fevereiro de 2011

DIÁLOGOS E IDENTIDADES: A REPRESENTAÇÃO DO NEGRO NAS ARTES PLÁSTICAS BRASILEIRAS

Renata Felinto

Rugendas
Negros no navio

 

 

 

 

 

Para facilitar a análise da representação do negro nas artes plásticas brasileiras ao longo dos últimos cinco séculos, dividiremos cronologicamente este estudo em três momentos distintos: documental (que abrange a produção realizada durante os séculos XVII, XVIII e XIX), social (que abarca a primeira metade do século XX) e pessoal (que inclui a produção do fim do século XX até o momento atual).

 

O momento documental abrange mais detidamente peculiaridades nacionais como a geografia, fauna, flora, população, modos e costumes. Parte significativa da produção deste período foi realizada por artistas estrangeiros que chegaram ao Brasil, geralmente como contratados, com o objetivo de realizar trabalhos de caráter documental e que envolviam aspectos específicos da realidade da nova terra.

 

Em 1637, chegam a Pernambuco os artistas holandeses Frans Post (1612-1680) e Albert Eckhout (1610-1666), contratados do Príncipe Maurício de Nassau. Post documentou os portos, fortificações e a exuberante paisagem brasileira, representando em seus trabalhos o negro como coadjuvante, um elemento da composição de suas pinturas, assim como as árvores ou os animais.

 

Já Eckhout pintou a fauna, a flora e os curiosos tipos humanos produzindo um conjunto de oito pinturas que retratam tipos humanos encontrados no Brasil, sendo duas delas representações de negros: Homem Negro e Mulher Negra (1641), onde os negros aparecem como habitantes da África Central e não como escravizados no Brasil, detalhe que confere às pinturas tom alegórico.

 

Albert Eckhout
Mulher africana
Óleo sobre tela
1641

 

 

No século XVIII, Carlos Julião (1740-1811), oficial militar italiano a serviço da Coroa Portuguesa, registrou em suas aquarelas as regiões da Bahia, Minas Gerais e Rio de Janeiro, antecipando o tipo de representação comum no século XIX que focaria o cotidiano das cidades e vilas.

 

No período barroco, final do século XVIII e parte do século XIX, o filho de portugueses Manoel da Costa Athayde (1762-1830) eternizou a mulher negra, já miscigenada, no teto da Igreja de São Francisco de Assis, em Ouro Preto (MG), na figura de Nossa Senhora da Porciúncula.

 

Em 1816, chegam ao Brasil os artistas da Missão Artística Francesa, que sedimentam por aqui os paradigmas estéticos europeus que se tornariam as bases da produção brasileira daí por diante. Dentre eles, destaque para o aquarelista Jean-Baptiste Debret (1768-1848), que registrou o cotidiano da capital do recém Império, a cidade do Rio de Janeiro. Nas suas obras, as situações de trabalho escravo abrangem também as relações cotidianas entre senhores e cativos, e a figura do negro assume importância ímpar. Outro importante artista-viajante deste período foi o alemão Johann Moritz Rugendas (1802-1858), que chegou ao Brasil em 1822, contratado pela Expedição Langsdorff. Em suas aquarelas e litografias o negro também surge em uma espécie de crônica da cidade do Rio de Janeiro, de forma distanciada em situações de trabalho e castigo.

 

Contudo, é no final do século XIX que aparecem os primeiros artistas negros que abrem caminho para outros negros também artistas e que representam a si e à sua cultura. Um deles foi o carioca Artur Timotheo da Costa (1882-1922). Formado pela Academia Imperial de Belas Artes, nas suas pinturas o rosto negro é o belo a ser estudado em suas linhas, formas e cores, transmitindo suavidade e delicadeza por meio de sua pincelada, como por exemplo, no trabalho Retrato de menino.

 

*Arthur Timotheo da Costa
Retrato de menino
Óleo sobre tela
s.d.

 

 

Ainda no final do século XIX, o negro também foi largamente registrado através da linguagem fotográfica, que gozava de grande prestígio na época. Entre estes fotógrafos do período podem ser mencionados o português Christiano Junior (1832-1902), que montou cenas em seu estúdio fotográfico nas quais os negros representavam escravos de ganho; e o carioca Militão Augusto de Azevedo (1840-1905), que realizou fotografias de famílias negras em São Paulo trajadas à moda da época para assistir às missas na Igreja de Nossa Senhora do Rosário, freqüentada por essa população.

 

No final do século XIX e início do XX, as representações de negros nas Artes Plásticas caracterizam o momento classificado como social, pois no período modernista à figura do negro se atribuiu traços de brasilidade. Neste momento, há duas vertentes de representação mais visíveis: o negro atrelado ao passado escravista e /ou como sujeito.

 

Zezé Botelho Egas[1] e o carioca Pedro Bruno (1888-1949) constituem o primeiro grupo, com trabalhos que, mesmo em um momento de exaltação a figura do negro, o representam em situações de tortura ou exercendo trabalho escravo.

 

O ítalo-brasileiro Alfredo Volpi (1896-1988), o paulistano Candido Portinari (1903-1962) e o lituânio Lasar Segall (1891-1957), três dos maiores artistas modernistas, pintaram o negro como sujeito, em situações diversas que exaltam sua história, sua cultura, sua beleza, sua situação social e sua individualidade.

 

Após a guinada inicial modernista, muitos artistas negros sem formação acadêmica emergem na cena artística nacional e internacional tomando para si a empreitada de representar suas heranças culturais e seu modo de viver, transpondo as barreiras impostas pela academia por meio de sua originalidade, vivacidade e criatividade. Como é o caso das obras dos cariocas Heitor dos Prazeres (1898-1966) e Sérgio Vidal (1945), e do baiano Agnaldo Manuel dos Santos (1926-1962).

 

 

A partir de 1990 submergem de ateliês periféricos as representações apontadas como de caráter pessoal, que apresenta sensíveis pontos de vista e de percepção sobre a diáspora africana e suas continuações, como é possível observar nos trabalhos do mineiro Eustáquio Neves (1955) e da paulistana Rosana Paulino (1967).

 

Como podemos observar, a representação do negro nas Artes Plásticas do Brasil sofreu importantes transformações ao longo dos séculos. Se nas primeiras imagens o negro era representado alegoricamente visto por olhos estrangeiros, agora são os próprios negros que dão o tom dessa representação, assumindo seus próprios discursos, sendo, simultaneamente, criadores e criação de suas histórias pessoais e de seus antepassados.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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NOTA DE RODAPÉ

*[1] Dados biográficos desconhecidos.

 

Renata Felinto

RENATA FELINTO é professora adjunta de Teoria da Arte da URCA/CE. Doutora e mestra em Artes Visuais pelo IA/UNESP, bacharel em Artes Plásticas pela mesma instituição. Licenciada em Artes Plásticas pelo Centro Belas Artes. Especialista em Curadoria e Educação em Museus de Arte pelo MAC/USP.

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.