janeiro de 2015

ARTE CONTEMPORÂNEA NO BRASIL: FALANDO DAS COISAS QUE (NÃO) EXISTEM

Fabiana Lopes

 

 

 

 

 

 

Eu acompanhava um grupo de colecionadores americanos em visita às galerias em São Paulo durante a semana da SP-Arte, em setembro de 2014. Enquanto observava obras numa grande galeria da cidade, um dos colecionadores foi abordado com a seguinte pergunta: “Como você descreve sua coleção?”. Depois de pensar por uns segundos ele respondeu “Minha coleção é formada, basicamente, por obras de artistas negros e de mulheres.” Vendo que a representante da galeria não expressava mais que um sorriso espantado, completei curiosa: “Você está, claramente, interessado num discurso muito específico, não é?”. Concordando com um sorriso, o colecionador voltou-se para mim e continuamos a conversa. Achei intrigante a reação de espanto da representante da galeria e sua aparente impossibilidade de sustentar uma conversa que combine os temas arte contemporânea, colecionismo, raça e gênero.

 

“Eu achava que fosse encontrar muito mais arte que trata de questões de identidade, uma produção maior de artistas negros”, foi o comentário da editora de uma revista de arte americana enquanto seguíamos de táxi para a exposição de Mira Schendel, na Pinacoteca do Estado, em setembro de 2014. Durante nossa conversa, eu compartilhei a crença recorrente no circuito local de arte de que não existem artistas negros ou de que isso não seja considerado, entre galeristas, colecionadores e curadores uma consideração relevante.

 

Quando Oscar Murillo — artista colombiano que vive e trabalha em Londres —apresentou sua obra durante uma residência no Rio de Janeiro, em setembro de 2014, ele não fazia a menor ideia de quão profundamente seu trabalho ecoava a produção densamente política de artistas negros brasileiros contemporâneos seus. Em lugar de produzir pintura, como esperavam, Murillo se juntou aos funcionários do programa de Residência, uma casa no Jardim Botânico, e passou dez dias realizando atividades domésticas diárias: cozinhando, limpando, cuidando do jardim. Essa foi a resposta do artista ao cenário de desigualdade que ele encontrou ao chegar ao Brasil — um cenário bem distinto da ideia de harmonia e igualdade geralmente divulgado nas companhas publicitárias de partidas de futebol. Essa também foi a maneira de superar o impacto emocional gerado por um ambiente que o artista considerou semi-colonial. Para galeristas, curadores, e colecionadores brasileiros — atores que definem o modus operandi do cenário mainstream da arte contemporânea brasileira — o trabalho de Murillo podia parecer fora de lugar e sem propósito, um projeto que tratava de coisas que não existem ou, se existem, não devem ser tocados. Entretanto, a obra de Murillo tecia um rico diálogo com manifestações artísticas que, apesar da rara presença no mainstream, estão em sintonia com os desafios de ser e estar e no presente momento. A intervenção de Murillo bem como a reflexão que ela sugeria, levou-me imediatamente a pensar em obras que encontrei recentemente. Obras que, de maneira mais ou menos aprofundada, tratam de questões relacionadas à construção, percepção e negociação da identidade racial e/ou de gênero numa sociedade abertamente discriminadora.

 

 

 

 

Tal é o caso da obra Bombril (2010) de Priscila Rezende (1985), uma performance em que a artista usa o cabelo para esfregar a superfície de utensílios domésticos metálicos comumente encontrados na cozinha, propondo um confronto aberto ao discurso discriminador dirigido ao corpo da mulher negra. Também a obra de Janaína Barros (1979) que ativa essa discussão mobilizando objetos do contexto doméstico como luvas e aventais de cozinha customizados com paetês, rendas, bordados e pérolas. Outro exemplo é a obra Aceita? (2013-2014) de Moisés Patrício (1984). Na série o artista utiliza parcialmente o corpo para ativar, entre outras referências, parte essencial da economia do Candomblé, operando dentro de um território de aberta resistência. Renata Felinto (1978) em Danço na terra em que piso (2014), faz uma exposição efusiva da imagem de seu corpo negro feminino em movimento, posicionado estrategicamente em espaços permeados pela história e memória seja da cidade, seja da biografia pessoal da artista. Com essa obra, Felinto há um tempo apropria-se dos territórios em que atua e os reconfigura, celebra suas raízes e faz uma eloquente declaração política. Outro exemplo é Mercy Beaucoup, Blanco! (2012), de Michelle Mattiuzzi, performance em que a artista ativa um processo de desestabilização de construções sociais sobre o corpo feminino negro dentro do imaginário brasileiro. Também Paulo Nazareth (1977) que na série Cadernos de África (2012) desarticula, através de seu próprio corpo itinerante e a produção e/ou apropriação de objetos efêmeros, as posições fixas dos estereótipos raciais dentro da nossa sociedade. Na obra Sem título (2013), um dos panfletos da série, o artista desafia diretamente a validade da epistemologia eurocêntrica como referência única para “observar”, “descrever”, “interpretar” e “entender” o mundo.

 

 

 

FALANDO DAS COISAS QUE (NAO) EXISTEM

 

Enquanto essa relevante contribuição segue o seu curso, essa avalanche de enunciações e narrativas social e politicamente informadas, enquanto esses artistas deixam, para as próximas gerações, registros específicos do que significa estar presente e conectado com os desafios que a vida apresenta, no circuito de arte brasileiro parece haver, de um modo geral, uma negação sistemática da existência dessas produções — uma negação da existência mesma do colonialismo como processo histórico-social e de seus desdobramentos: econômicos e sociais, seus efeitos na história e memória das populações, os deslocamentos operados nas formas de ser e perceber a realidade, nos modos de comunicar-se e expressar-se, nos valores associados aos símbolos culturais ou aos usos que deles se faz. O Brasil quer ser europeu desde a segunda metade do século 19, mas sua ideia de Europa, predominantemente colonial, é desatualizada e carente de revisões. E no afã de ser europeu, apoiado na ilusão do eurocentrismo — na centralidade do modo ocidental de ser e estar no mundo, de conhecer e de manifestar-se culturalmente — falha em reconhecer as formas de saber e operar que não respondam, ou dialoguem, com a tradição européia, que não traduzam sua epistemologia[1].

 

Em contrapartida, e como os fragmentos de relatos compartilhados no início do texto tentam ilustrar, em outros lugares como Londres e Nova York é possível ver o resultado de brechas que começaram a se abrir durante as últimas três décadas. Em Nova York, por exemplo, tanto instituições públicas como espaços comerciais apresentaram exposições de artistas afrodescendentes que ganharam status internacional discutindo temas que fazem parte de suas experiências pessoais, como identidade racial e de gênero, racismo e sexismo, questões de classe, de invisibilidade, entre outros. Tais repertórios temáticos são considerados tabu no Brasil embora, como estou tentando mostrar, não faltem artistas abordando esses assuntos. Durante o inverno de 2013-2014, aconteceram exposições importantes em pelo menos três instituições da cidade.  O Studio Museum of Harlem mostrou a exposição Radical Presence: Black Performance in Contemporary Art/Presença Radical: performance negra em arte contemporânea (entre novembro de 2013 e março de 2014). Com mais de trinta e sete artistas representados, a mostra explorou a contribuição em performance de artistas afrodescendentes do Estados Unidos e Caribe no decorrer dos últimos 50 anos. Radical Presence… coincidiu com a retrospectiva Carrie Mae Weems: Three Decades of Photography and Video/Carrie Mae Weem: três décadas de fotografia e vídeo, no Solomon R. Guggenheim Museum (entre janeiro e maio de 2014). A retrospectiva da artista cujos trabalhos convidam a contemplação de questões de raça, gênero e classe foi apresentada em cinco instituições do país e culminou com a apresentação no Solomon R. Guggenheim, New York. [2]Radical Presence… coincidiu também com Wangechi Mutu: A Fantastic Journey/Wangechi Mutu: uma jornada fantástica, no Brookyn Museum (outubro de 2013 à março de 2014), a primeira exposição panorâmica da carreira da artista nos Estados Unidos. Através da combinação de objetos achados, recortes de revistas, escultura e imagens pintadas, o trabalho de Mutu (1972) explora questões de raça, gênero, guerra, colonialismo, consumo global e a exotização do corpo negro feminino. A artista é conhecida por suas colagens de figuras femininas em paisagens fantásticas, imagens essas que desafiam nosso impulso à categorização e identificação fáceis.

 

 

 

 

 

A primavera e o verão de 2014 trouxeram alguns destaques importantes. Um deles foi a primeira obra pública de grande escala de Kara Walker (1969) organizada pelo Creative Time, A Subtlety: or the Marvelous Sugar Baby3 an Homage to the unpaid and overworked Artisans who have refined our Sweet tastes from the cane fields to the Kitchens of the New World on the Occasion of the demolition of the Domino Sugar Refining Plant/ Uma Sutilesa: ou a Maravilhosa “Sugar Baby,” uma Homenagem aos Artesãos que com trabalho excessivo e gratuito refinaram nosso Doce gosto desde os canaviais às cozinhas do Novo Mundo na Ocasião da demolição da Fábrica de Açúcar Refinado Domino[3] (maio à julho de 2014).  Instalada numa antiga Fábrica de Acúcar Domino, uma relíquia industrial do Brooklyn, a obra foi uma resposta ao edifício da fábrica e a história do açúcar. Em forma de mulher-esfinge, a obra é, segundo o curador Nato Thompson, um “híbrido de dois estereótipos racistas associados à imagem da mulher negra: a esfinge tem a cabeça feminina negra com um lenço amarrado, uma referência à mítica cuidadora das necessidades domésticas das famílias brancas, especialmente o cuidado das crianças, e o corpo é a caricatura da hiper sexualizada mulher negra, com seios proeminentes, bunda gigante e uma vulva protuberante que pode ser vista desde a parte traseira da escultura”.4 E se essa evocação objeto cuidador e sexual acentuada pela cobertura em açúcar pode parecer ofensiva, o curador avisa ser esse exatamente o objetivo da obra. E é assim, como provocadora, que  Walker  é parcialmente conhecida. A série de exposições de artistas afrodescendentes em instituições de Nova York foi fechada com Chris Ofili: Night and Day/ Chris Ofili: noite e dia (entre outubro de 2014 e fevereiro de 2015), a primeira retrospectiva do artista inglês Chris Ofili (1968) – um dos membros do Young British Artists – nos Estados Unidos. A mostra foi organizada pelo New Museum.

 

NICK CAVE
Soundsuit
Botões, arame, miçangas, cesta, estofos e manequim

 

 

 

E se os brasileiros têm presença rara nos espaços comerciais (apesar da abundante produção de qualidade), notei poucas exposições de artistas negros em galerias entre os meses de agosto e outubro de 2014: em São Paulo, Paulo Nazareth, na Mendes Wood DM, Sónia Gomes (1948) na mesma galeria e Priscila Rezende na Galeria Rabieh — o mesmo não acontece com galerias internacionais. Grandes galerias comerciais americanas também tiveram exposições individuais com artistas afrodescentes durante o ano de 2014. Em abril a galeria David Zwirner, de Nova York, apresentou a primeira individual do artista Oscar Murillo, A Mercantil Novel/Um Romance Mercantil (entre abril e julho de 2014). Nessa exposição, Murillo reproduziu, no espaço da galeria, a fábrica de doces  (Colombina) sediada em sua cidade natal, La Paila, e na qual trabalharam boa parte dos membros de sua família, incluindo sua mãe. A Jack Shainman Gallery inaugurou em maio seu novo espaço em Kinderhook, Nova York, com uma exposição e performance do artista Nick Cave (1959). Durante os meses de setembro e outubro Cave teve individuais concomitantes nos dois espaços da galeria no Chelsea. Ainda na Jack Shainman Gallery foi possível ver, durante o segundo semestre,  a individual da jovem artista nigeriana-americana Toyin Odutola (1985), Like the Sea/Como o Mar (maio de 2014), dos artistas El Enatsui (1944), Trains of Thought/Linha de pensamento (outubro à novembro de 2014) e Kay Hassan (1956), Everyday People/Pessoas comuns (outubro à novembro de 2014), bem como a individual da pintora inglesa Lynette Yiadom-Boakye (1977), The Love Within 1 e 2/O Amor de Dentro (de novembro de 2014 à janeiro de 2015). A Metropictures apresentou também no segundo semestre a individual de Gary Simmons (1964), Fight Night/Noite de Luta (outubro à dezembro de 2014) e a galeria Sikkema & Jenkins mostrou Afterword/Posfácio (novembro de 2014 à janeiro de 2015), individual de Kara Walker baseada no processo de criação e resultados da obra  pública na Fábrica de Açúcar Domino. A exibição incluía as notas e os sketches que culminaram na escultura, desenhos feitos durante a exposição na fábrica  e peças documentais sobre  a desinstalação da obra. A sala principal da galeria expôs o punho esquerdo, cortado da esfinge-mulher, cujo gesto lembra uma figa afro-brasileira. Mesmo em São Paulo a galeria White Cube inaugurou uma individual da artista Julie Mehretu (1970) em setembro de 2014, essa antecedida pela mostra do artista Mark Bradford (1961) entre abril e junho de 2014. No Rio de Janeiro a galeria David Zwirner ocupou boa parte de seu stand com obras do artista Oscar Murillo durante a ArtRio 2014.

 

 

Toyin Ojih Odutola
Representantes do Estado
Pastel, carvão e lápis sobre papel
191,8 × 127 cm
2016/17

 

 

 

Embora não tão recente como as mostras do ano passado, vale a pena citar uma exposição que aconteceu no espaço expositivo de uma coleção privada nos Estados Unidos. Em Dezembro de 2008 a Rubell Family Foundation em Miami inaugurou 30 Americans/30 Americanos. A exposição apresentou o trabalho de muitos dos mais importantes artistas afroamericanos das últimas três décadas. Segundo informações disponibilizadas pelo website da coleção, a mostra, que até agora viajou para seis museus nacionais, trata de questões de “identidade racial, sexual e histórica na cultura contemporânea e explora a influência do legado artístico em diferentes gerações.”

 

Em Londres durante a semana que coincide com a feira de arte Frieze, em outubro de 2014, foi possível ver exposições de artistas importantes como David Hammons (1943), na galeria White Cube, Karry Marshall James (1955), na David Zwirner, Wengetti Mutu na Victoria Miró. A existência de instituições dedicadas exclusivamente a minimizar o problema de invisibilidade cultural e falta de diversidade nos programas das instituições culturais do mainstream contribuem para a disseminação de práticas artísticas mais abrangentes. Um exemplo é o Iniva (Institute of International Visual Arts), ou Instituto de Artes Visuais Internacionais, instituição dedicada a endereçar os desníveis de representação de artistas, curadores e escritores culturalmente diversos. Um outro exemplo é o Rivington Place, um espaço de artes focado em  colaborar com novos debates nas artes visuais, refletindo a diversidade cultural da sociedade contemporânea, através da apresentação e disseminação de práticas geralmente marginalizadas. E o Autograph ABP que advoga a inclusão de práticas fotográficas historicamente marginalizadas, tratando de questões de identidade cultural e direitos humanos.

 

 

Esses exemplos ilustram uma diferença de posicionamento entre instituições públicas, galerias e coleções particulares internacionais e seus correspondentes brasileiros. O mainstream da arte contemporânea internacional, pelo menos nos exemplos aqui analisados, parece estar mais aberto a espelhar a diversidade cultural da sociedade contemporânea em que está inserido. Entretanto, no circuito de arte contemporânea brasileiro, e diria que na sociedade brasileira como um todo, diversidade cultural é percebida como tabu e, por isso, deve ser mantida longe dos olhos e fora da pauta de discussão e fruição estéticas. Assim, presos como parecem estar a uma definição conservadora de arte e sociedade, os promotores da arte contemporânea brasileira deixam escapar o que talvez seja uma das características decisivas, definitivas e definidoras da chamada produção contemporânea: responder à vibração do agora5, conectar com o desafio, a incerteza, o desconforto, “a dor e a delícia” 6 de ser no presente.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

NOTAS DE RODAPÉ

[1] O sociólogo e pensador peruano, Aníbal Quijano intoduziu, nos final dos anos 1980, o conceito de colonialidade, que entende o processo de dominação colonial não apenas em termos externos de subordinação de culturas às europeias (colonialismo), mas também como o que o autor define de “subordinação da imaginação do dominado”.

 

[2] A exposição foi apresentada nos seguintes museus e instituições norte-americanas: First Center for the Visual Arts (setembro de 2012 à janeiro de 2013), Portland Art Museum (fevereiro à maio de 2013), Cleveland Museum of Art (junho à setembro de 2013), Cantor Center for Visual Arts (outubro de 2013 à janeiro de 2014), e Solomon R. Guggemheim Museum (janeiro à maio de 2014).

 

[3] Sugar Baby faz referência metafórica ao termo usado para o homem ou mulher jovem que recebe benefício financeiro em troca de um“sugar-daddy” ou uma “sugar-mama” em troca de sua companhia.  Uma referência mais literal são as balas de caramelo com cobertura de açúcar conhecidas como sugar babies.

 

4 Veja declaração curatorial de Nato Thompson no site:  www.creativetime.org.

 

5 A expressão foi emprestada do curador e consultor de arte Simon Watson à partir do texto introdutório publicado em seu website. www.simonwatsonarts.com.

 

6 Referência ao trecho da música  de Caetano Veloso Dom de Iludir (1986) “cada um sabe a dor e a delicia de ser o que é…”

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Fabiana Lopes

FABIANA LOPES é curadora independente e vive e trabalha entre Nova Iorque e São Paulo Licenciada em Letras pela Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho, Pós-graduada em Relações Públicas e Comunicação respectivamente pela Fundação Cásper Líbero e USP, e Mestre em Arte Contemporânea pelo Sotheby’s Institute of Art, de Nova Iorque. Com mais de vinte anos de experiência profissional recentemente ocupou as posições de Assistente de Curadoria na Colección Patricia Phelps de Cisneros, Nova Iorque, e no último ano contribuiu com exposições e projetos curatoriais na Galeria Rabieh e Cidade Matarazzo (São Paulo), e Museum of Modern Art, Hauser & Wirth, e Sotheby’s Institute of Art, todos em Nova Iorque.

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.