dezembro de 2012

CONSCIÊNCIA NEGRA EM CARTAZ: 20 ANOS DEPOIS

Nelson Inocencio

 

 

 

 

 

Em tempos de ações afirmativas e, obviamente, cientes de toda a discussão que tais políticas públicas suscitam, nos parece oportuno revisitar o processo que antecedeu a este momento histórico, protagonizado pelo movimento negro e reforçado pelas parcerias deste com outros segmentos da sociedade civil no curso das últimas décadas do século 20. A leitura sobre os antecedentes das políticas de Estado direcionadas à população afro-brasileira aqui proposta tem como referência a perspectiva de uma cultura visual alternativa ao modelo eurocêntrico, pensada a partir da militância anti-racismo. Para tanto, aceitei o tentador convite formulado pela revista O Menelick 2º Ato no intuito de rever parte do texto referente ao livro Consciência negra em cartaz, resultado de minha dissertação de mestrado concluído em 1993, quando a conjuntura política era bem mais árida. O referido trabalho se assentava na análise de cerca de trinta cartazes produzidos nos anos oitenta e cujo foco era a valorização da imagem dos afro-brasileiros na busca de representações visuais que não projetassem este segmento como destituído de suas qualidades. Não por acaso, o terreno da cultura visual continua a ser até hoje, reproduzindo as palavras de Nilma Lino Gomes (professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais) ao abordar questões de imagem, uma permanente zona de conflito. E eu acrescentaria que nesta seara as imagens elaboradas pelo pensamento hegemônico, as quais nos formam e também nos colonizam, não passam mais desapercebidamente. Enfim, tratar deste assunto é percorrer laboriosas construções políticas, ideológicas e estéticas.

 

No que concerne ao movimento negro propriamente dito, vale dizer que, do ponto de vista conceitual, preferimos adotar a generosidade de Lélia Gonzales que alega existirem vários movimentos no âmbito do que chamamos movimento negro. Assim sendo podemos desenvolver algumas reflexões reconhecendo as circunstâncias que envolvem este movimento dentro do espectro com o qual estamos lidando.

 

Certa vez participando em uma mesa de debate em evento referente à presença negra no cinema, ouvi um crítico da área afirmar que do seu ponto de vista o movimento negro era uma cópia mal acabada do modelo estadunidense. Certamente divergi do seu argumento tecendo considerações sobre a dimensão do olhar ativista no caso brasileiro. Procurei explicar que acerca das visões para além das fronteiras nacionais o referido movimento procurava estabelecer vínculos identitários não apenas com a luta dos afro estadunidenses, mas dentro do seu projeto havia espaço suficiente para outras aproximações. A proposta do presente artigo é a de abordar esta resiliência que traduz, em certa medida, este movimento e contradiz o argumento de meu colega.

 

 

Por qual razão rejeito a ideia de que o movimento negro nascido aqui seria uma espécie de fake daquele originado nos Estados Unidos? Como um fenômeno que é produto  da contracultura nacional o movimento negro brasileiro contemporâneo assumiu um posicionamento que implica na ampliação do olhar como se a militância enxergasse o mundo a partir de uma lente grande angular. Isto possibilitou a constituição de uma macrovisão capaz de agregar tanto o local quanto o global.

 

Da perspectiva local as entidades negras se predispuseram a rever o passado (talvez inspiradas pelo significado do ideograma Sankofa). Os grupos organizados afirmaram a existência de lutas coletivas históricas como formação de quilombos, revoltas urbanas, irmandades religiosas, imprensa abolicionista, criação de agremiações e clubes comunitários no período pós-abolição, bem como valorizaram experiências posteriores a exemplo da Frente Negra Brasileira e do Teatro Experimental do Negro. Tais ações terminaram por colocar sob suspeita a intoxicada historiografia oficial, habituada a tornar invisíveis ou tratar com demérito as lutas populares do segmento negro.

 

As ações em âmbito local foram mais além, objetivando destacar que a população negra não se constituía em minoria, conforme os dados censitários existentes durante o regime autoritário. Aliás, diga-se de passagem, no período da ditadura, como qualquer assunto que perturbasse a “ordem”, a discussão sobre racismo também se constituía em subversão. Militantes negros atuaram na clandestinidade enfrentando dificuldades mesmo entre os movimentos revolucionários também entorpecidos pelo fenômeno que Luiza Bairros chama de determinismo econômico, ou seja, a crença de que todos os males de nossa sociedade advêm da luta de classes ou das iniquidades de cunho socioeconômico. Mesmo após o término do regime de exceção, ainda que a contribuição dos movimentos de contracultura no ocidente tivesse dado visibilidade à existência de outras categorias sociais para além da classe, está lógica continuou a perseguir a discussão política sobre relações raciais no país a ponto da pesquisadora Suely Carneiro afirmar em certa ocasião que: “Entre esquerda e direita eu continuo preta!”.

 

Em síntese a trajetória do movimento negro contemporâneo pode ser subdivida da seguinte maneira: em primeiro lugar o protesto/ denúncia, a fim de desconstruir o mito da democracia racial. Em segundo lugar o projeto/ proposta que significava pensar o país a partir do olhar ativista. Neste estágio são referencias A Convenção do Negro pela Constituinte em 1986 e a Marcha Zumbi dos Palmares: contra o racismo, pela cidadania e a vida em 1995 (Tricentenário de Zumbi). Em último vem o período da execução/ gestão pública, fato que apesar de significativo, da perspectiva das políticas públicas de combate ao racismo, não deixa de revelar tensões na relação entre movimento social e Estado. Se por um lado há um ganho em termos de dimensão simbólica quando negros, que são referências da militância, passam a assumir cargos públicos, por outro se instaura a sensação de cooptação política, posto que na condição de gestores suas ações ficam condicionadas aos programas políticos partidários que nem sempre estarão em consonância com as reivindicações do movimento social. Contudo, há que se considerar que caso essas pessoas não ocupassem os espaços conquistados (as chamadas brechas no entendimento gramsciano), outras certamente os ocupariam. Trata-se inegavelmente de uma questão paradoxal e complexa que não deixa de ser um dos desdobramentos da luta anti-racismo no Brasil.

 

 

Após falarmos sobre o desenvolvimento de uma consciência negra constituída a partir da experiência local importa destacar como o movimento negro contemporâneo brasileiro manteve-se concomitantemente informado acerca dos acontecimentos históricos internacionais desde a colonização. Certamente houve a reverberação de vários desses episódios no seio da militância negra formada em nosso país.

 

Aqui nas Américas podemos tomar como marco a memória da revolução em San Domingo, atual Haiti, comandada por Toussaint L’Ouvreture, fazendo daquela ilha o primeiro território livre do jugo colonial no chamado Novo Mundo, fato que se deu na transição do século 18 para o século 19. Também do lado de cá vamos observar posteriormente a contribuição do jamaicano Marcus Garvey e a emergência do pan-africanismo, protagonizado por ele e por outros como William Du Bois, cujo intuito era o de proporcionar uma aproximação, sobretudo, ideológica entre as sociedades afro-americanas e africanas no início do século 20. Aqui é oportuno fazermos uma pausa para explicar que, por afro-americanas compreendemos, assim como a antropóloga estadunidense Sheila Walker, toda essa complexa configuração das comunidades negras no Brasil, Colômbia, Venezuela, Equador, Peru, Uruguai, Guiana, Suriname, Cuba, Haiti, Jamaica, República Dominicana entre outras nações, além, obviamente, dos Estados Unidos, mas não restringimos o conceito de afro-americano a este último país, posto que as noções de identidades americanas precisam transcender as fronteiras de um único Estado. O uso do conceito americano para aludir somente aos Estados Unidos é, portanto, fruto da herança colonial.

 

Na primeira metade do século 20 o movimento conhecido como Negritude que teve como principais referências Aimé Cesaire, da Martinica, e Leopold Sedar Senghor, do Senegal, não passou desapercebidamente aos olhos do ativismo negro no Brasil. Nos anos cinquenta eclodem as lutas de descolonização africana. No processo deflagrado, Ghana sob o governo de Kwame N’Krumah, se torna o primeiro país independente. Neste fluxo acontecem várias emancipações, às vezes pela via da negociação, às vezes pela via do conflito armado. O período de descolonização continuou pelos anos setenta com a vitória pelas armas de Angola, Guiné-Bissau, Cabo Verde e Moçambique. Portugal manteve-se no atraso não acompanhando as mudanças. O governo colonial luso sofreu derrotas externas nos enfretamentos bélicos com as colônias rebeldes e internas a exemplo da Revolta dos Cravos que atingiu na base o legado salazarista. Outras independências viriam mais tarde a exemplo do Zimbabwe e Namíbia. Vários países africanos se tornaram independentes das metrópoles europeias. Nos embates políticos além de N’Krumah notabilizaram-se personalidades como Amilcar Cabral, Agostinho Neto, Sekou Touré, Jomo Keniatta, Samora Machel, Eduardo Mondlane entre outros. O fenômeno da independência fez surgir a Organização da Unidade Africana como instrumento norteador das relações entre as nações livres que nasciam naquele momento. Todavia, ainda perdurava o apartheid na África do Sul ceifando a vida de milhares de pessoas, algumas das quais se constituíam em lideranças importantes como Steve Biko, protagonista do Movimento da Consciência Negra. A derrota daquele nefasto regime só aconteceria no apagar das luzes do século 20 e sob enorme pressão internacional. O apartehid moribundo é abolido, Nelson Mandela deixa de ser preso político para se eleger presidente, nas primeiras eleições sul-africanas verdadeiramente democráticas. Mandela, no entanto, herda o ônus de governar uma nação multirracial depois do trauma e ainda intoxicada por décadas de intolerância imposta pela hegemonia branca. Como reflexo dessas lutas vimos ativistas afro-brasileiros registrarem seus filhos com nomes africanos, fenômeno que reforça a identidade com uma África descolonizada.

 

 

De volta aos anos cinquenta lembramos a luta pelos direitos civis e todos os enfrentamentos daí decorrentes. A despeito do que afirmou o colega que dividia a mesa comigo no evento sobre a presença negra no cinema, mencionado anteriormente, a solidariedade, e não submissão, do ativismo negro local com o protesto negro nos Estados Unidos é parte do processo, como esperamos ter argumento suficientemente no sentido de respaldar esta ideia. Sem dúvida a contribuição de Rosa Parks e o boicote da população negra ao transporte público, Martin Luther King e a marcha dos cem mil a Washington, Malcolm X e a radicalidade necessária, apesar das divergências com Elijah Mohamed e os muçulmanos negros que culminaram em sua execução, Stockley Carmichael como protagonista do Poder Negro, o surgimento dos Panteras Negras (Black Panther Party for Self Defense) e a valorosa contribuição de Bob Seale, Huey Nilton, Angela Davis e Eldridge Cleaver. Todos estes episódios fomentaram e inspiraram as lutas anti-racismo no mundo, inclusive no Brasil, onde a militância procurava desenvolver as estratégias possíveis visando superar o cinismo das elites nacionais que peremptoriamente negavam a existência de racismo em nossa sociedade. A tática empregada por tal segmento era a de afirmar uma pretensa fraternidade partilhada por negros e brancos apesar das discrepâncias históricas e sociais entre ambos segmentos.

 

Todas essas circunstâncias influenciaram a produção imagética no sentido de afirmar identidades negras de outra perspectiva. A partir do momento em que o protesto negro se adensa no mundo as identidades visuais construídas para negros passam a conflitar com as identidades visuais construídas por negros. Em outras palavras, as ações das elites nacionais, por exemplo, no sentido de aprisionar a população negra às imagens que a conectam ao ridículo, ao caricato, ao jocoso, ao exótico, algo que acontecia quase que impunemente, agora passam a enfrentar as vozes dissonantes, tendo que se deparar com a produção contra-hegemônica das imagens adversas. Estas constituem outro lugar de fala no qual negros não são mais objetos, porém sujeitos na elaboração de referenciais imagéticos valorizados.

 

Interessa-nos olhar o alcance atual desse episódio ocorrido em um passado recente. Não foi por acaso que houve um aumento significativo do número de autodeclarados negros no país. Sem ilusões e ingenuidade, é obvio que devemos perceber o oportunismo peculiar, produto do nosso tão celebrado jeitinho brasileiro, ante as possibilidades de políticas de ações afirmativas que se avizinham. Isto também tem impacto na autodeclaração. Como afirma a pesquisadora Viviane Coelho, existe uma nítida diferença entre afrodescendentes e afroconvenientes. Contudo, é preciso lembrar que mesmo antes da conjuntura atual constatava-se o deslocamento de pessoas negras que outrora não se sentiam confortáveis afirmando uma identidade vinculada ao segmento de origem. O movimento destas pessoas em direção à uma nova conduta marcada pelo auto-conceito positivo em relação ao grupo de pertencimento é perceptível antes mesmo do advento das cotas raciais.

 

 

Não se trata aqui de assumir nenhum determinismo imagético, mas devemos reconhecer que discurso verbal articulado a um valoroso repertório de imagens propiciaram avanços insofismáveis a ponto de percebermos mudanças de comportamento sintomáticas na população negra. É preciso não esquecer o alcance das imagens construídas por ativistas, ou elaboradas a partir das suas ideias. Elas muitas vezes denunciavam e concomitantemente sugeriam mudanças, chocavam e simultaneamente faziam pensar, a dor e a delícia de ser negro se refletiam nessas representações visuais. Tudo se dava com a firme intenção de afirmar o caráter não apenas nacional, mas também internacional da luta contra o racismo e ao mesmo tempo nos fazer pensar na constituição das redes de solidariedade entre negros, pois afinal, de acordo com Luther King: “Fomos trazidos em diferentes navios, agora nos encontramos no mesmo barco”. Este barco comum também leva a bordo os conteúdos da ideologia imagética. Ainda que, por força das circunstâncias diaspóricas, não falemos as mesmas línguas, certamente partilhamos imagens senão idênticas ao menos cúmplices entre si.

 

 

 

 

 

Nelson Inocencio

Professor Assistente do Departamento de Artes Visuais, vinculado ao Instituto de Artes da Universidade de Brasília. É Coordenador do Núcleo de estudos afro-brasileiros ligado ao Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares da UnB. Mestrado em Comunicação com a dissertação “Consciência negra em cartaz”, doutorando no PPG Arte da UnB, com estudo acerca do Museu Afro Brasil em São Paulo.

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.