julho de 2021

CINEMAS NEGROS FEMININOS (NO PLURAL) – UMA CONVERSA COM BÁRBARA CAZÉ

Marco Aurelio da C. Correa

 

 

 

 

 

 

 

Bárbara Maia Cerqueira Cazé é uma jovem mulher negra. Pedagoga, pesquisadora, fundadora do Cineclube Afoxé e da produtora Ofá. Mãe do pequeno Joaquim, organizadora do livro Mulheres Negras na Tela do Cinema (2020, Editora Pedregulho) e curadora de festivais de cinema Brasil afora. Em meio aos seus tantos afazeres, tive a honra de conversar com Bárbara sobre as imersões que ela vem fazendo no mundo do cinema, suas relações com a educação e a formação de mulheres negras.

 

Importante lembrarmos que o cinema brasileiro é marcadamente atravessado pelo cineclubismo. Não há como falarmos da existência de uma produção nacional sem tocarmos nessa experiência. Em um país onde as pessoas ainda tem dificuldade e pouco incentivo para frequentar salas de cinema, sobretudo para assistir filmes nacionais, a ação dos cineclubes expande o conceito de cinema para outras dimensões. É impossível também falarmos de cinema negro no Brasil sem aludimos a Luiz Orlando e Jorge Conceição, dois homens negros e baianos pioneiros no movimento cineclubista fora do eixo. A ação do Cineclube Afoxé, que mantém vivo o legado dos cineclubes que cada vez mais aparecem como bastiões das produções e distribuições de um cinema mais íntimo e realista é, portanto, fruto desse antigo percurso sedimentado por Orlando, Conceição e tantos outros.

 

Observando o cenário do cinema negro capixaba atual, percebemos com Bárbara, que diversas iniciativas confluem para criar, distribuir e comentar este cinema crítico e antirracista. Iniciativas como o Cineclube Teresa de Benguela, o Coletivo Damballa e as Mostras de Cinema Negro e África Contemporânea do Espírito Santo criam uma cena audiovisualizada que referencia e potencializa negras e negros locais.

 

Ecos de pensadoras como Conceição Evaristo, Patricia Hill Collins e Beatriz Nascimento reverberam nas palavras de Bárbara Cazé e outras mulheres negras contemporâneas que vem bebendo da fonte dessas matriarcas para – a partir da experiência cinematográfica expandida proporcionada pelos cineclubes – questionar tanto as desigualdades de raça e gênero, como para fundar uma sociedade mais justa e igualitária.

 

 

 

 

Nos fale um pouco do seu trabalho com o Cineclube Afoxé. Como você idealizou e gestou esse projeto?

Bárbara Cazé: Sou pedagoga desde 2010 aqui na Rede Estadual de Ensino do Espírito Santo, no mestrado fui investigar e pensar a prática profissional do pedagogo na escola movimentando o currículo. Quando cheguei lá vi que tinha algo que mobilizava os alunos e era muito forte, que era o Cineclube nome provisório. Fiquei tão encantada com o trabalho que o cineclube tinha na mobilização dos estudantes que mudei a minha pesquisa no mestrado e fui pensar o cineclubismo como um dispositivo de movimentar o currículo na escola. Ele agenciava estudantes, professores, as tensões, os conflitos e o currículo. Então quando acabei o mestrado pensei que essa fosse uma estratégia interessante para ser usada em vários outros contextos. Em 2017 eu já fazia parte do movimento de mulheres negras e nessa época tínhamos um grupo de amigas que fazia um trabalho no centro de Vitória. Só que nosso trabalho era muito na garra, na dificuldade, sem dinheiro.

A gente tirava do bolso pra fazer umas ações até que apareceu um edital da secretaria de cultura. Daí vi que tínhamos condições de escrever um projeto e minhas amigas toparam. Então foi assim que nasceu o Cineclube Afoxé, a ideia era inicialmente conversar com mulheres, mas ainda faltava definir qual o dispositivo iria mobilizar essas rodas de conversas. Com isso decidi me debruçar sobre o cinema negro porque já tinha entendimento de que para as mulheres negras não é qualquer cinema que nos atenderia. E a pesquisa pra fazer a curadoria pro Cineclube Afoxé foi me dando dimensão do cinema negro. Percebi assim que minha viagem estava mais na curadoria do que no trabalho com as mulheres. Então essa parte de procurar filme, de conversar com diretores, de entender a história dos filmes, de selecionar esses filmes… enfim, isso me dá muito mais tesão.

 

“(…) de 2017 para cá cresceram a quantidade de grupos que trabalham com cinema negro (no Espírito Santo). Tem o Cineclube Teresa de Benguela, a Mostra de Cinema Negro do Espírito Santo, a Mostra África Contemporânea, o coletivo Damballa que foca na produção e realização de filmes (…)”

O trabalho do cineclube tem uma repercussão, como o livro Mulheres Negras na Tela do Cinema, pensando em não encerrar as discussões no fim das sessões do cineclube. Existe o efêmero do debate. Muitos dos filmes que exibimos já estão disponíveis no youtube, mas o debate não tem como se repetir. A visibilidade está também em vermos que desde 2017 para cá cresceram a quantidade de grupos que trabalham com cinema negro. Tem o Cineclube Teresa de Benguela que está em sintonia com a gente no trabalho com mulheres negras. Tem a Mostra de Cinema Negro do Espírito Santo que já está há uns dois anos realizando seu trabalho. A Mostra África Contemporânea que se dedicou ao cinema atual do continente africano. Tem o coletivo Damballa que foca na produção e realização de filmes. Listei cinco grupos só da grande Vitória, mas não sei exatamente como acontece no interior do estado. Cada um trabalha com uma especificidade, mas estamos sempre nos encontrando, exibindo os filmes uns dos outros nas mostras e festivais. As pessoas de alguns coletivos estão na organização dos eventos, como a Mostra de Cinema Negro do Espírito Santo.

 

 

 

A itinerância do Cineclube Afoxé acontece em diversos espaços da Região do Centro Vitória, no Espírito Santo

 

 

 

Como você observa a importância das mulheres negras escrevendo sobre cinema, pensando nesse processo que culminou no livro Mulheres Negras na Tela do Cinema? Reconhecendo que no espaço da crítica cinematográfica temos pouca visibilidade da escrita de mulheres negras, e não só da crítica cinematográfica, mas no espaço da escrita acadêmica de maneira geral, já que as mulheres são maioria em relação ao quantitativo de homens negros.

BC: Venho pensando ultimamente como o conceito de escrevivência, da Conceição Evaristo, pode ser usado para produção de cinema das mulheres negras. Escrevivência é uma narrativa que parte do que foi experimentado no corpo individual e coletivo de mulher negra, do que foi vivido, do que foi narrado em algum momento. Essas narrativas vão forjar novas subjetividades sobre a negritude, sobre ser mulher negra. É um olhar que é atravessado por essa dupla condição, que nos coloca como uma outsider pensando aí com Patricia Hill Collins, então vamos produzir da periferia. Acho fantástico que mulheres façam isso porque quando uma se liberta, liberta o coletivo e encoraja outras mulheres a fazer. Eu acho que fui também me lançando nesse lugar de pensar o cinema tomando coragem porque via outras mulheres fazendo. Acho também que a idade vai chegando e vamos nos autorizando fazer algumas coisas. Eu tinha muita insegurança de me lançar, me colocar e me expor. A ideia do livro me ocorreu vendo essa coisa do efêmero do debate que acaba, mas não se esgotava, seguia em nosso corpo, em nossas conversas.

Assim eu falei com umas amigas que participaram das ações do cineclube e toparam escrever o livro, mas o dinheiro era uma questão para publicação dele. Então me dispus a escrever um projeto pra edital e conseguir esse dinheiro. E foi o que aconteceu, o livro estava pronto antes do edital ser aprovado. Foram mulheres que se autorizaram a escrever a partir dessa minha ousadia, mas eu demorei meses para me autorizar a fazer isso, não sabia se estava preparada para críticas.

Talvez eu não teria a ousadia de fazer um livro autoral como você fez, mas o homem ocupa um outro lugar também. Como era a organização e muitas parcerias toparam, eu me senti segura. Então seguimos em bloco para estarmos mais fortalecidas e confiantes. O que tenho pensado sobre ser mulher, entender, se colocar e atuar no mundo é a partir do conceito de escrevivência, o ampliando para pensar cinema também.

 

 

Venho pensando ultimamente nesse encontro com o professor, o cineasta e o griot. Sabendo que o griot tem essa função de criar um sentido de união pra comunidade. Griot são várias funções dentro de uma só, como é que você observa professores e cineastas funcionando como griots?

BC: Eu penso no cineasta como griot. Um griot contemporâneo. Alguém que é responsável por guardar e produzir memórias. Quem conta história também guarda memória e passa essa história. Pensando nessa imagem de alguém que guarda memória de um coletivo, o cineasta está nesse lugar, mas não sei se o professor também está. Porque hoje, com as condições de trabalho do professor, muitos deles não tem relação com a comunidade. Eu acho que o griot tem esse elemento, porque como o guardião da memória, ela tem que ser uma memória coletiva e comum. Então você precisa ter relação com aquela comunidade para conseguir ser esse responsável por guardar a memória.

 

“A ideia do livro me ocorreu vendo essa coisa do efêmero do debate que acaba, mas não se esgota, segue em nosso corpo, em nossas conversas”.

Nesse sentido eu não sei se o termo griot atende ao trabalho do professor. Mas o cineasta sim. Isso é muito ruim, porque quando o professor tem relação com a sua comunidade e ele está dando aula pra sua comunidade a relação é outra. Com a educação, com o envolvimento com os alunos, com comprometimento. Pensando no cineasta negro, sinto que há uma preocupação a partir da produção de pensar novas narrativas, produzir novas subjetividades a partir daquelas imagens. Não posso essencializar de jeito nenhum. Cada um é um universo e aí tem universos mais conectados politicamente a uma profissão política mesmo. Uma atuação política enquanto profissional e outros menos vinculados a isso.

 

 

 

 

 

 

Vendo o festival que você organiza, o Cinema também é Quilombo, queria saber como você entende o cinema negro como um quilombo.

BC: Tenho pensado a partir do conceito da intelectual Beatriz Nascimento, da ideia de quilombo como comunidades existenciais, de resistência. Nesse sentido, cinema feito por um cineasta negro pode ser considerado um quilombo, mas nem todos são. É como um griot, não é porque é feito por um cineasta negro que pode ser considerado um quilombo. Porque o quilombo, como uma aposta política e estética, passa por muitos lugares sem cair no essencialismo. Mas acredito que no Brasil muitos cineastas estão trabalhando a partir desse conceito, com apostas, com ousadia e com o corpo implicado. Esse festival nasceu porque eu já queria fazer algo nesse sentido há muito tempo, porque no cineclube temos a itinerância que é muito legal e tudo, mas é muito cansativo. Não vou atingir  quem eu atinjo na itinerância, mas em algum momento me ocorreu em fazermos um festival. Escrevi o projeto e foi aprovado na Lei Aldir Blanc e vai acontecer. Convidamos outras mostras pra fazer a curadoria, então a programação tem um perfil específico de cada uma delas, sem perder a ideia da comunhão existencial do quilombo.

 

“Quando vou trabalhar com cinema e seleciono filmes com protagonistas negros, quero que os meninos negros vejam, mas que os meninos brancos também vejam que há outras possibilidades de existir, ser feliz (…)”.

Esse conceito de quilombo de Beatriz Nascimento é algo que ainda me mexe o coração, porque acho que tem tudo a ver com escrevivência também. Quando estou escrevendo a partir desse corpo de mulher negra estou produzindo uma narrativa de resistência. Estas são narrativas que compõem o quilombo existencial, ele é um lugar de irmandade, eles dialogam e tem a ver também com os próprios valores civilizatórios africanos na questão da circularidade. Esses valores atravessam meu corpo, mesmo que não esteja pensando neles de modo intencional. Acho fantástica a possibilidade de brincar com as linguagens, não faço cinema com pretensões. Eu sou pedagoga, pesquisadora e escrevo sobre essas experiências, tenho entendido cada vez mais o lugar da pesquisadora como esse da escrita. Podemos nos autorizar a experimentar, posso errar, mas o importante é estar se divertindo.

 

 

 

Bárbara Cazé

 

 

 

Pensando na curadoria como um ato de cuidado, como é que você acha que o cinema negro pode tocar o coração das nossas crianças?

BC: Eu sou uma mulher negra, me casei com um homem branco e tenho um filho branco. Quando meu filho nasceu já tinha muito material e conhecimento de literatura e filmes para crianças. Para mim é uma questão importante que ele entenda essa diferença de ter um pai branco, uma mãe negra e de como que ele está no meio disso tudo.

Quando vou trabalhar com cinema e seleciono filmes com protagonistas negros quero que os meninos negros vejam, e quero os meninos brancos também vejam que há outras possibilidades de existir, ser feliz e se aventurar sendo um menino negro. Eu exibi A câmera de João, de Tothi Cardoso, que é sobre um menino que vai se aventurar na cidade tirando foto. Olha que coisa maravilhosa. Ser um menino negro que pode transitar pela cidade, sem medo, pois não vai ser pego, não vai tomar um tiro… Eu penso que o cinema está nesse lugar da possibilidade de fabular. Atuar contra o racismo é esse movimento de resgatar nossa humanidade, então o menino negro que corre, que brinca, que apronta é uma criança, então ele está liberado. Eu quero que os meninos sonhem, fabulem e delirem.

 

 

 

 

 

+ @cineclubeafoxe

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Marco Aurelio da C. Correa

MARCO AURÉLIO DA CONCEIÇÃO CORREA é pedagogo pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Pesquisa sobre as confluências estéticas do cinema negro e a educação para as relações étnico raciais.

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.