dezembro de 2017

VIOLÊNCIA SIMBÓLICA E INVISIBILIDADE SOCIAL DOS QUILOMBOLAS

Alexandre Kishimoto

 

 

 

 

 

No dia 3 de abril de 2017, em palestra realizada no Clube Sociedade Hebraica, no Rio de Janeiro, ao criticar os processos de demarcação de terras indígenas e dos quilombos, o deputado federal Jair Bolsonaro (PSC-RJ), em clima de pré-candidatura presidencial, afirmou:

 

“Eu fui num quilombo em Eldorado Paulista. Olha, o afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas.
Não fazem nada. Eu acho que nem para procriador ele serve mais. Mais de um bilhão de reais por ano gastado com eles. (…)
Se eu chegar lá (na presidência), não vai ter dinheiro para ONG. Esses vagabundos vão ter que trabalhar.
Pode ter certeza que se eu chegar lá, no que depender de mim (…)
não vai ter um centímetro demarcado para reserva indígena
ou para quilombola.”

 

A presença do deputado no Clube Hebraica e o teor de sua fala desencadearam reações contrárias por parte de judeus brasileiros. Naquela mesma noite, do lado de fora do auditório, um protesto articulado por movimentos juvenis da comunidade judaica lembrou em voz alta os nomes de judeus brasileiros assassinados pela ditadura civil-militar. Em São Paulo, quinze dias depois, os Judeus Progressistas Brasileiros (JuProg), grupo que apoia o fim da ocupação e o reconhecimento do Estado Palestino, organizou na EMEF Desembargador Amorim Lima o Seder de Pessach “Liberdade e Justiça Para Todos”. Pessach, a Páscoa Judaica, é a celebração da libertação do povo judeu da escravidão sob o domínio egípcio. Um dos organizadores, Sérgio Storch, abriu o evento com as seguintes palavras:

 

“Por que este Seder é diferente de todos os outros? Ele é universal pela liberdade e pela justiça no nosso país.
Porque estamos aqui ao lado de todos os que no Brasil sofrem ameaças da ferocidade de pessoas,
que, em nossos próprios ambientes, como aconteceu na Hebraica do Rio de Janeiro,
elogiam ditadores e torturadores e agridem os direitos de diversos grupos sociais
que estão aqui hoje conosco. Este Seder é um grito de: Não em nosso nome!”

 

No dia 6 de abril, a Coordenação Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), junto com a organização Terra de Direitos, protocolou uma representação contra o deputado Jair Bolsonaro na Procuradoria-Geral da República, citando a prática de racismo e pedindo que a PGR iniciasse uma ação penal contra o parlamentar. No documento encaminhado, a Conaq afirma que “o deputado corrobora o discurso racista de ódio, onde quilombolas não teriam lugar ou função na sociedade brasileira, sem nem mesmo terem condições de perpetuar suas famílias.” Ações semelhantes foram protocoladas pela Frente Favela Brasil e por deputados federais, como Benedita da Silva (PT-RJ), por exemplo.

 

 

 

 

Uma semana depois foi protocolada outra ação, na qual Bolsonaro está sendo processado pelo Ministério Público Federal no Rio de Janeiro por danos morais coletivos a comunidades quilombolas e à população negra em geral. Em caso de condenação, ele pode ser obrigado a pagar indenização coletiva no valor de R$ 300 mil, a ser revertida em projetos de valorização da cultura e história dos quilombos, a serem indicados pela Fundação Cultural Palmares.

 

Mas o que se esconde por trás da fala racista do deputado? Preconceito, ignorância, má fé ou alguma outra coisa?

 

Ao tentar deslegitimar as demandas territoriais dos quilombos de todo o país, Bolsonaro citou especificamente os quilombos da região da cidade de Eldorado (SP), no Vale do Ribeira.

 

Essa referência não é aleatória. Nascido em Campinas, Jair mudou-se com a família para Eldorado, onde passou sua infância e adolescência. Em 1970, aos 15 anos de idade, tomou contato com tropas do exército que chegaram à região à procura de Carlos Lamarca, episódio no qual ele teria se decidido pela carreira militar. Até hoje a família Bolsonaro mora na região e mantém quatro estabelecimentos comerciais em Eldorado. A fala de Bolsonaro reflete a visão racialmente preconceituosa e discriminatória que parte considerável da população local nutre com relação aos quilombolas da região.

 

Os quilombolas do Vale do Ribeira foram referidos por Bolsonaro como supostos vagabundos, que não trabalham, não fazem nada, vivendo às custas de recursos do governo federal e das ONGs. Há algo de factual nesta fala? Se não há, por que então falas como esta são mais comuns do que gostaríamos de imaginar? Talvez porque isto esteja relacionado à invisibilidade social dos quilombolas no Brasil, no estado de São Paulo e, mais especificamente, no Vale do Ribeira.

 

Na visão do senso comum, o Vale do Rio Ribeira de Iguape, que abrange as regiões sudeste do estado de São Paulo e leste do Paraná, caracteriza-se pela pobreza, pelos baixos indicadores sociais e pelo baixo desenvolvimento econômico, exemplificado pela falta de mecanização da agricultura ou da intensificação agrícola, e etc.

 

No entanto, da perspectiva socioambiental, trata-se do contrário. A região abriga a maior área remanescente de Mata Atlântica preservada do país (21% do total), protegida por um conjunto de Unidades de Conservação, como a APA Quilombos do Médio Ribeira, o PETAR e a Caverna do Diabo. E o Vale do Ribeira conta, principalmente, com uma rica sociodiversidade, formada por aldeias Guarani, comunidades caiçaras em Cananéia e na Ilha do Cardoso, pequenos agricultores familiares, além de 88 comunidades autodenominadas descendentes de quilombolas, em diferentes fases de reconhecimento territorial por parte do Estado.

 

JOHAN MORITZ RUGENDAS – Habitation de Nègres – Litografia aquarelada – Rio de Janeiro – 17,5 x 25,5 cm – Século XIX

 

 

 

As comunidades quilombolas fixaram-se há mais de 300 anos na região. Ao longo deste período, elas desenvolveram uma forma de cultivar alimentos dentro da floresta, aproveitando-se apenas de seus processos ecológicos e de seus nutrientes, e zelando por sua regeneração.

 

A cada ano os quilombolas cultivam arroz, feijão, milho, mandioca e diversos outros tubérculos, verduras e frutas para o sustento de suas famílias. O sistema de corte e queima tradicionalmente utilizado, conhecido como coivara, consiste na derrubada e queima da vegetação original, no cultivo e no rodízio das áreas de plantio, deixando-as em pousio por alguns anos até voltarem a ser produtivas.

 

Assim, não é coincidência o fato dos quilombolas do Ribeira desenvolverem historicamente seu sistema agrícola tradicional na região mais preservada de Mata Atlântica do país. Com sua forma de ocupação tradicional, junto com os indígenas, eles contribuíram e continuam a contribuir decisivamente para a preservação e para o manejo das florestas da região.

“(…) não é coincidência o fato dos quilombolas do Ribeira desenvolverem historicamente seu sistema agrícola tradicional na região mais preservada de Mata Atlântica do país. Com sua forma de ocupação tradicional, junto com os indígenas, eles contribuíram e continuam a contribuir decisivamente para a preservação e para o manejo das florestas da região”.

 

Diversas pesquisas científicas recentes, como as do Grupo de Pesquisa Ecologia Humana de Florestas Neotropicais da USP, comprovam como esse sistema agrícola tradicional vem favorecendo a manutenção e a biodiversidade da fauna e da flora da Mata Atlântica. Nesta perspectiva e tendo em vista os efeitos das mudanças climáticas, os quilombolas desta região prestam um serviço ambiental de fundamental importância para nós, moradores dos centros urbanos da região sudeste, e o fazem de forma não remunerada.

 

Além da manutenção da biodiversidade da Mata Atlântica, há outro serviço de valor incalculável que os quilombolas do Vale do Ribeira prestam para nós, urbanos: a manutenção e o fomento da agrobiodiversidade.

 

A agrobiodiversidade quilombola é a riqueza e a diversidade de variedades de cultivares conservadas e selecionadas pelas comunidades quilombolas em sua história de ocupação do Vale do Ribeira. Tratam-se de variedades de arroz, milho, feijão, mandioca, entre outras, que foram sendo adaptadas aos diferentes solos e microclimas locais. Em 2015, as comunidades junto o Instituto Socioambiental realizaram um mapeamento, em que foram identificadas 15 variedades de arroz, 11 de milho, 15 de feijão e 18 de mandioca.

 

 

 

Mas qual é a importância disto? A antropóloga Manuela Carneiro da Cunha faz parte de uma força-tarefa internacional, o Painel Intergovernamental da Biodiversidade e Serviços Sistêmicos que, diferentemente do Painel do Clima, dá ênfase ao conhecimento tradicional tanto dos povos indígenas quanto de comunidades locais. Em entrevista concedida em março de 2016, ela relembrou o caso da grande fome da Irlanda, ocorrida no século XIX. Na época, a base alimentar da população pobre era a batata. No entanto, eles dependiam do cultivo de apenas duas variedades, que foram devastadas por uma praga que durou cinco anos. Um milhão de irlandeses morreram de fome e outro um milhão imigraram para os Estados Unidos. Mas essa vulnerabilidade, o perigo de depender de uma base estreita para a nossa alimentação, se mantém na atualidade:

 

“Você tem dois terços da alimentação mundial baseada em um número muito pequeno de cultivares. Então a base alimentar já é estreita. Por que que são importantes essas variedades, assim, para a agricultura como um todo? Porque essas variedades podem ter características que podem ser muito úteis, por exemplo, diante de mudanças climáticas, por exemplo, diante de ataques de novas pragas, novos insetos. (…) Esse reconhecimento de um sistema agrícola como o dos quilombolas do Vale do Ribeira, ou de outros povos, porque está acontecendo em outros lugares também, é muito importante ao perceber que esses povos tem uma função que nos interessa a todos, trata-se da segurança alimentar de todo mundo”.

 

A relação das roças quilombolas com a nossa segurança alimentar não se restringe ao seu papel de banco de sementes mantido na roça, contra eventuais ameaças à nossa alimentação. Os alimentos produzidos pelos quilombolas caracterizam-se como orgânicos, antes mesmo do advento desta definição, isto é, são tradicionalmente livres de insumos químicos, em contraponto com os cultivares produzidos pela agricultura convencional, impregnados de agrotóxicos, que consumimos nos centros urbanos.

 

Em 2012, as comunidades quilombolas de Eldorado e Iporanga (SP) criaram a Cooperquivale (Cooperativa dos Agricultores Quilombolas do Vale do Ribeira). Ela nasceu da necessidade de auto-organização das comunidades para a comercialização de sua produção agrícola de forma justa. A cooperativa conta com cerca de 236 cooperados de 16 comunidades. Atualmente, são comercializadas mais de 80 toneladas mensais de 70 diferentes produtos de suas roças para os programas de governo como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) e o PAA (Programa Nacional de Aquisição de Alimentos). Esses dados por si só desmentem a fala do deputado.

 

Há um último aspecto a ser abordado, além do preconceito, da ignorância e da má fé, que se relaciona com a parte em que Bolsonaro diz que, caso ele seja o próximo presidente da República, se depender dele, não haverá um único centímetro demarcado para reserva indígena ou quilombola. ‘Coincidentemente’, está para ser retomado no STF, o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3.239, proposta, em 2004, pelo então PFL, hoje DEM, contra o Decreto 4.887/2003, que regulamenta a demarcação dos quilombos atualmente. Para Givânia Silva, da Conaq, por trás da ADI está o interesse dos grandes proprietários de terra: “Esse título, uma vez concedido para essas comunidades, permanece para as gerações futuras. Essa terra sai do mercado. Estamos falando de uma disputa de terras, do poder do latifúndio em nosso país, que continua cada dia mais forte”. O futuro das comunidades está ameaçado. Novas titulações não serão possíveis sem o decreto. Mais de 6 mil comunidades ainda aguardam o reconhecimento de seu direito.

 

Na fala de Bolsonaro fica explícita a convergência de interesses entre a bancada da bala, essa constituída por militares e civis que apoia o genocídio dos jovens afro-brasileiros moradores das periferias urbanas, e a bancada do boi, essa dos latifundiários que, por outras vias, privando do direito à terra, defende o genocídio das populações indígenas e das comunidades quilombolas. Não sei se consegui explicitar a relação entre o destino dos quilombolas do Vale do Ribeira e os nossos destinos. Se os setores mais reacionários do país estão se unindo, precisamos, mais que nunca, tomar as lutas dos quilombolas e indígenas como nossas.

 

 

 

 

 

 

 

 

Alexandre Kishimoto

Alexandre Kishimoto é antropólogo e documentarista. De 2014 a 2016, atuou no Programa Vale do Ribeira do Instituto Socioambiental, no processo de patrimonialização do Sistema Agrícola Quilombola junto ao IPHAN. Atualmente integra o coletivo Outras Vozes.

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.