janeiro de 2021

CURARE NA PONTA DA FLECHA CURATORIAL: PARA SE CONCEBER CURADORIAS DE DANÇA NÃO HEGEMÔNICAS*

Flavia Couto

 

 

 

 

 

 

 

fotos cayque

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Desde os anos 1990 a curadoria de dança no Brasil se desenvolve como um campo de organização, orientação e agenciamento a partir de entendimentos de corpo e arte brancos. Isso se deu por anos em um processo colonialista de transplantação de modelos eurocêntricos de curadoria aplicados à dança contemporânea, em que métodos curatoriais europeus se tornaram bases estéticas e políticas de festivais de dança brasileiros, negligenciando os saberes epistemológicos indígenas e afro-diaspóricos que sempre existiram aqui.

 

Um exemplo emblemático de transplante curatorial foi o que aconteceu na Bienal de Dança de Lyon (França), que, em 1996, apresentou o tema Aquarela do Brasil – um dos acontecimentos centrais na política de transplante de métodos curatoriais. Naquela ocasião, o diretor francês Guy Darmet reuniu, em uma mesma curadoria, diversos artistas e companhias distintas do Brasil, homogeneizando tudo no leque da diversidade do que o europeu considerava, então, a “dança brasileira”.

 

“(…) as programações dos festivais funcionam como uma espécie de consórcio, em que os mesmos artistas da dança se apresentam em um festival no Rio ou São Paulo (…) delimitando, assim, uma rede fechada de consumo da dança pouco conectada com os fazeres artísticos indígenas e afro-diaspóricos locais”

 

Essa proposta curatorial “verde e amarela” da Bienal de Dança de Lyon atuou como uma política pública francesa e, em contrapartida, esteve em parceria com o V Panorama da Dança Contemporânea (atual Festival Panorama de Dança) do Rio de Janeiro, onde o próprio Guy Darmet fez a palestra de abertura do festival, selando o acordo de troca de programações no eixo Brasil-França.

 

Cito brevemente esse evento para denunciar que a suposta política de troca, ao chegar ao nosso território colonizado, não se deu de forma horizontal e equivalente. Pois, à medida que curadores brasileiros foram assimilando o modus operandi europeu, foram também se alinhando às estéticas supremacistas e higienistas, orientadas pelo status quo da branquitude. Isso determinou escolhas de configurações de dança que se encaixaram no que veio a se tornar a rede hegemônica curatorial de dança contemporânea brasileira.

 

Podemos ver, ao longo desse processo, o então crescimento de festivais e bienais de dança em estados como São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco, Ceará, Minas Gerais e Bahia. Nesse contexto, as programações dos festivais começam a funcionar como uma espécie de consórcio, em que os mesmos artistas da dança que se apresentam em um festival no Rio ou São Paulo (centros de distribuição de modelos hegemônicos) também circulam por todos os outros Estados do país, delimitando, assim, uma rede fechada de consumo da dança pouco conectada com os fazeres artísticos indígenas e afro-diaspóricos locais – os quais, muitas vezes, só aparecem nas programações sob o guarda-chuva da representatividade folclorizada.

 

Na contramão disso, há, atualmente, inúmeros debates arte-educacionais de autoria indígena e negra que têm como objetivo pensar estratégias antirracistas alinhadas ao combate do epistemicídio dos saberes indígenas e negros. E, junto com esse movimento, é imprescindível desenvolvermos procedimentos curatoriais decoloniais.

 

 

 

Performance Mandinga-Batalha-Mandinga/TransaKrytica

 

 

 

Acredito que uma das formas viáveis de atingir isso é conceber curadorias de dança não hegemônicas apoiadas em saberes ancestrais. A partir dessa retomada é possível construir mecanismos de combate ao epistemicído afro-indígena e realocar aquilo que foi periferizado ou invisibilizado em relação ao centro supremacista.

 

Faço uma analogia a uma ação que opera como curare indígena: a elaboração de um veneno extraído das plantas aplicado na ponta das flechas usadas para caçar. O efeito paralisante que o veneno do curare tem no corpo da caça é, aqui, o efeito desejado ao sistema hegemônico colonialista de gestão da dança contemporânea.

 

O curare na ponta da flecha curatorial, além de ser uma operação de caça que injeta veneno de ação inibidora nas lideranças impostas, é também uma operação de exorcismo do capital, possibilitando que a atividade curatorial esteja em consonância com a dignidade financeira necessária atribuída e redistribuída ao exercício simbólico do trabalho indígena e negro.

 

 

AGÊNCIA DE CURA – A CURADORIA DE DANÇA COMO UM ESPAÇO DE CURA

Convencionou-se que a figura do curador é aquela dotada de saberes intelectuais, na maioria das vezes, também, de formação acadêmica. Isso o habilitaria para nomear, separar, classificar e escolher obras de arte em uma mesma concepção ou arranjo curatorial. 

 

“O curare na ponta da flecha curatorial, além de ser uma operação de caça que injeta veneno de ação inibidora nas lideranças impostas, é também uma operação de exorcismo do capital, possibilitando que a atividade curatorial esteja em consonância com a dignidade financeira necessária atribuída e redistribuída ao exercício simbólico do trabalho indígena e negro”.

No entanto, a intelectualidade não se diferencia das demais múltiplas inteligências nas perspectivas indígenas e negras, dado que todos os seres viventes são dotados de saberes que atravessam gerações em conjunção com noções expandidas de espiritualidade, em que corpo e natureza coevoluem como parte do mesmo universo.

 

Considerando que o cerne de uma construção democrática seja dar, a quem não tem o poder de decisão, o direito de decidir, assim como dar, a quem não tem a legitimação da fala dentro do sistema hegemônico operante, o poder da fala, é preciso pensar, então, em uma curadoria que convoque vozes, as quais sejam autoridades oriundas de suas inteligências experienciais, e que, de forma transversal, articule arranjos artístico-curatoriais mais democráticos a partir de pensamentos indígenas e negros. 

 

Nessa encruzilhada específica de retomada dos saberes indígenas e afro-diaspóricos para estruturar o trabalho curatorial em dança, a curadoria se torna um lugar de práticas de cura, onde a realidade trágica de etnocídio e racismo estrutural – compulsórios aos povos originários e negros – se transforma em realidade mágica, orientada por cosmovisões indígenas e ebós epistemológicos. 

 

A mesma flecha que transporta o curare paralisante do sistema colonialista é a flecha que aponta para um futuro no qual a curadoria de dança é uma agência de cura alimentadora de modelos não hegemônicos. Nessa paisagem, o curador transfigura-se, portanto, em curandeiro das artes do corpo, para que, dessa forma, a feitura curatorial se expanda e se abra a processos de não linearidade hierárquica, aliando-se ao contexto sociopolítico onde é produzida. 

 

 

 

Performance Mandinga-Batalha-Mandinga/TransaKrytica

 

 

 

O curador de dança não pode mais ser uma figura centralizadora de poderes intelectuais, ele deve se tornar um estado de inteligência provisório, ocupado alternadamente por agentes curandeiros que sabem fazer o que se precisa fazer na incessante luta contracolonial e antirracista.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

* Conteúdo originalmente produzido para o “IMS Quarentena – Programa Convida 2020”.

 

 

 

Flavia Couto

FLÁVIA COUTO é brasileira, 36 anos, indígena da etnia Maracás (Bahia). Artista do corpo, crítica e curadora de dança. Como crítica, escreveu para o jornal Folha de S.Paulo (2011 a 2014). Desde 2016, lidera a TransaKrytica - rede de ações/intervenções/mediações em festivais, encontros, residências artísticas e demais espaços de arte e educação.

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.