março de 2020

GUMBO E FEIJOADA: VISAGENS E DESCOBERTAS, COLAGENS E MIRAGENS, CONCEITOS E IMAGENS, NAS TERRAS DE SUN RÁ E ANGELA DAVIS

Salloma Salomão

 

 

 

 

 

fotos chuk martin

 

 

 

 

 

 

 

Dedicado à memória de Monika Jun Honma.

 

Não me parece possível ler adequadamente um agrupamento humano, sem um longo convívio, sem acessar sua língua e outros códigos cozinhados na sua autoconstrução. Sem isso, nos restam as impressões, sentimentos, confirmações ou o descarte de preconceitos e outras prévias vestidas em noções gerais, quadros provisórios e parciais. Ainda assim, muitas vezes, precisamos pintar tais quadros de superfície das paisagens e configurações humanas do mundo. Principalmente, quando conquistamos, sem grande orgulho, algum tipo de cartão de trânsito ou salvo conduto. Um passaporte carimbado, por exemplo.

 

Sim, quase nunca vamos além das “cercas embandeiradas que separam quintais” da humanidade. Um mundo murado, monetarizado e racializado, impedindo deslocamentos. Então camadas e camadas de complexidades marcam as figuras e blocos humanos, mesmo quando totalmente desumanizados. Mesmo quando vistos como um grupo dentro do outro; em sub e subgrupos por cor, raça, sexo. Divididos infinitamente por gênero, geração, interesses, poder, cultura, jeito de corpo e modos de espírito. Mesmo quando desfigurados e inversos no espelho, ainda assim são parecidos, dessemelhantes pela cultura. A única e real criação humana. Deus, o metal, o comércio, o sexo de quatro minutos, as expressões de artes e a cultura.

 

“Um dos aspectos mais cruéis impostos aos humanos é a paisagem confinada. Uma vida bem vivida precisa de horizonte todos os dias”.

Um dos aspectos mais cruéis impostos aos humanos é a paisagem confinada. Uma vida bem vivida precisa de horizonte todos os dias. Em fins de julho de 2019, nossa trupe embarcou no Aeroporto Internacional de Guarulhos e lançamos âncora em Atlanta (EUA), dali viajamos de carro para a cidade sede do projeto, onde fomos confortavelmente hospedados. Essa introdução um tanto didática, peço desculpas, visa situar relativamente minha leitora sobre as situações e observações que fiz ao longo dos dias e publiquei na rede social. Aqueles microrrelatos é que deram origem a este texto, que submeto à sua gentil apreciação. Quero dizer, peço sua condescendência para com as brechas, imprecisões, erros de julgamento e má grafia.

 

Mas, de outro lado, trata-se ainda de uma escrita quente, quer dizer, sob a brasa da emoção do tal feito, qual seja, visitar e pisar o mesmo chão por onde andaram lendárias figuras políticas e artísticas negras, pessoas reais cujas imagens heróicas foram difundidas a partir de dentro do império, são histórias vinculadas à internacionalização das lutas antirracistas e à dimensão global das artes negras e afrodiaspóricas do século XX.

 

No Brasil e nos EUA os hipócritas projetam mais concentração de renda onde nunca houve decência. Mentem, ameaçam, prevaricaram abertamente, chantageiam, matam e permitem matar. Mas se há algum governo que esteja efetivando, talvez seja a governança moral neoevangélica da Babilônia Mundi. As repúblicas teológico-militar-comerciais são bastiões digitais de controle dos desejos, dos impulsos e sonhos coletivos de uma maioria à deriva, de uma banda medrosa e da diminuta ala da gritaria (onde eu fico). Temos um barco de pedra sobre um rio sólido, nunca havendo correnteza nem remanso. Nessas paisagens e topografias monótonas escaneadas, quem poderá ansiar pela manhã de fartura, ternura e lirismo?

 

 

 

 

Quem há de vir nos salvar? Sun Rá? Quem? Afro o quê? Afroconsumismo? Afroportunismo? Afrofortunismo? Onde? Quando? Que diálogos criativos podemos ter hoje com os criadores e criadoras dissidentes de ontem? Qual extensão geográfica das águas negras? Estamos falando de Beatriz antes e Gilroy depois. Elas, Angela e Beatriz, inundaram o mundo atlântico navegando; nós boiaremos na superfície por mera preguiça imaginativa? Vamos para o fundo das águas com escafandro. Na superfície só tem dejetos e escombros.

 

Luciano de Jesus é um jovem diretor e ator afro-índio das beiras da metrópole, ligado às experiências e pesquisas teatrais criadas e difundidas desde finais dos anos 1970 por Jerzy Grotowsk. Doutorando pela Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo, sua pesquisa caminha entre fundamentos do WorkCenter e antiquíssimas cantigas negras das Minas Gerais. Uma forma singular de canções tradicionais conhecidas de maneira genérica como Vissungos, cujas referências são dois dados relativamente difundidos no meio dos aficionados em música negra no Brasil. Um grupo musical ativo desde a década de 1970 no Rio de Janeiro, batizado por esse mesmo nome, sob a regência do etnomusicólogo e multiartista Antonio do Espírito Santo. Outra referência é o disco editado pela gravadora Eldorado nos fins dos anos 1980, sob o título O Canto dos Escravos. Tal disco reuniu nomes conhecidos do meio fonográfico para que fizessem arranjos novos para canções grafadas (muitas vezes mal grafadas) pelo folclorista mineiro Aires da Mata Machado, na primeira metade do século XX, e publicadas algum tempo depois.

 

“(…) nós boiaremos na superfície por mera preguiça imaginativa? Vamos para o fundo das águas com escafandro. Na superfície só tem dejetos e escombros”.

Fato é que me filiei ao projeto criado e dirigido por Luciano de Jesus, ao participar de uma oficina de performance ministrada pelo diretor estadunidense Lloyd Bricken, realizada em 2018, no espaço da Companhia Heliópolis de Teatro, situada na zona Sul de São Paulo. Naqueles encontros trabalhamos cantigas do sul dos Estados Unidos conhecidas como Southern Songs, dentro do gênero Spirituals. Fui convidado a acompanhar parte do grupo numa série de workshops e trocas com artistas da cidade de Birmingham, no estado do Alabama (EUA), entre finais junho e início de agosto de 2019.

 

O recurso para viagem foi obtido por meio de vaquinhas na rede social e um valor baixo, mas imprescindível, junto ao edital ProACSP, que nos permitiu o deslocamento sem custos financeiros pessoais. Lloyd Bricken se incumbiu de nos receber em sua casa e elaborar uma programação que nos permitisse interagir com pessoas e artistas da região no sul do país, na cidade que é a maior em densidade demográfica naquele estado, conquanto não seja capital.

 

Lloyd Bricken é grande diretor de teatro e um artista pleno do seu próprio saber teatral musical, conquistado no WorkCenter e na tradição iniciada por Jerzy Grotowski. Tem um olhar amplo, humanista e um senso de liderança formado na cultura do seu país, que para nós parece um tanto pragmática ou mesmo dura. No entanto, carrega também grande capacidade de audição e um certo cuidado no olhar. Poderia dizer um toque de certeza, suavidade e carinho que imobiliza a intransigência e abre caminho entre a dureza da vida e os sonhos mais poéticos. Bricken se colocou numa prova de fogo em nome de um projeto criativo com seu irmão de trecho Luciano Mendes de Jesus. Receber por um mês seis figuras incógnitas em sua casa e fazer base para vivências nos arredores de Birmingham foi seu desafio. Nos fortaleceu uma imersão pouco comum a artistas afroperiféricos, por razões que nem preciso enfatizar. Tudo se transformou numa aventura, com picos de suspense, reviradas e surpresas nem sempre boas. E quando foi nos despachar para New Orleans, era bonito ver o verde sulista dos seus olhos d’água gotejando por conta das partidas de uns malditos mamelucos, crioulos e crioulas brasileiras. O termo gratidão tão banalizado no comércio de bens e serviços pode ser bem aplicado nesse caso. Estou começando pelo fim. Então, senta que lá vem um pouco da história. Ao contá-la, também agradeço algumas das personagens que marcaram o percurso. Lillis Taylor, que gentilmente nos ofereceu sua casa nos arredores da cidade e nos aproximou de seu ateliê, onde trabalha ao lado de mulheres negras na criação de belíssimas obras de tecido, numa pesquisa que tem tudo a ver com apontamentos já feitos por Robert Farris Thompson sobre aquilo que denominou “tecidos ritmados”. Aquelas colchas e roupas de retalhos que nossas avós faziam com aproveitamento de retalhos de tecido industrial no século passado, que por vezes aparecem em língua inglesa com patchwork, e nos sul dos EUA, fazem parte de uma tradição ligada a pessoas oriundas da África do oeste, as Quilts; suas criadoras são chamadas Quiltmakers. Em larga medida nossas culturas e artes negras e diaspóricas podem ser representadas por essa imagem-signo, colcha de retalho.

 

 

 

 

Beleza tem em tudo. Até naquilo que a norma diz que não tem. Dividi meus dias aqui, nos Estados Unidos, com uma turma maravilinda. Entre eles quero agradecer publicamente a Naruna Costa, que já me deu a honra em vida de ler trechos de poema meu que fala sobre canções-canoas que me levam por aí. Tais canções de libertação me conduziram a Birmingham, Selma, Menton, GeesBend, Tuskeege e arredores, quase sempre beirando o Rio Alabama. Tudo bem. Numa noite, caviar; noutra, salsicha apimentada. Numa, o racismo local; noutra, o amor e a solidariedade afrocosmopolitas. Uma gamela de Gumbo bem quente, com pimenta. Alguém pensou em feijoada com frutos do mar. Peter Fry adeus.

 

“Quem me conhece desde a juventude sabe dessa minha contradição básica, uma crítica e repulsa radical ao imperialismo estadunidense e, ao mesmo tempo um encanto quase infantil, uma profunda admiração pelas culturas negras e história dos descendentes de africanos dos EUA”.

Mas tudo era calor e vento mateiro naquele sul das florestas Apalaches, enquanto gelava em São Paulo e dentro do hospital da Universidade do Alabama onde fiquei uma tarde-noite, no choque emocional de ar-condicionado. Diabetes criando barulho, chatice e células cansadas de mim. Depois tudo bem. Tudo que foi visto eu levo sob a retina, o que foi vivido abaixo da primeira pele. As pretas velhas com seus timbres vindos da quase Kalunga, os contrapontos resultados de labores criativos seculares. Os campos mortos de algodão e suas memórias de sangue negro. As beiras de estrada e dois policiais brancos à espreita, doidos para aplicar seu ódio em cenas que não cabem bem nem em filmes de ficção sobre a kkk. E os olhos cinza e marejados de velhos homens negros, olhos cansados de tudo que é e se arrasta no tempo de uma vida. E novamente as cantigas. Elas ainda nos levaram para New Orleans e depois New York. Parece turismo e festa, mas juro que é de trabalho duro que se trata. Minto. Nem é trabalho, não é tão duro.

 

Para encurtar a lista de agradecimentos vou recortando a lista já publicada por Luciano Mendes de Jesus, uma vez que somos muito gratos aos artistas estadunidenses que nos receberam, quais sejam: Derrick McKenzie Jr., Ej Marable, Shaunteka LaTrese, Latrisha Fee-Fee Redmon, Ashley M. Jones, Jahman Ariel Hill, Jacob Scott-B’ham, Kawmane TheArtiztic, Ardreana Thompson, Mace e Vicky, Edmond Barry Johnson, John Paul Taylor e Patrick Johnson (Real Life Poets), Micah Briggs, Afriye Wekandodis, Ianna, Marie e Allen (Marion), Yogi Dada, Pamela Chu (Victor), Tony M Bingham, Beth McGinnis, Joanne Bland, Rhonda Collier, Victor Specine, Muhjah Shakir, LaDonna Smith, David Murray, Emma Brooks, Tres Taylor, Mama Knox Bricken, Richard Clay Carmichael e Jimmy (nosso grande anfitrião em Selma). Agradecemos especialmente a um velho livreiro chamado Charlie, da cidade de Selma, que nos presenteou com livros e também ao capoeirista brasileiro Fabio Melo, pela sua confiança em ceder especiais instrumentos de percussão. Burgin Mathews, que nos recebeu em seu programa de rádio Lost Child. O preconceito, desrespeito e distrato racial já fazem parte do pacote e nem merecem saliência.

 

Recortando ainda o texto de Luciano, fomos especialmente recebidos pela Freedom House e East Village Arts of Birmingham (Birmingham), By the River Center for Humanity (Selma), Back When (Marion), Tuskegee University e Metropolitan AME Zion Church. Pessoas delicadamente atenciosas como Marie Anne Petway (coordenadora da Gee’s Bend Quilters Collective); Gloria e tantas outras vocalidades de velhas senhoras e senhores das quais não pudemos guardar os nomes nas cantorias de Marion, mas guardamos as vibrações; músicos de Birmingham e Tuskegee, especialmente a professora doutora Rhonda Collier.

 

 

 

 

Quem me conhece desde a juventude sabe dessa minha contradição básica, uma crítica e repulsa radical ao imperialismo estadunidense e, ao mesmo tempo, um encanto quase infantil, uma profunda admiração pelas culturas negras e história dos descendentes de africanos dos EUA (evitando ser um paga pau, um americanófilo bocó). Ângela Davis nasceu em Birmingham, núcleo duro da Jim Crow e ao mesmo tempo nascedouro de um ponto de bifurcação da luta por cidadania daqueles que mais deram seu sangue para a construção do “grande país da prosperidade”. Estar em um núcleo artístico nesse lugar tem profundo significado político e simbólico para mim. Nós, descendentes de africanos no mundo, temos sido mantidos quase dentro das maiores conquistas da modernidade, no entanto sem poder tocá-las plenamente com nossas próprias mãos. Temos uma história de dedicação e incansáveis esforços para forjar um mundo justo, seguro e aberto para todos, enquanto os pensamentos e práticas mais arcaicas da branquitude devoram ou derrubam, dia a dia, nossos desejos mais puros.

Tributo a Martin Luther King, uma canção do rádio na infância dizia: “Luta de negra demais, para sermos iguais (…) Uma canção também se luta irmão”. Simonal cantando uma composição feita por brancos de alta classe. Mas, como eu não sabia desse detalhe, entendia essa mensagem negra como vinda de um homem negro para um menino negro, eu. Wilson Simonal conversava direto comigo na infância, todo o resto era irrelevante. Agora eu podia andar pelas mesmas ruas onde lutou o Reverendo King, passar pela cidade-paisagem sulista onde nasceu Coreta.

 

“Nós, descendentes de africanos no mundo, temos sido mantidos quase dentro das maiores conquistas da modernidade, no entanto sem poder tocá-las plenamente com nossas próprias mãos. Temos uma história de dedicação e incansáveis esforços para forjar um mundo justo, seguro e aberto para todos, enquanto os pensamentos e práticas mais arcaicas da branquitude devoram ou derrubam, dia a dia, nossos desejos mais puros”.

O racismo foi criado e desenvolvido como justificativa de práticas de violência, exploração e submissão de populações não europeias. Tornou-se uma ideologia sedutora porque o medo tem sido a principal arma das instituições que operam de forma massificada os desejos e os medos coletivos, quais sejam, a igreja, o Estado, as Corporações e suas afiliadas. Há uma lógica tão simples no pensamento racial que pode ser reivindicado como autodefesa de forma inconsciente, até mesmo pelas suas vítimas.

 

Por muitas vezes o racismo antinegro me pareceu uma prisão extensiva ao mundo todo. Agora mesmo estou descobrindo que, embora este tenha realmente dimensão global, há pequenas e tangíveis zonas livres conectadas, onde a intercomunicação ativa e efetiva, podem nos fornecer momentos de suspensão e refresco. Então pergunto, quando e onde construímos perspectivas do mundo que estamos desenhando com nossos desejos mais livres?

 

Ao todo foram aproximadamente quarenta dias de “garimpagens culturais” em Birmingham, carinhosamente chamada pelos locais de “Magic City “e cidades do entorno. Nesse curto período de tempo houve dois assassinatos em massa naquele país. Esse clima de violência mal repercutiu lá onde estávamos, com quem convivíamos. Contudo, ainda se pode ver as imagens de memória sufocante de uma sociedade onde a justiça pode ser escrita a bala em nome da civilidade, tanto em casa quanto no mundo. Isso não impediu, no entanto, que efetivas trocas culturais criativas fossem horizontalmente realizadas entre o grupo de artistas brasileiros e alguns nomes que enumerei anteriormente.

 

Black Madonna em gesso policromado. Objeto mantido numa casa-instalação por uma artista ativista chamada Afree. Ela visitou Gana algumas vezes, tendo se tornado uma guardiã individual da memória das lutas dos direitos civis em Selma. Sua casa-ateliê-instalação é composta de fotografias, imagens, colagens, pinturas, objetos vários. Fragmentos, colagens de africanidades, com destaque para diferentes imagens de Yemonja numa camarinha especial, onde se entra, se convidado por ela. Eu fui. A Black Madona se aproxima de Nossa Senhora do Rosário, figura-emblema dos Congados e Moçambiques do Sudeste e Centro-Oeste do Brasil. Subversão? Cooptação? Aculturação? Camuflagem?

 

Na atualidade dinâmica quase tudo vira lixo em dois dias. Apodrecimento envenenado das relações micro e macro. O que se atente sobre todo chorume dos desejos e frustrações pode ser localizado apenas em fragmentos de velhas cantigas que circulam nas frequências de ondas curtas e discos de vinis, a despeito do mundo digital que se quer único.

 

Poderia ser uma cultura imagética negra atual de cunho kitsch? Uma criação nova, releitura a partir da difusão do cristianismo. Mas se fôssemos à raiz do cristianismo, na fonte africana do Santo Moisés, por exemplo, um filósofo cristino remoto, um mártir, homem negro ou de outros conteúdos da filosofia copta? Tudo ficaria um pouco mais confuso e interessante, porque se trata de teogonias profundamente marcadas por raízes africanas muito profundas e veladas pelo eurocristianismo medieval e renascentista (Veja História do Cristianismo, de Alain Corbin, por exemplo). Mas, mesmo numa guerra religiosa, as armas de fogo têm primazia sobre o conhecimento.

 

 

 

 

Tem um lugar em mim em que a mais simples manifestação da fé me pega e vira. Quando a devoção tem um ritual com gente preta, é bem fundamentado no senso comunitário e na música. Eu choro, me perco e me entrego totalmente e fico muito confuso. Minhas maiores certezas se desconectam umas das outras e vagam no mundo. Naqueles minutos tudo vem no turbilhão de sentidos-pensamentos. Meus antigos me levaram uma ponta de ceticismo e uma educação popular afro-brasileira humanista, quero dizer, aceitação sem grandes tensões de diferentes sentimentos religiosos num mesmo ambiente. Então, a devoção sincera se torna comovente em si mesma. Meus pais memórias, meu povo delírio e suas lutasensejos, o desejo de intervenção de uma força super capaz de revirar tudo e pôr no lugareixo, como se de fato houvesse algum… as injustiças repetidas em flash back, os nossos infortúnios coletivos mais severos, o sonho de cessar opressor e revelar um tempo de chuva branda, um cheiro de amor minúsculo saído da terra quase sempre árida, ou qualquer outro sentimento de redenção dos que sofrem, para alívio dos corações vagabundos, errantes e atormentados como o meu. Vou até o limite dos meus paradoxos internos mais radicais nesse devaneio. Depois, volto ao meu estado normal já consolidado de incredulidade, ateísmo e revolta-impotência. Visitamos a igreja Africana Metodista Episcopal de Birmingham. Ganhei um hinário pensando ser uma bíblia negra de Sião. Saí dali feito o menino que já me fui, preparando uma mochila-bornal pra viagem de férias, casa de uma tia.

 

Deixa pra lá. Ainda assim. Tenho meditado solitário sobre uma dimensão da existência humana: a experiência mística. Devo admitir certo salto cognitivo recente. Olhando com delicada atenção o papel da música na metafísica afrodiaspórica. No sul dos EUA a relação entre a experiência mística e a luta contra a escravidão e também em todo o século XX, o caminho resignado seguido pelos pregadores e reverendos na busca de justiça e igualdade, me leva a reformular o olhar sobre figuras misteriosas da passagem do escravismo e monarquia para as desigualdades programadas da República. Quero dizer que João Camargo, por exemplo, ou mesmo Antônio Conselheiro poderiam ser localizados numa outra semântica onde a fé pudesse ser interpretada sem os preconceitos do positivismo e do racismo científico vigentes até meados dos anos 1960.

 

“Tem um lugar em mim em que a mais simples manifestação da fé me pega e vira. Quando a devoção tem um ritual com gente preta, é bem fundamentado no senso comunitário e na música. Eu choro, me perco e me entrego totalmente e fico muito confuso. Minhas maiores certezas se desconectam umas das outras e vagam no mundo”.

 

Cadinhos de Africanidades no sul dos EUA. Em Selma perto da ponte das Marchas. Já na despedida. Garrafas coloridas num arbusto seco, instalação improvisada na entrada do parque público (abandonado) dedicado aos soldados negros massacrados na guerra civil da elite branca. Esculturas de figuras femininas de madeira parecidas com outras tantas compradas em Dakar, Lisboa, Paris. Um santuário muito simples, mas em tudo lembrando um assentamento. Num centro cultural de uma memorialista há tecidos industriais com motivos “africanos” adornando cadeiras, mesas e sofás. Máscaras em tudo similares àquelas que a amiga trouxe do estrangeiro, ela achou que tinham a sua cara. Um djembé quase igualzinho àquele vendido na Praça da República. Nada disso é ridículo se confrontado com os quadros renascentistas de palácios europeus ou cenas bucólicas de mulheres brancas rechonchudas transformadas em calendários e reproduções de um mundo racial asséptico e brancocêntrico.

 

Em que momento o mundo afrodiaspórico começou a juntar esses objetos como parte de uma cultura negra mundial? Quais critérios orientaram tais formas de seleção? Cromatismo, formato, valor, conteúdo? Terá sido possível elementos visuais difusos, mas potencialmente demarcados por africanismos visuais remotos? Marchas de Marion, Selma e Montgomery. De boca quente a palavra viva (como queria A. H. Ba). Derivar sobre a cidade de Selma é em certa medida uma verdade parcial sobre a marcha. A marcha não foi uma, mas várias. Não começou em Selma, mas num vilarejo erigido em torno de uma pequena igreja erguida por ex-escravizados, em Marion. Então, a narrativa centrada apenas na figura, sem dúvida heroica de Martin Luther King libertador, ofusca toda uma outra luta pregressa liderada por mulheres negras.

 

 

 

 

Boicotes do transporte público, boicote do comércio exclusivo dos brancos abastados, protestos tão corajosos empreendidos tanto por mulheres quanto por crianças. Sim, meninas de 10 anos eram encarceradas em represálias. Tivemos a oportunidade de conversar com uma senhora septagenária, que quando tinha 11 anos foi presa várias vezes porque suas irmãs, um pouco mais velhas, a levavam para os protestos. Estratégias que envolveram um alto nível de sacrifício individual e coletivo. Joane é história viva da resistência negra no coração da terra preta na beira do Rio Alabama. Quando o Dr. King Jr chegou a Selma com todo o seu imprescindível apoio, a cidade já estava aquecendo as brasas do levante há vários meses. O direito ao voto nunca deixou de existir como perspectiva dos citadinos e urbanas negras do velho sul. O bolo teve o seu fermento longamente resfriado pela opressão, medo método, violência e terror racionalizado em práticas e tradições do velho sul.

 

Historicamente, sabemos quando uma sociedade se torna refém de fascistas. Quando a intercomunicação em todos os espaços da vida social é reduzida aos elementos mais ordinários das linguagens, assim interditam toda a capacidade de crítica e reação em nome de um suposto mal menor. Essa operação foi feita na origem da República, durante as ditaduras e agora. Daí nosso impasse.

 

 

 

 

 

 

 

Salloma Salomão

SALLOMA SALOMÃO JOVINO DA SILVA é intelectual público afro-mineiro, músico, dramaturgo e professor de História, com doutorado na PUC-SP e pesquisador visitante do (ICS) Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.