julho de 2016

EDITORIAL # EDIÇÃO ESPECIAL PINACOTECA SP

Renata Felinto

 

 

 

 

 

 

 

“Até que os leões inventem as suas próprias histórias,
os caçadores serão sempre os heróis das narrativas de caça”.
Mia Couto, provérbio moçambicano de abertura do livro
As Confissões da Leoa, 2012.

 

 

 

 

 

Pesquisar e estudar as artes visuais produzidas no Brasil a partir dos lugares e/ou meios validados pelo sistema de arte[1], de forma geral, tem colaborado para a manutenção de uma estrutura de exclusão de artistas afrodescendentes. Isso como reflexo dos fundamentos racistas sobre os quais erigiu-se a sociedade brasileira.

 

Exceto no período colonial onde predominou o movimento barroco no qual encontramos grandes nomes de nossa arte, como os mineiros Antônio Francisco Lisboa (1730-1814) e Valentim da Fonseca e Silva (1745-1813), ambos afrodescendentes filhos de portugueses com negras escravizadas, é raro que esses e essas artistas sejam mencionados e tenham as suas biografias e produções aprofundadas nos parcos livros que tratam da história das artes visuais brasileiras.

 

Se pesquisadoras e pesquisadores realizam suas investigações por diversos meios e têm nos livros uma considerável fonte de exploração e de conhecimento, evidencia-se, dessa forma, os porquês dessa ausência, uma vez que, essas publicações vêm reproduzindo o que está dado enquanto verdade incontestável pois que escrita. Por sua vez, como fonte de pesquisas também identificamos os acervos de museus, centros e institutos de arte e cultura como importantes referenciais para se escrever estes mesmos livros que narram a história das artes visuais no Brasil.  Ambos, livros e museus, são indispensáveis na produção dos saberes nessa área.

 

Constatamos que as principais fontes de pesquisa na construção e manutenção de conhecimento na área das artes visuais  excluem de seus espaços os legados materiais e artístico-visuais de alguns segmentos étnico-raciais, sociais e de gênero[2], tanto nos registros escritos quanto nos lugares físicos.

 

As narrativas históricas, as representações simbólicas, os códigos, as linguagens e as visualidades desse importante contingente populacional brasileiro não possuem lugar, ao menos não o suficiente ou equitativo.

 

Há 6 anos, nós da revista O Menelick 2º Ato, vimos produzindo textos de apresentação e de reflexão bem como entrevistas acerca das produções de um significativo número de artistas visuais do nosso país e de outros lugares do mundo, os quais temos denominados artistas da diáspora africana. Temos nos dedicado tanto a resgatar biografias e produções pouco visitadas, quanto à introdução de novos pensamentos visuais trazidos por uma geração mais jovem que despontou no fim do século 20 e vem mostrando a que veio desde o início do 21.

 

Numa insistência movida pelo amor à arte feita por afrodescendentes que nos falam sobre nossa condição de existência no mundo, nos situamos como a única publicação que no Brasil de hoje reúne esforços para garantir escritos críticos sobre essas mulheres e homens que, por sua vez, também persistem na produção de artes visuais num país que pouco espaço concedeu à valorização de suas trajetórias e criações.

 

Por estes vários motivos, foi com imensa satisfação que soubemos da investida da Pinacoteca do Estado de São Paulo, representada na figura de seu diretor e curador Tadeu Chiarelli[3], em elaborar a exposição Territórios: artistas afrodescendentes no acervo da Pinacoteca. Dividida em três momentos[4], a exposição de curta duração revisitou o acervo da centenária instituição e localizou bem como resgatou nomes e produções de artistas afrodescendentes atuantes do século 18 ao 21. Além disso, valorizou de forma respeitosa os esforços de um de seus mais marcantes gestores, o artista visual Emanoel Araujo[5]. Durante a sua passagem pela Pinacoteca do Estado, o artista, diretor e curador, reuniu esforços para investir na aquisição e promoção de exposições de curta duração que prestigiaram as produções de artistas afrodescendentes, bem como as mais variadas facetas da cultura afro-brasileira em suas múltiplas visualidades.

 

Numa continuidade desse caro processo revisionista da história da instituição e, por conseguinte, da história das artes visuais no Brasil, a direção da Pinacoteca do Estado também promoveu a atualização de artistas e obras que se identificam com o segmento afrodescendente adquirindo novas obras para o acervo. Territórios: artistas afrodescendentes no acervo da Pinacoteca, inaugurou com um total de 106 obras e com uma crítica em um grande jornal na qual foi acusada de manter “preconceito com gueto negro  Ora, mas exposições de artistas italianos, japoneses, alemães dentre outros segmentos étnico-raciais nunca foram chamadas de gueto pela crítica que se diz especializada. Teríamos, então, uma inversão dos sentidos do uso desta palavra? Compreendemos essa ousada iniciativa justamente como um empreendimento de “desguetização”, uma vez que, nos coloca num lugar de direito, de artistas visuais afrodescendentes ocupando com legitimidade um lugar no tempo e no espaço que também nos pertence.

 

“Ao completar 110 anos a instituição de artes visuais mais antiga do Estado de São Paulo realizou um movimento (in) esperado por parte de uma instituição tradicional. Revisitou o acervo com o objetivo de levantar e exibir as obras de artistas afrodescendentes reconhecidos dentro e fora do país. Destacamos o tradicional porque a tradição incorpora a ideia de imutabilidade, por isso, o tradicional no Brasil tem sido entendido como lugar de privilégios”.

 

Consideramos ser uma das funções de um museu retornar de tempos em tempos ao seu acervo, (re) ver o que se colecionou ao longos das décadas, mapear as obras que o compõem, garantir outras significações às mesmas posto que são essas ações curatoriais e de pesquisa de grande relevância. Um museu, um centro, um instituto é de fundamental importância não para a manutenção da história das artes visuais da maneira como está escrita, mas justamente para (re) apresentar outros nomes de igual ou superior qualidade aos que já se encontram validados pelo sistema da arte.

 

Ao revivescer esse potente legado da gestão de Araujo salvaguardado na reserva técnica da Pinacoteca, a direção atual não apenas reconhece o seu importante pioneirismo ao tentar equiparar em termos de representatividade as produções de homens e mulheres brancos e negros, porém também se alinha à crítica e ao questionamento do discurso hegemônico na história das artes visuais. Assim sendo, faz coro, soma vozes e esforços junto a alguns dos mais importantes curadores da atualidade como o nigeriano Okwui Enwezor, curador da 56º Bienal de Veneza e a espanhola Elvira Dyangani Ose, curadora da Bienal de Gotemburgo de 2015. Ose identifica que a história das artes visuais e os recortes curatoriais dos espaços que as exibem se atualizam a partir de:

 

(…) práticas artísticas que envolvem arquivo, memória e história em tentativas de ampliar, problematizar ou lançar novos significados sobre narrativas hegemônicas. Configurando-se como tendência recorrente, que vem impulsionada pela urgência de repensar o passado e seu projeto de futuro (…). Se alguns trechos de processos políticos, sociais e culturais que permanecem ainda hoje obscuros – e/ou exigindo nova reflexão à luz do presente –, outros discutem os limites da memória na criação de novas narrativas históricas[6].

 

É preciso que tratemos crítica e argumentativamente das violências simbólicas contidas na escrita, difusão e imobilidade de uma versão da história das artes visuais fundamentada nas condições da existência que reiteram a hetero normatividade, o gênero masculino, a cor de pele branca dando sentidos apenas a uma visão de mundo ocidental e do ponto de vista dos que colonizaram, se é que usaremos ainda esse eufemismo para tratar de violências as mais variadas.  De forma geral, os museus dão imagem ao que está escrito.

 

A Pinacoteca do Estado de São Paulo está na dianteira nessa mudança de postura de abrir o convite para que sentemos à sala de estar como iguais que somos. O seminário que acompanhou a exposição Territórios: artistas afrodescendentes na Pinacoteca, nos deu vez e voz, além de visibilidades e visualidades. Foi assim que nos representaram. É assim que nos representamos. Agradecemos ao convite na década Internacional de Afrodescendentes[7].

 

Somos leoas e leões inventando nossas próprias histórias.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

+
NOTAS DE RODAPÉ

[1] Compreendemos o termo sistema de arte como os lugares e profissionais que contribuem para a existência do mercado de artes visuais tais quais artistas, universidades e academias de formação dos mesmos, docentes, espaços de exibição e comercialização das obras (galerias, feiras etc.), espaços de exibição e de salvaguarda (institutos culturais, centros de cultura, museus etc.), grupos e coletivos de pesquisa e de produção de obras, marchands, historiadores e críticos da arte, dentre outros.

 

[2] Pensando em identidade de gênero no caso dos grupos de pessoas transexuais, em orientações sexuais no caso dos que não seguem a hétero normatividade e nos grupos de mulheres, sejam elas cis ou trans.

 

[3] Domingos Tadeu Chiarelli é, desde abril de 2015, diretor geral da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Entre outras ocupações profissionais foi entre os anos de 1996 e 2000 Curador-Chefe do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM). Entre agosto de 2007 e maio de 2010 Chefe do Departamento de Artes Plásticas da mesma instituição e, entre abril de 2010 e abril de 2014, Diretor do Museu de Arte Contemporânea da USP.

 

[4] A exposição Territórios: artistas afrodescendentes no acervo da Pinacoteca, foi dividida em três eixos: Matrizes Ocidentais, Matrizes Africanas e Matrizes Contemporâneas, numa evidente alusão à trajetória de formação de artistas visuais afrodescendentes no Brasil. Primeiro, dominam a norma erudita e clássica de produção de arte. Segundo, conhecem, socializam e se aprofundam na história e cultura africana e afro-brasileira por meio de simbologias e de estéticas afins. Terceiro, como combinam e reelaboram (ou não) as duas primeiras matrizes originando uma produção contemporânea que pondera sobre ser afro e brasileiro, ser afrodescendente.

 

[5] A gestão de Araújo compreendeu uma década, de 1992 a 2002. Após sua saída, em 2004, numa parceria com a Prefeitura de São Paulo, o artista visual inaugurou o Museu Afro Brasil, no Parque Ibirapuera (SP), tendo como embrião da exposição de longa duração a sua coleção pessoal.

 

[6] Elvira Dyangani Ose em Arte Como álibi no Caderno SESC_Videobrasil 10, Associação Cultural Video Brasil. São Paulo, 2015. Disponível em: site.videobrasil.org.br

 

[7] A UNICEF decretou que de 2015 a 2024 teremos a Década Internacional de Afrodescendentes: “Ao declarar esta Década, a comunidade internacional reconhece que os povos afrodescendentes representam um grupo distinto cujos direitos humanos precisam ser promovidos e protegidos. Cerca de 200 milhões de pessoas autoidentificadas como afrodescendentes vivem nas Américas. Muitos outros milhões vivem em outras partes do mundo, fora do continente africano”. Disponível em: decada-afro-onu.org

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Renata Felinto

RENATA FELINTO é professora adjunta de Teoria da Arte da URCA/CE. Doutora e mestra em Artes Visuais pelo IA/UNESP, bacharel em Artes Plásticas pela mesma instituição. Licenciada em Artes Plásticas pelo Centro Belas Artes. Especialista em Curadoria e Educação em Museus de Arte pelo MAC/USP.

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.