julho de 2016

AFRO, MAS BRASILEIROS: MEMÓRIA, NARRATIVA HISTÓRICA E ARTE CONTEMPORÂNEA

Alexandre Araujo Bispo

 

 

 

 

foto Romulo Fialdini 

 

 

 

Atribuiu‑se recentemente a idade de 2 milhões de anos a certos restos fósseis de hominídeos de Java.
Seixos lascados de várias jazidas do Sul da França foram, em alguns casos, considerados daquela
mesma idade. Mas, no atual estágio dos nossos conhecimentos, a África continua vitoriosa pelo
número e importância das descobertas de tão remota antiguidade[1].

 

 

 

 

A atuação dos artistas afrodescendentes no cenário internacional e a revisão histórica e crítica acerca do protagonismo dos afrodescendentes. Era este o título da comunicação que fui convidado a fazer no seminário organizado em uma parceria inédita entre a Pinacoteca do Estado de São Paulo e a Revista Omenelick 2º Ato, para discutir a exposição Territórios: artistas afrodescendentes no acervo da Pinacoteca. Como o assunto da mesa era enorme e complexo para o tempo curto que tinha, preferi partir do título proposto objetivando chamar a atenção para o nome da exposição. Essa aposta de Tadeu Chiarelli diretor e curador da mostra em olhar para seu acervo é uma ação por si revisionista e a parceria com a revista afirma tal postura.

 

O título da exposição coloca um problema: porque a categoria “afrobrasileiro” comumente referida com a temática ou com os artistas negros e mestiços foi dispensada, apesar de sua estabilidade histórica e cultural, e em seu lugar usou-se afrodescendente? Orientado por esta questão e ciente dos usos e funções sociais dos conceitos, organizei a minha fala primeiro discutindo a categoria afrodescendente, em seguida apresentei alguns artistas em função dos territórios nos quais nasceram, vivem e/ou trabalham para defender o uso de afro-brasileiro. O termo é mais adequado para pensar o território destes artistas que, em qualquer lugar do planeta, continuarão ligados ao Brasil. Na sequência apresento alguns nomes afro-brasileiros pensando sua circulação na cena internacional; seguem os afro-americanos, depois os afro-europeus e africanos, atentando para a circulação da produção destes últimos na Europa. Feito isso retomo com mais vagar aos trabalhos de Jaime Lauriano, Rosana Paulino e Sidney Amaral exibidos em Territórios nos quais figuram cada qual a seu modo, uma poética da memória. Para eles o passado é uma caixa da memória que pode ser vasculhado, mexido e revisto de qualquer ponto do presente. O resultado dessa burilação poética são obras como as expostas em Territórios.

 

 

 

OUTRAS HISTÓRIAS DAS ARTES

 

Partindo da ideia de internacionalização não restrita à Europa e Estados Unidos, pode-se afirmar que um traço comum, ainda que tímido, entre os artistas afrodescendentes, é a circulação de suas obras também fora de seus países de origem em exposições e publicações, sobretudo, nas duas últimas décadas. Contribuem para esse interesse o esgotamento de uma periodização tradicional ocidental conhecida como “História da Arte”. Seu fim foi discutido por Hans Belting e Artur Danto ainda no início da década de 1980, que sugeriram uma revisão do conceito de história da arte. No caso dos brasileiros, sendo o país o segundo maior em número de negros depois da Nigéria, ficam dúvidas quanto à circulação desta produção, o conhecimento de uma história da arte paralela à contada nos livros e o consumo das obras por colecionadores privados ou públicos, uma vez que o tratamento dado a estes artistas, em geral, caminha junto com as desigualdades estruturais da sociedade brasileira. Nesse sentido o interesse internacional ajuda para que o Brasil se (re) conheça também na multiplicidade de sua produção plástica, cuja agenda diversa demanda investimentos e apostas inteligentes como esta da Pinacoteca.

 

Manifestando postura de crítica revisionista bem antes da difusão dessa noção, o Teatro Experimental do Negro criado em 1944 por Abdias do Nascimento (1914-2011) e outros, chegou a colecionar trabalhos de artes visuais e incentivar artistas negros realizando em 1955 um concurso de artes plásticas a partir do tema Cristo Negro. Mais que isso o grupo propunha a criação do Museu de Arte Negra, ação que revela os esforços de integração social na sociedade competitiva do pós-abolição que ainda não mudara os costumes e acirrara as barreiras contra a presença negra nas artes onde mulheres e homens negros iriam “encontrá-la odiosa”.[2] O racismo supõe a existência não apenas de mais de uma raça no mundo, mas que negros e indígenas seriam uma sub-raça destinadas por natureza à subalternização. O tema é atualíssimo e as pesquisas paleoantropólogicas empreendidas no continente africano demonstram o oportunismo desta concepção.

 

 

 

ÁFRICA OCIDENTAL: SOMOS TODOS AFRODESCENDENTES

 

Organizada por Joseph Ki-Zerbo, o volume 1 da Historia Geral da África (2010) dedica três capítulos a reflexão sobre o processo de hominização que tem início no continente. Segundo pesquisas de Yves Coppens, Lionel Balout e Richard Leakey, entre outros, não há duvidas de que a raça humana emerge naquele continente, e mesmo o homo sapiens que aparece no ultimo milhão de anos migra dali espalhando-se para povoar o mundo. Entre 1 e 2,5 milhões de anos surgem hominídeos como o fóssil do garoto de Turkana descoberto em 1984 no Quênia pelos Leakey, cientistas que vêm fazendo pesquisas em África desde a década de 1930. Tais descobertas derrubam a hipótese da existência de várias raças humanas. As variações nas características físicas dos povos devem-se a relações estreitas entre sua vida animal e o ambiente que os cerca e abriga.

 

Do ponto de vista sócio-histórico a categoria afrodescendente implica pensar a experiência social das pessoas no lugar que habitam. É essa experiência que produz diferentes territórios, sendo necessário quando do uso da palavra dizer de qual território se trata, pois se somos todos afrodescendentes na origem, nem todos sofremos o peso do racismo fundamentalmente centrado na cor da pele e outros traços negróides que atuam na produção do espaço.

 

 

 

OS ARTISTAS AFRO-BRASILEIROS NA CENA INTERNACIONAL: ALGUMA REVISÃO

 

José Teófilo de Jesus (1758-1847)
Alegoria dos quatro continentes (África)
Óleo sobre tela
65 X 100 cm
Século XVIII

 

 

 

 

 

Poderíamos voltar ao fim do século 18 para pensar em como os artistas afrobrasileiros circulam na cena internacional para estudar. Em 1794 José Teófilo de Jesus (1758-1947) foi estudar em Lisboa frequentando aulas de desenho na academia daquela cidade, por orientação de seu mestre José Joaquim da Rocha (1737-1807). De volta ao Brasil o pintor opera em sua obra a transição da estética barroca para o neoclassicismo tanto do ponto de vista dos temas quanto do desenho, da cor e da perspectiva, evidentes em obras como o “São Francisco” do acervo do Museu Afrobrasil em São Paulo. Outros artistas negros e mulatos do século 19 estudariam fora como é o caso dos irmãos Timótheo, que receberam prêmios de viagem ao exterior mais de uma vez. O baiano Emanuel Zamor (1840-1917), o sergipano Horácio Hora (1853-1890), por exemplo, terminaram seus dias no destino desejado por muitos dos artistas daquela geração, a França. No século 20 podemos destacar Antonio Bandeira (1922-1967) que juntamente com os irmãos Arthur (1882-1922) e João Timótheo da Costa (1879-1932) está em Territórios. Rubem Valentim (1922-1991) e Heitor dos Prazeres (1898-1966) também presentes na exposição estiveram no 1º Festival Mundial de Artes Negras de Dacar em 1966. Eles cabiam nos critérios estabelecidos pelos organizadores: ser de “raça negra ou ascendência africana” como assinala o crítico e curador Claudinei Roberto da Silva.

 

O fato de, atualmente, sabermos mais acerca da arte e dos artistas brasileiros e de quem entre eles foi negro, tem possibilitado novas descobertas garantindo a atribuição de autoria, inserções em acervos e exposições como as que Emanoel Araújo vem realizando, desde a década de 1980, especialmente com a A mão Afro-Brasileira no MAM-SP em 1988 e aquelas exposições que fez durante sua gestão na Pinacoteca. (1992-2002). Esse feixe de referências são fatos de história que nos ajudam a compreender a importância de olhar para o passado a partir desta plataforma privilegiada que o presente nos oferece.

 

 

 

OS ARTISTAS AFRO-AMERICANOS

 

Kara Walker
Exhibition at the Renaissance Society
1997

 

 

 

Ainda pouco conhecidos entre nós os artistas norte americanos negros tem uma produção incrível que vem sendo paulatinamente reconhecida dentro e fora dos Estados Unidos. Em curso oferecido no Centro Universitário Maria Antonia, a pesquisadora Renata Bittencourt apresentou com sala cheia de gente interessada, e muitos negros entre o público, nomes como Willian Johnson (1901-1970), cuja obra tem semelhanças com Heitor dos Prazeres, Kara Walker (1969-), Berkley Hendricks (1945-), Nick Cave (1959-) e Kerry James Marshall (1955-), entre outros. Marshall é um artista fundamental para entendermos como as relações afetivas podem ser um tema dos mais importantes para abordar a experiência social negra no campo dos afetos. Veja-se o caso da obra Amantes 2015. O artista leva ao limite em suas pinturas a discussão sobre a visibilidade da pele negra: até que ponto é possível ver uma pessoa negra? Qual seu grau de visibilidade social e, posto no plano da cor pictórica, até onde se pode vê-lo? As correspondências entre este artista e o Brasil são verificáveis em algumas obras de Sidney Amaral e seu gosto por abordar a afetividade do homem negro. Também o goiano Dalton de Paula na série fotográfica “Promessa” 2012 parece mirar o mesmo universo: corpo, afeto, alteridade sentimental.

 

Outra artista importante foi-nos apresentada pela curadora Fabiana Lopes; trata-se de Lorraine O’ Grady (1934-). O’ Grady propôs na década de 1980 ações de presentificação negra em exposições de arte. Naquele momento ela criara uma personagem – a francesa Mlle Borgeoise Noire –  que ia a exposições trajando uma capa e um vestido feito de 180 pares de luvas brancas, onde declamava poesias que falavam de segregação e racismo. Tratava-se de fazer presença no branco-centrado universo da arte contemporânea norte americana com toda sua negro-descendência. Com efeito seu traje provocador tem circulado em exposições importantes nos Estados Unidos desde 2007. Impossível não lembrarmos de Merci Beacoup, Blanco! 2012 de Michelle Mattiuzzi e das ações do coletivo A Presença Negra.

 

 

 

 

ENTRE AS ÁFRICAS DA EUROPA

 

Yinka Shonibare
The British Library
2014

 

 

 

Em 2014, o Museu Afro Brasil apresentou a exposição África Africans que trouxe à luz a produção plástica diversa de mais de 20 artistas negros que ou nasceram, vivem e trabalham no continente, ou tem por território mais de um país africano e outros ocidentais. A mostra exibiu a colossal obra do artista afro-britânico Yinka Shonibare (1962-) The British Library (A Biblioteca Britânica) – crítica aguda ao extenso e violento processo de colonização inglesa na África que resultaram na produção de conhecimento comparado de base determinista, especialmente produzido no âmbito da antropologia física, seguida de uma febre inédita de acumulação de cultura material nos museus etnográficos com forte postura etnocêntrica e racializante.

 

Em seguida o Sesc Belenzinho apresentou Aqui África (2015/16) exibindo um conjunto de artistas que na Europa, Estados e países africanos vem ganhando mais espaço: a arte africana contemporânea está em alta, tanto quanto nomes como os de Okwi Enwesor, curador da última Bienal de Veneza que levou Sonia Gomes para a mostra principal em 2016. Os artistas na mostra do Museu Afro não eram os mesmos da mostra no Sesc, o que indica para a diversidade de nomes, mas também para a complexidade na composição do que, afinal, estamos chamando de “artistas africanos contemporâneos” que sob essa rubrica começam a circular na cena internacional, incluso ai o Brasil. A exposição do Museu dirigido por Emanoel Araújo não é a primeira, basta lembrarmos a belíssima O Benin está vivo ainda lá, ancestralidade e contemporaneidade (2007). Outro artista de África Africans o ganense El Anatsui (1944-) justifica o fascínio que desperta na imaginação artístico-fetichista ocidental. A delicadeza de suas tecelagens de metal que resultam em tecidos monumentais demarcam outros modos de olhar para os materiais no sistema de consumo e excesso das sociedades capitalistas. O jovem Omar Ba (1977), artista do Senegal que vive e trabalha em Genebra, foi-nos apresentado pelo Belenzinho com outros 25 artistas sob curadoria da curadora armênia Adelina Von Fürstenberg.  Essa circulação aponta um momento novo para o debate da produção artística afro orientada e diaspórica. No Brasil tem se formado um ambiente fértil para o surgimento de novos artistas e em menor escala também críticos, inclusive fora do eixo Rio-São Paulo.

 

 

 

PAREDE DA MEMÓRIA

 

Rosana Paulino
Parede da Memória (detalhe)
Tecido, microfibra, xerox, linha de algodão e aquarela
8 X 8 X 3 cm cada elemento
1994/2015

 

 

 

 

Retomemos a contribuição dos três artistas de poética revisionista presentes em Territórios: Rosana Paulino, Jaime Lauriano e Sidney Amaral. Em Bate-papo, mediado pela também artista Renata Felinto sobre a sua trajetória no seminário em torno da exposição, Rosana Paulino (1967-) deixa claro seus interesses pelo tema da experiência feminina negra na sociedade brasileira em perspectiva histórica. Na ocasião ela mostrou ao público as bases de sua poética remetendo ao início de sua produção plástica. Entre seus trabalhos da década de 90 a ideia de passado e da possibilidade de narrá-lo aparece tanto no uso da fotografia de família, quanto nos nomes das obras: Retrospectiva, 1993; Aracnes 1996 (lembremos que as aranhas tecem, arquitetam espaços e nele Paulino introduz o retrato de mulheres de sua família), ou Parede de memória 1994. Certas ocupações femininas do passado como o cuidado materno emergem em: Amas de leite, 2007 ou em As amas 2009. Com a instalação Assentamento 2013 a artista adentra o universo do racismo científico formulado por ideólogos como o geólogo e zoólogo Louis Agassiz (1807-1873). A operação poética da artista procura ao mesmo tempo denunciar a falácia racista, quanto trata a mulher negra identificada como “Escrava Mina Tapa” pela lente de August Stahl em 1865, não como um “tipo” racial segundo a ciência praticada por Agassiz, mas como uma pessoa e, mais ainda, um ancestral comum, descoisificando-a. Faz total sentido que a mulher negra de Assentamento seja vista como uma base, uma espécie de mãe que ultrapassa a genealogia familiar, pertencendo como fato histórico a todos nós. Ao retirá-la sua imagem do arquivo na qual foi guardada ela a torna momentaneamente familiar, aproximando-a de nós com o mesmo respeito com que trata parentes seus em Parede de Memória 1994-2015, obra incorporada ao acervo da Pinacoteca. Este trabalho composto por 11 retratos fotográficos de sua família reproduzidos à exaustão configurando uma parede com 1500 peças, nos coloca diante do problema da reprodução da sociedade no tempo, tarefa para a qual as famílias tem papel importante. Contrariando as expectativas racistas que rechaçavam a mistura racial, Paulino nos mostra uma família negra com membros mais ou menos escuros do qual ela herda geneticamente traços, mas que dela não participa com sua própria imagem.  Para a reprodução social a memória coletiva é fundamental porque é capaz de transmitir valores culturais, psiquismo e parâmetros identitários grupais que servem de referência aqueles que chegam. Ao gerar esta parede memorial, mas frágil, porque feita de pano e fotos recolhidas em uma caixa mnemônica de papelão a artista nos põe diante de ao menos três funções da fotografia de família: guardar a aparência dos parentes no tempo, aproximar pessoas distantes temporal e espacialmente, circular em redes afetivas.

 

 

 

O ÊXODO ÓBVIO E A OCULTAÇÃO DA COR

 

Jaime Lauriano
Êxodo
Lápis dermartográfico e pemba branca
(giz utilizado em rituais de Umbanda)
sobre algodão preto
70 x 76 cm
2015

 

 

 

 

O tratamento de eventos passados da história brasileira sob os quais ficaram memórias materiais e simbólicas, atraem o paulistano Jaime Lauriano (1985-). Em uma das obras presentes em Territórios, Êxodo, 2015 somos convidados a lidar com um assunto dos mais óbvios, mas que no Brasil insistimos em ocultar: o deslocamento e a violência da escravização de base religiosa, comercial e científica e seus efeitos perversos no presente. Com apenas dois quadrados pretos cortados sem maior preocupação com o acabamento, como uma metáfora de algo que ainda não foi finalizado, ele sobrepõe um pedaço ao outro dando a ver dois mapas o do continente africano de um branco anuviado, tempestuoso e manchado, e do território brasileiro apenas delineado com giz pemba branca. Este material é bastante utilizado na Umbanda – religião pensada como genuinamente brasileira por muitos de seus adeptos – para produzir pontos riscados no chão por entidades sobrenaturais. A moleza deste pano se contrapõe a resistência de outro trabalho seu não mostrado em Territórios, no qual uma placa de bronze traz gravado os dizeres “A história se encerra em mim” 2013.

 

O antropólogo Helio Menezes, em leitura atenta deste trabalho acentua o impasse carregado de tensões no processo de vir a ser da obra Aqui em se plantando tudo dá 2015, na qual Lauriano investiga as violências da história brasileira à luz de sua permanência na atualidade. Sob o verde das folhas da planta assistida e controlada de Lauriano há a cor vermelha que embora não se mostre sabemos existir.  O desejo por essa cor no sistema cromático-social europeu arrasou sociedades indígenas, algumas das quais extintas no contato com o colonizador europeu. Enquanto em Lauriano essa cor se esconde sob o corpo da árvore em crescimento que necessita ser destruída para ser notada, a ponto de esquecermos a ganância que deu origem a sua exploração, lembro de Desvio para o vermelho – 1967-1984 de Cildo Meireles no qual o vermelho nada esconde, ao contrário revela tanto sobre as formas e sobre a cor que o espécime de pau-brasil insiste em ocultar.

 

 

 

UM GESTO DE ACOMODAÇÃO NARRATIVA

 

Sidney Amaral
Incômodo
     Aquarela, lápis e guache sobre papel
2014

 

 

 

 

 

Para os estudos de cultura material contemporâneos, incluindo-se aí as pesquisas com obras de arte, os objetos possuem trajetória, tem biografia, pois, como os seres humanos, eles tem vida social, deslocam-se, produzem efeitos. Vi Incômodo pela primeira vez em Histórias Mestiças, 2014, exposição de Adriano Pedrosa e Lilia Schwartz que reuniu uma boa quantidade de obras em torno deste assunto caro ao imaginário brasileiro. Falar de mestiçagem, todavia, repõe a ideia de que há diferentes raças, e o pior de tudo: raças puras!

 

Adquirido pela Pinacoteca em 2015, como parte de uma estratégia de atualização e ampliação do acervo em comemoração aos seus 100 anos de existência, a obra Incômodo dividida em cinco partes – políptico – foi exibida também em O Banzo, o Amor e a Cozinha de Casa, no Museu Afro-Brasil em 2015, sob curadoria de Claudinei Roberto que faz uma produtiva análise estético do uso intencional da aquarela por Amaral. Vale destacar em Incômodo a maneira como a noção de memória funciona nesta obra que recupera elementos da cultura visual brasileira. Memorizar aqui é invenção, daí o artista montar um cenário alternativo ao 13 de maio oficial no qual Isabel (1846-1921) tornou-se a princesa redentora. Os cinco enquadramentos retangulares – unem figuras que se tornaram públicas pela fotografia como o homem de chapéu conhecido apenas como Carregador africano (1905-1910) em retrato de Rodolpho Lindermann, e no extremo oposto Retrato de homem da etnia mina mondri de 1865 feito pelo mesmo Stahl que capturou a aparência da mulher Mina Tapa da obra Assentamento de Paulino.

 

Outras fotografias transmutam-se em aquarelas no retângulo central – o carté de visite de Mônica, ama de leite de Augusto Gomes Leal, feito por João Ferreira Villela, em Recife de meados da década de 1860; ao retomar a imagem desta famosa ama, Amaral a liberta de seu senhor que some definitivamente da cena; Luiz Gama (1830-1882) em registro de Militão Augusto de Azevedo (1837-1905) é um dos retratos que ladeiam a negra – alegoria da liberdade – acompanhado dos retratos de João Cândido “Almirante negro” (1880-1969), Chico da Matilde “Dragão do Mar” (1839-1914) e José do Patrocínio (1854-1905) jornalista e abolicionista dos mais importantes. Finalmente, e isso não esgota as possibilidade de apreensão crítica desta obra, um famoso Xangô fotografado pelo francês Pierre Verger (1902-1996) na década de 1960 no Benin dança agora colorido, não mais lá, mas no Brasil, afirmando que o Benin está vivo aqui. Gosto pessoalmente da composição no centro na qual uma cruz em pedra, símbolo da empresa colonial também católica que foi a escravidão africana, está caída no chão, e serve de apoio a um quase invisível machado bifacial de Xangô posto de pé tendo a sua frente um sacerdote agaixado.

 

Como alguns artistas do passado citados no decorrer deste texto, os artistas afro-brasileiros do presente começam um movimento de internacionalização, que não é propriamente novo indo aprimorar suas pesquisas em residências artísticas, exposições e publicações. Isso muitas vezes é feito sem o devido acompanhamento da crítica, ainda pouco ou nada interessada em rever os enquadramentos tradicionais ou ampliar e incluir mais gente no território artístico. Jaime Lauriano bem lembrou no seminário sobre Territórios o quão era sintomático a ausência de curadores, críticos de arte e galeristas naquele sábado 07/05/2016. Eles, afirmou o artista combativo, estão perdendo o bonde da história.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

[1] Y.Coppens. A hominização: problemas gerais, parte I. In: Enciclopédia Geral da África, p.470.

[2] Jornal Ultima Hora. Ano 1, São Paulo 13 de Junho de 1952, nº 74. Arquivo pessoal Nery Rezende da Silva.

 

 

 

 

 

 

 

 

Alexandre Araujo Bispo

ALEXANDRE ARAÚJO BISPO é doutor e mestre em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo. Bacharel e licenciado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo. Vive e trabalha em São Paulo. Atua com curadoria, crítica de arte, arte educação e produção cultural. Foi curador artístico, entre outras, das exposições: Aline Motta: Em três tempos: memória, viagem e água (2019); Medo, fascínio e repressão na Missão de Pesquisas Folclóricas, 1938-2015 (2015-2016); Negro Imaginário (2008). Curador educativo entre outras, das exposições: Todo poder ao povo: Emory Douglas e os Panteras Negras (2017) e Bienal Naïfs do Brasil (2018). Possui textos em publicações como Contemporary And América Latina; Revista Omenelick 2º Ato; Art Bazaar; Revista ZUM; SP-Arte; Pivô; Co-autor de Cidades sul americanas como arenas culturais (2019); Metrópole: experiência paulistana (2017) e Vida e Grafias: narrativas antropológicas entre biografia e etnografia (2015).

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.