprio aprendizado. Antigamente, as pessoas tinham tempo para ficar nas comunidades aprendendo o cotidiano, as comidas, as músicas, as danças, os toques. Hoje em dia não tem mais esse tempo. Antigamente a pessoa tinha um aprendizado amplo, a tradição no seu sentido amplo, de um cotidiano de uma maneira de ser, de ver, de pensar, muito mais amplo do que agora, quer dizer ela própria também precisa dessa transformação.

 

Mas, como a gente ainda tá falando de tradição e modernidade, de envolvimento com as coisas contemporâneas, você pode falar sobre seu trajeto na dança … que passa pelas sabedorias tradicionais, a experiência na Nigéria e na Europa?

O que eu acho muito interessante é que as coisas vêm naturalmente pra mim. É tudo muito natural e parece que as coisas vão se encaixando. Quando entro na escola de dança, aprendo aquelas técnicas todas, mas eu não deixo o que sou, ninguém me mandou fazer, mas eu já tô botando as minhas musicas. Mesmo quando a gente aprendeu técnica Merce Cunningham , eu coloquei de acompanhamento uma faixa de um disco “Eu Bahia”, que era “berimbau e viola” . Meu trabalho ficou completamente diferente das outras pessoas.  Acredito que tem uma característica, que talvez tenha sido essa, sempre questionadora e querendo mostrar outra possibilidade. É possível, acredito que isso são duas características de uma personalidade. Que eu ficava “Mas por que que a minha dança, só a minha dança, é dança africana?” Não tinha nem chegado ainda na África. Mas foi dança africana. Talvez nos meus gestos tivesse aqueles movimentos daqueles cotidianos dos orixás. Quando eu fazia qualquer outro trabalho com a minha criatividade, com a minha coreografia, vinha sempre essa questão “Ai, essa dança afro é linda… essa dança afro”.

 

Eu queria dançar, porque antes de mais nada, eu tinha uma sede muito grande de ser uma artista, de me expressar. Essa questão da sensibilidade, preciso canalizá-la, desde pequena, cantar, dançar, desenhar, pintar. Quando eu tenho oportunidade de ir pros EUA, vou e fico estudando a dança, aí a ficha me caiu: justamente as pessoas que criam seus estilos de dança, elas questionam suas histórias sua identidade. Cada um tem uma história e eu tinha a minha, é a minha história que está presente. Preciso ver mais, conhecer mais, aprofundar mais essa história. Quando retorno ao Brasil, pleiteei uma bolsa. Na época que o meu pai estava indo pra Ifé escrevi uma carta, tinha encontrado. Era um momento que tinha uma conferencia dos orixás e eu conheci o professor Abimbola. Escrevi, pedi a ele para fazer o curso e quem  realmente escreveu a carta foi o Soyinka.  Era do departamento de arte dramática. Com essa carta eu pleiteei uma bolsa Cnpq e ganhei a bolsa. Fui pra lá com o intuito de criar uma Cia de dança e ter uma Cia de dança. Mas, puxa vida que surpresa; eu não via a dança em lugar nenhum e era aquele sufoco, eu não conhecia toda história da colonização, todo esse lado, pensava estereotipado “Olha, lá tá todo mundo dançando”, gente … nada disso.  Em compensação as pessoas eram doutoras, trabalhando a sua cultura. Quando eu vi os livros e muitas peças de teatro encenando os mitos e tudo mais, eu disse, “Gente, como que é isso, mestrado, doutorado. Ah, eu quero fazer isso” .Só pode ser na universidade de Ibadan.  Escrevo pro Cnpq e mudo. Quando chego lá tem que fazer o projeto. Decidi automaticamente que projeto, queria falar sobre o mito de Xangô. Quando entro pra fazer minha dissertação de mestrado, fiz um projeto que seguia a dança de Xangô, conhecer mais sobre o orixá Xangô. Quer dizer, já é assim. ( ) é tudo muito da minha cabeça, tanto que eu sigo Campbel, que diz que muitas vezes você é capturada pelo seu mito, pelo seu próprio mito, pela sua própria história. Eu mesma tô envolvida nela, não tem como alguém mandar, vem assim. Só que quando eu fiz, passei no mestrado, vi que a pesquisa precisaria de mais tempo. Faço a dança ritual na Bahia, já chamando a atenção, por isso questionadora, sempre questionei colocar a cópia da dança dos orixás no palco, sempre com isso muito na minha cabeça. Embora tenha até feito, quando entrei no grupo do Olodumorilá, no Brasil Tropical até fiz, mas sempre eu fiquei meio encucada, porque se tinha certa releitura desses movimentos, quer dizer onde é que ficava o papel desse artista. Que hoje em dia eu posso até entender, são vários níveis de criação, desde a representação até uma criação mais abstrata. E  tem esses que são imbuídos dos sentimentos, da emoção de algo que vai além daquilo que permite se colocar dentro da história. Isso ficou muito na minha cabeça “Vou chamar a atenção do mito e do simbolismo como elementos motivadores do processo coreográfico, de criação coreográfica” . No oxê você pode ter as linhas retas e  uma série de coisas,  você pode chegar e fazer sua viagem no abebé, no xaxará,  nas cores, tem um bando de coisa,  fogo, … e nisso como estudar mais essa questão do movimento? Eu entrei em contato, porque logo eles me chamaram pra dar aula na universidade.

 

 

 

 

Isso foi em …

Isso foi em 83, 84 na Nigéria.  Estou biblioteca e encontrei o livro do Laban  na biblioteca. Tenho esse livro até. E aí ele veio falando, o socar, pilar.. eu disse, gente… isso é o homem!

A filosofia dele, principio dos movimentos, principio na educação, a notação do movimento, desenvolvimento do movimento na educação. Esse livro pra mim, foi uma luz. Quando vi a biografia dele “Gente … as danças dos orixás são ancestrais, é a dança do homem, e isso não é religião, são gestos miméticos, é algo arcaico, ancestral ao homem”. A partir daí, essas matrizes, eu queria estudar melhor. Descobri que tinha essa coisa do Laban Center em Londres e quis ir pra lá.

Pronto, mudou, fiquei com o estudo da coreologia pra entender a dança, quem dança, tudo muito complexo. Se eu danço sendo negra e tendo esta  forma, carrego uma série de informações para o outro. E não tem como você fugir disso. Você tem o movimento, ele vai além do físico, ele desperta toda uma história. Eu vejo que é isso mesmo, você vê um japonês que dança, logo você já situa ele no lugar, é a mesma coisa, essa ideia, essa visão. E eu fui, fiz esse curso, realmente a notação do movimento era muito complexa, porque anotar uma forma assim, laban notation  era tranquilo, mas escrever com o movimento, com a mão trocada… Vixe Maria, Deus me livre, não, não, não.

 

Dá pra gente pensar em um espaço de formação rigoroso a partir das  linguagens de matrizes africanas?

Ah, sim, com certeza, acho que tem um trabalho bastante disciplinado. É preciso consciência,  acredito que agora já está melhor, quando eu vejo hoje o que se diz de dança, chama “dança afro” – quando eu voltei pro Brasil, há mais de 22 anos, morei 22 anos pra lá e fui pra São Paulo, passei por Salvador. Eu tinha uma ideia de discutir o que é Afro o que que não é Afro. Mas logo de cara eu disse, “Não, isso não é pra mim”. Como eu pensei em construção, em proposta de transformação, não posso ficar me desgastando com algo que não vai me levar a nada, sempre tive isso na minha cabeça, tenho que chegar a algum canto. Então, melhor fazer a minha proposta. Quando eu via essas pessoas, eu dizia “Aquele som lascado tim-tá-tim-tan, gente… a pessoa não tem tempo de pensar, não tem uma reflexão”. Eu achava que estava tudo muito no físico. Parece que não entende o que tá fazendo, fica parecendo marionete, uma repetição de coisas.   Quer dizer, pode ser que em algum momento até se chegue a fazer assim… mas precisa de uma preparação… por exemplo, como é que usa o pé, a forma dos pés, e essa coisa do quadril, e a gente vai vendo com é ( ) a questão da mãos, dos dedos e do ombro e que vá trabalhando. Precisa ter essa preparação, senão estrupia. Quando falo da preparação, falo da consciência da palavra, da consciência corporal, precisa ter essa consciência. E era fácil entender, porque que eu tinha isso, porque passei por uma escola, faço uma adaptação do ensinamento da escola que eu tive, a Universidade da Bahia  tinha aquela coisa alemã e americana. Eu via  como começavam as aulas, isso está carregado comigo, por isso que eu digo, as histórias das pessoas é que fazem com que eu faça um trabalho assim, essa é a minha história, eu não vim do nada. O que eu percebia, talvez porque elas trabalhavam autodidatas e aprenderam do outro assim, faziam assim. Eu queria fazer algo diferente e o algo diferente teria a ver com a minha própria história. Eu questionava, porque que não pode ser assim. Qual é a diferença, pé assim, pé assim, pé assim, não, a gente tem o pé todo no chão, que é o calcanhar. A gente vai vendo as possibilidades que o pé tem, também do pé e tem todo o trabalho que vamos ciscar,  abre pé, fecha pé, quer dizer uma série de possibilidades de movimentos que a gente tem com o corpo pra justamente poder expressar o que eu quero depois, né?

 

As danças negras estão necessariamente vinculadas a religiosidade?

Não, pra mim, não. Pra mim pessoalmente não, mas pra maioria, sinceramente, parece que sim.  Estou falando da cultura em si, onde tem esses elementos da natureza que regem essa cultura da ancestralidade. Hoje, entre os Yorubas, na prática, existem aqueles que regem a religião cristã. Eles foram colonizados, tem o cristão, o muçulmano, que é uma religião que predomina inclusive no inteiro da Nigéria. Tem os cristãos, que fizeram suas combinações com a tradição e são os aladura , que toca atabaque, anda descalço vestido de branco, é uma releitura que eu acho que é da religião tradicional dentro de cristianismo. Então… na Unicamp teve uma professora que dava aula e que os alunos também se manifestavam, que os orixás vinham também… Eu não entendo, sinceramente, eu não entendo. Isso me preocupa, como que você pode num espaço plural de sala de aula trazer os elementos dessa história, dessa cultura? Como, se você não entende que aqueles gestos são gestos do dia a dia, de alguém que estava na fazenda, de alguém que tem uma criança no colo, de outro que se você entrar no mato sem nada, você vai abrir os caminhos, você puxa aqui, você puxa lá, quer dizer, se você não traz esses elementos…  você pode até ilustrar…. que é meu caso.  Se você conhece outras culturas, por exemplo na tradição indiana, Ganesh é muito parecida com Exu. Você amplia o conhecimento, você tem outras possibilidades. Mas antes de tudo você tem que ver o movimento que faz no corpo. Eu acho que pode sim.  Mas vejo que existe uma resistência muito grande. “A gente tem direito de dançar nossos deuses”, as pessoas já me disseram isso, dançar  os nossos orixás… E eu acho que sim, a dança e o mundo são pra todos. Pessoalmente, acho que é delicado e me preocupa muito essa questão plural na sala de aula, acho que você ficar agradando aos quatro ventos, só falar de orixá, o outro tem seu deus.

 

 

 

Como levar pra sala de aula sem falar de religião?

Acho que é pelo cotidiano, que é isso que eu fiz, por isso que eu dei aula esse tempo todo, esses anos todos. Embora num determinado semestre, eu propunha trabalhar um mito específico, “Por que oxalá usa ekodidé”, levamos o mito e cada um foi trabalhando, eu fiz com que cada um trouxesse a sua história dentro do mito. Aquele luta…  eu me lembro que tinha uma menina, tinha aquela coisa do ogum dela , ela lutava karatê…  Ela trouxe dentro desse viés, estudou o mito, as características dessa força mítica, como era, guerreiro que abre caminho, e criou uma coreografia dentro disso. . Inspirado no mito, mas a coreografia já é outra coisa…

 

Tem uma frase interessante que eu gostaria que você falasse sobre ela “ Da porteira pra dentro / da porteira pra fora.

Ah! minha avó, é mãe Senhora que dizia isso. Isso é uma sabedoria incrível, né? Porteira pra dentro, porteira pra fora. Eu sou uma pessoa da porteira pra fora. Aliás, tem um senhor ( ) ele fez, escutou meu disco e fez um artigo, acho que tem lá na internet, lá no meu site, e ele diz assim, “você da porteira pra fora, mas sempre se alimentando do que acontece da porteira pra dentro”

 

Como as matrizes negras aparecem em nossas reflexões? Você falou que quando você chegou na Nigéria, tinha aquele imaginário todo do que era a África e na verdade era outra coisa.

Eu não vejo nem diferença entre os contemporâneos, quem tá vivendo agora, quem tá vivendo na Nigéria tratando de dança, como a gente aqui também falando de dança afro-brasileira, não tem diferença, a busca tá sendo igualzinha. E isso é um exemplo claro no  trabalho que a gente conhece mais mesmo, o da Germaine que faz referência justamente esse diálogo. Quer dizer, ela adota a história dela. E ela aprendeu uma técnica e depois aprendeu a outra, uma que vem de sua história e tudo mais e outra realmente aprendida e incorporada, realmente as duas coisas. Surge, então, o olhar dela, quer dizer, a mesma coisa é Inaicyra, acho que fica dentro desse limiar aí, da contemplação e da inquietação . É a inquietação que permite você sair da zona do conforto. (…) Estou querendo é essa coisa que permite você entrar também na história do individuo, trazer a história dele, para dialogar com a sua, com o que esta sendo proposto.

Luciane Ramos Silva

Luciane Ramos Silva é antropóloga, artista da dança e mobilizadora cultural. Doutora em Artes da Cena e mestre em antropologia pela UNICAMP. Bacharel em Ciências Sociais pela USP. Atua nas áreas de artes da cena, estudos africanos e educação.

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.