janeiro de 2021

VICTORIA SANTA CRUZ E A EXPERIÊNCIA DA EDUCAÇÃO*

Danielle Almeida

 

 

 

 

 

 

 

fotos Peter Bysted/ Arquivo

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Y ya comprendí
Al fin
¡Ya tengo la llave!
Negra, Negra Negra Negra Negra
Negra Soy!¹

 

Victoria Eugenia Santa Cruz Gamarra (1922-2014), pensadora, coreógrafa, dramaturga, poeta, peruana, latino-americana e negra. Foi singular entre os mais importantes conhecedores de cultura popular do século XX e figura-chave na revitalização das manifestações culturais negras nas Américas. Criadora da Cumanana² (1958) − a primeira companhia de teatro negro no Peru e que era dedicada à recuperação e visibilização do repertório cultural de ascendência africana, especialmente presente na região costeira do país , Santa Cruz estabeleceu as bases do que foi considerado e se consolidou como o renascimento da cultura afro-peruana, movimento este que teve nela sua maior representante. A companhia surgiu com o propósito de dar à juventude negra, por meio do teatro, uma forma de se expressar, uma vez que sua idealizadora considerava que, por conta da exclusão e das desigualdades, era necessária a criação de meios que favorecessem a autoestima e que positivassem a experiência de ser negro no Peru.

 

Depois do sucesso alcançado com a Cumanana e de estudar design de figurino, direção coreográfica e fisiologia do movimento em Paris, de volta a Lima e com parte de seu antigo elenco, Santa Cruz forma o Teatro y Danzas Negras del Perú³ (1967), um grupo constituído unicamente por pessoas negras. Nas rigorosas audições que deram início à companhia, conduzidas pela batuta precisa da maestra, eram requeridos dos candidatos os seguintes critérios: “primero que tenga ritmo; segundo, que tenga ritmo; tercero que tenga ritmo. !ritmo, ritmo y ritmo!”.       

 

“pensadora, coreógrafa, dramaturga, poeta… a peruana Victoria Santa Cruz (1922-2014) foi figura-chave na revitalização das manifestações culturais negras nas Américas”.

O elenco aprendia a tocar, a cantar, a se comunicar com diferentes aspectos de suas próprias potencialidades, pois para Santa Cruz a arte deveria ser considerada um meio e não uma meta. Acreditava que o meio possibilita o desenvolvimento da intuição, e esta, com o tempo, se transforma em níveis elevados de consciência. A meta, por outro lado, é a conexão interna do indivíduo com ele mesmo, com o mundo e com a vida.  “Transformando lo que hace y transformándose a sí mismo, va el artesano deviniendo artesano, preparando su camino, y, lejos de quedar atrapado en la forma, en lo que es solo un medio, llegará a adquirir el nivel de consciencia que lo transformará (si preserva), en el hombre de conocimiento, el artista”. 

 

Quando questionada sobre seu elenco, costumava dizer que os jovens escolhidos tinham o principal: ritmo e sensibilidade, qualidades que segundo ela não se ensina, se educa. Não obstante, se engana aquele que acredita existir um método que sintetizasse o trabalho de Victoria Santa Cruz. A experiência proposta respeitava a unicidade do sujeito, a maestra era consciente de que o resultado esperado seria alcançado por caminhos diversos e únicos, justificando assim a ausência de uma metodologia. Para Santa Cruz, a qualidade do fazer (dançar, tocar, cantar, atuar, viver) estava no grau de conexão interior que cada um pudesse alcançar, mas considerava que um processo educativo eficaz pressupunha um papel central do professor como alguém que vivenciou e aprendeu com seu próprio processo e que continua aprendendo. 

 

 

 

Victoria Santa Cruz performando Me gritaron Negra. Peru, 1978

 

 

 

“Si el profesor no está en contacto consigo mismo, no sabe de dónde viene la dificultad de aquel. […] el profesor que ha trabajado dentro, […] lo orienta para que el otro despierte desde si y crezca, para que pueda ir más lejos y más profundamente que el profesor”.   

 

Como educadora ajudava a construir no operário, o artista; no excluído, o cidadão; no empregado, o dono de si mesmo. Entre ensaios e coordenações, Santa Cruz educava não só os corpos, educava sobretudo as consciências de seu elenco com base nos estudos de história da África e da diáspora, porque entendia que: “el negro para encontrar su sitio debe tener la conciencia de que puede ser útil a sí mismo y a la sociedad,  debe conocer su propio valor como ser humano con los derechos y deberes que le corresponden por haber nacido.  Para encontrarse a sí mismo,  el arte es el medio más justo”.

 

 

 

Victoria Santa Cruz performando Me gritaron Negra. Peru, 1978

 

 

 

Após o completo êxito do Teatro y Danzas Negras del Perú, Victoria Santa Cruz passou a dirigir o Conjunto Nacional de Folklore (1973-1982), em que foi responsável pelo desenvolvimento, pesquisa, integração e direção de repertórios e dançarinos da região da Serra, da Costa e da Amazônia peruana. Para a consolidação desse trabalho, viajou o país inteiro convidando os(as) mestres(as) da tradição para compor o grupo e proporcionar conhecimento sobre valores ancestrais da música e da dança, segundo cada território. Para Santa Cruz os mestres eram os que conheciam a cultura popular a partir da vivência e da conexão com a memória ancestral, diferentemente de um especialista ou um acadêmico que, segundo ela, usando apenas o intelecto, desconhece absolutamente tudo o que é a vida.

 

“Victoria Santa Cruz transnacionaliza experiências que nos instigam a mergulhar nas densas complexidades do pensamento das mulheres negras no sul do mundo”.

Com o Conjunto Nacional de Folklore, Victoria Santa Cruz fez a arte e a cultura peruanas conhecidas mundialmente. Conquistou incontáveis prêmios e convites, realizou trabalhos com grandes companhias de dança e teatro, como por exemplo a companhia do renomado coreógrafo Peter Brook. Mais tarde, como professora catedrática da Universidade Carnegie Mellon, nos Estados Unidos (1982-1999), aprofundou suas experiências com o ritmo, transformando-as no livro Ritmo: el eterno organizador, uma obra poderosa que ainda não foi descoberta e muito menos entendida.

 

 

Apesar de ser reconhecida por sua excelência e disciplina, sua importância e seus feitos, Victoria Santa Cruz ainda é pouco conhecida no Brasil, e, mesmo no Peru, segue sendo o nome de uma personagem enigmática e injustiçada. Mulher-negra-latino-americana, Victoria Santa Cruz transnacionaliza experiências que nos instigam a mergulhar nas densas complexidades do pensamento das mulheres negras no sul do mundo. Conhecer e dar visibilidade à sua obra e biografia é um compromisso urgente, pois a invisibilidade de uma mulher negra compromete a dignidade de um povo inteiro.  

 

 

 

 

 

 

 

 

NOTAS

  • ¹Excerto do poema Me Gritaron Negra, de Victoria Santa Cruz, como parte do Documentário Black and Woman (1978), de Eugenio Barba.
  • ²A Cumanana foi criada por Victoria Santa Cruz e seu irmão Nicomedes. Em âmbito internacional faz parte de movimento por  visibilização e reconhecimento das culturas afro-latino-americanas através da educação e da arte, ocorrido na América Latina a partir dos anos 1940, no qual se enquadra o Teatro Experimental do Negro (1944 -1961), fundado no Brasil por Abdias do Nascimento.
  • ³O Teatro y Danzas Negras del Perú estreou em 1967 e com pouco tempo de  existência, em 1968, foi convidado para representar o país nos Jogos Olímpicos do México, conquistando os prêmios máximos dessa competição e iniciando uma exitosa carreira internacional.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

* Conteúdo originalmente produzido para o “IMS Quarentena – Programa Convida 2020”.

 

 

 

 

 

 

Danielle Almeida

DANIELLE ALMEIDA é cantora artivista antirracista e pela vida das mulheres, mestre em Ciências da Educação pela Universidad de Monterrey (México); especializada em História da África e dos Afro-brasileiros pela UFMG e Casa das Áfricas; licenciada em Canto pela Universidade Federal de Pelotas. Orienta seus estudos e atuações laborais no campo da presença e manifestações culturais negras na América Latina e Caribe.

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.