julho de 2014

EM NOME DO PAI: ARQUIVOS DESCONHECIDOS DE UMA HISTÓRIA NÃO REVELADA

Nabor Jr.

 

 

 

fotos Arquivo Pessoal

 

 

 

 

 

 

 

“Embora queimemos todas as leis, decretos e avisos,
não poderemos acabar com os actos particulares,
escrituras e inventários, nem apagar a instituição da
história, ou até da poesia”.

 Retirado de: Assis, Machado de. Memorial de Ayres (1908)

 

 

 

 

No dia 14 de dezembro de 1890, o prestigiado jurista soteropolitano Ruy Barbosa de Oliveira (1849 – 1923), então Ministro da Fazenda do governo de Manuel Deodoro da Fonseca (1827 – 1982), protagonizou um dos mais polêmicos episódios envolvendo os (raros) registros documentais da presença negra no Brasil escravocrata: determinou a arrecadação e incineração de todos os papéis, livros e documentos existentes nas repartições do Ministério da Fazenda “relativos ao elemento servil, matrícula dos escravos, dos ingênuos, filhos livres de mulher escrava e libertos sexagenários”.

 

Ainda hoje, mais de um século após a controvérsia queima de arquivos, as chamas do caso continuam acesas, gerando intermináveis discussões. De um lado, há os que defendam os argumentos de Barbosa, segundo o qual a destruição dos registros (que incluíam milhares de nomes, dados e históricos de escravos e quilombos presentes no Brasil até então) teve como objetivo proteger os próprios recém-libertos. Uma vez que a incineração dos documentos foi feita para impedir que os antigos senhores de escravos, depois de terem usufruído por anos e anos de trabalho forçado e gratuito de milhares de homens e mulheres negros que mantinham em cativeiro, ainda recebessem indenização pelo fato de tê-los libertado “gratuitamente”.

 

Na outra ponta do imbróglio encontram-se, em sua maioria, intelectuais e militantes negros brasileiros, que qualificam o republicano, e consequentemente a sua atitude, como irresponsável e elitista. Para estes, sob o pretexto de “acabar com o passado negro do Brasil”, Ruy, na verdade, corroborou com os ideais predominantemente conservadores da elite branca brasileira de então e impediu – e impede, até hoje – que conheçamos uma parte fundamental da construção da história do nosso país.

 

O que o fogo queimou, literalmente, virou fumaça e, no caso específico, o que sobrou foram cinzas de um passado escravocrata que, seja antes ou depois do referido episódio, jamais foi devidamente esclarecido (e reconhecido) pelo governo brasileiro.

 

O fato é que, apesar da mal explicada – ou, como muitos querem nos fazer entender, mal compreendida – a incineração dos documentos não foi capaz de, oficialmente, apagar os mais de 100 anos de história decorridos desde o dia 14 de dezembro de 1890 e todos os papéis coletados da vida dos negros no Brasil no século XX. Assim como parte significativa da contribuição do escravo africano e afro-brasileiro na construção do país se perdeu, também é verdade que há vida documentada do negro brasileiro após a queima de arquivos de Barbosa.

 

Para além de ações coletivas de documentação e preservação da história do negro no Brasil no pós-abolição, envolvendo, por exemplo, iniciativas surgidas no seio da sociedade civil organizada, em atuações reivindicatórias e de resistência materializadas por instituições como a imprensa negra, Movimento Negro (e grupos surgidos a partir da sua ideologia), bem como o esforço de acadêmicos, pesquisadores e alguns poucos espaços apoiados pelo poder público, como o Arquivo Público do Estado do São Paulo, a Fundação Palmares e o Museu Afro Brasil – sobrevivem, principalmente, registros de uma consciência negra despertada no âmbito familiar. São iniciativas predominantemente individuais, solitárias, quase que silenciosas – outrora reprimidas – de preservação de fragmentos de uma história que constantemente é coagida a virar fumaça. Esses arquivos escondidos de uma trajetória desconhecida, ao contrário do que pregam as alas mais radicais dos movimentos defensores das causas da gente negra, só existem graças a consciência racial que muitos afirmam não existir, ou passar pela cabeça da maioria dos negros brasileiros.

 

 

ARQUIVOS DESCONHECIDOS DE UMA HISTÓRIA NÃO REVELADA

Morador da cidade de Santo André, região do Grande ABC paulista, o carioca e funcionário público Roberto Souza Dantas, de 68, anos, é um destes ilustres desconhecidos preservadores da história do negro no Brasil. É dele o maior e mais significativo acervo sobre a história do primeiro embaixador negro do país, o jornalista, escritor e funcionário público federal Raymundo Souza Dantas (1923 – 2002), que serviu a primeira embaixada brasileira da República de Gana, entre os anos de 1961 e 1964.

 

 

Filho mais velho do casal Raymundo Souza Dantas e Ideline Botelho Souza Dantas, Roberto herdou os documentos do pai após o falecimento de uma de suas irmãs, em 2009. “Meu pai sempre fez questão de arquivar tudo, cada foto, cada documento, cada reportagem de jornal. Esses documentos estavam em caixas, no apartamento da minha irmã, no Rio de Janeiro. Quando ela faleceu, a filha dela, no caso minha sobrinha, que vive em um pequeno apartamento, não tinha espaço suficiente para guardar as coisas, então peguei tudo. Já tentei falar com a Fundação Palmares, o Museu Afro, mas eles não tiveram muito interesse em conservar este material”, revela Dantas.

 

A maior parte dos documentos – divididos entre correspondências trocadas com importantes escritores e políticos brasileiros da época, recortes de jornais, livros, fotografias, medalhas, honrarias e alguns vídeos – cujo início da preservação e catalogação teve início com a consciência racial do próprio Raymundo Souza Dantas, narram o difícil período da missão diplomática do embaixador na África, as dificuldades que enfrentou enquanto homem negro de status político elevado em um país reconhecidamente racista como o Brasil, suas relações com o poder, a batalha por uma política externa legítima e proativa com os países africanos, o envolvimento com as comunidades de escravos repatriados para África, entre outros assuntos.

 

“A politica externa do Brasil com a África foi um grande projeto do presidente Jânio Quadros. Ele teve a visão de que aqueles 30 países que estavam se tornando independentes naquele momento teriam uma força inclusive internacional, na ONU, por exemplo. Ele já vislumbrava uma influência do terceiro mundo na política global. Ao enviar meu pai para Gana, ele também deu uma resposta a politica externa que vinha sendo exercida por Juscelino Kubischek com a África, uma vez que o Juscelino sempre apoiou o governo fascista de Salazar, em Portugal”, recorda-se Roberto, que tinha 14 anos de idade quando embarcou com pai e o restante da família para Acra, capital de Gana.

 

 

Filho de pais analfabetos, a mãe, lavadeira e o pai, pintor de paredes, Raymundo Souza Dantas nasceu em 11 de fevereiro de 1923, em Estância, no Sergipe, e teve uma vida marcada por episódios de superação, autodidatismo, dedicação aos estudos, ao empoderamento intelectual do negro brasileiro e ao resgate das raízes ancestrais africanas que marcaram o período escravocrata no país.

 

Na cidade de Estância, onde viveu até a adolescência, cursou, ainda criança, a escola pública por poucos meses, trabalhou como entregador de embrulhos de uma casa comercial, em uma tipografia e, no jornal que levava o nome do município, A Estância, trabalhou movimentando a impressora e distribuindo jornais aos domingos para assinantes. Permaneceu nesta atividade por quase dois anos.

 

Em Aracajú, trabalha nas oficinas do Correio de Aracajú, época em que ouvia várias leituras de textos de Jorge Amado, Machado de Assis e Marques Rebelo, feitas pelo amigo Barbosa, um amante da literatura moderna. Em 1941, aos dezoito anos, chega ao Rio de Janeiro a bordo de um navio do Lloyd Brasileiro. Na capital federal, graças ao jornalista Joel Silveira, trabalha como contínuo o semanário político-literário Diretrizes.

 

Em 1942, lê com dificuldade os textos de Graciliano Ramos, José Lins do Rego, José Américo e Érico Verrísimo, e passa a colaborar nas revistas Vamos Ler e Cariosa. Trabalha como revisor na casa editora de livros infantis e no Diário Carioca. Em 1944, durante o período de três meses, escreve seu primeiro livro, o romance Sete Palmos de Terra. Seu segundo trabalho, Agonia (uma novela e alguns contos), é lançado em 1945. Um no depois, casa-se com Ideline Botelho e, em 1946, o casal tem o seu primeiro filho, Roberto.

 

 

Entre os anos de 1945 e 1946, Raymundo Souza Dantas inicia-se no aprendizado do francês, assiste à Convenção Nacional do Negro, evento que reúne a intelectualidade afrodescendente sob a liderança de Abdias do Nascimento (momento também em que a Constituinte eleita após o fim da ditadura Vargas implantava uma nova ordem jurídica no país) e começa a trabalhar em sem segundo romance, Solidão nos Campos. Em fins de 1947, descobre os autores católicos e começa a escrever a novela Vigília da Noite. O livro é concluído em 1948 e publicado no ano seguinte.

 

Em 1961 (ano em que 32 países africanos tornaram-se independentes), no governo do presidente Jânio Quadros, é nomeado Embaixador Extraordinário e Plenipotenciário do Brasil em Gana, na África, cargo que exerceu até 1964. Após a indicação do seu nome pelo presidente Jânio Quadros, porém, Dantas passou por uma ferrenha sabatina no Congresso da República. “O João Goulart, que era o vice-presidente da republica e também presidente do congresso, disse na ocasião para o meu pai ficar tranquilo, pois a oposição ao Jânio na casa votaria a favor dele, e realmente votaram. O PTB, na época votou, o PSD é que deu uma mancada com alguns votando contra. Mas no fim deu tudo certo, depois de uma sabatina de mais de duas horas na Comissão de Relações Exteriores do Senado Federal ele acabou tendo a nomeação aprovada por 7 votos a 1”.

 

Antes de ser indicado para ocupar o cargo de embaixador em Gana, Dantas foi nomeado como assessor do presidente Jânio Quadros. “Na época se falava oficial de gabinete, ele foi o primeiro negro a estar na assessoria direta do presidente da republica”, diz Dantas.

 

Um dos mais importantes registros da passagem de Dantas pela embaixada brasileira em Gana está documentado no livro África Difícil, um diário onde narra o que viu e viveu não apenas em Gana, mas também em outros países da África, apresentando episódios, registrando impressões, julgamentos e ideias sobre o discutido, mas ainda insuficientemente conhecido mundo africano, além de focalizar o que deveria ter sido, e não foi, a nossa política externa com Gana e com os demais países, então recém independentes, do continente.

 

 

Ao longo da vida, Raymundo Souza Dantas colaborou em vários jornais e revistas, tais como: Dom Casmurro, Vamos Ler, A Noite, Leitura, Diário Carioca, Revista Branco, Boletim Bibliográfico Brasileiro, entre outros.

 

A trajetória de superação de Dantas, seu legado intelectual e sua importância histórica enquanto primeiro embaixador negro do país ainda continuam desconhecidos por boa parte dos brasileiros, uma pena, pois trata-se de um referencial de extrema importância para os jovens negros de hoje que, tal qual Dantas e Benedicto Fonseca Filho (que em 2011 tornou-se o primeiro embaixador negro brasileiro de carreira), sonham em ser reconhecidos não pela cor da pele, mas por suas atitudes, qualidades, caráter e capacidade intelectual, virtudes de uma história que o tempo, nem tão pouco o fogo, apagará.

       

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Nabor Jr.

Nabor Jr. é fundador-diretor da Revista O Menelick 2° Ato. Jornalista com especialização em Jornalismo Cultural e História da Arte, também atua como fotógrafo com o pseudônimo MANDELACREW.

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.