abril de 2023

EMARANHADOS ÍNDICOS: UMA CONVERSA SOBRE OS SABERES EM DANÇA COM JEAN-RENAT ANAMAH

Luciane Ramos Silva

 

 

 

 

tradução Luciane Ramos-Silva
fotos Daniel Pazdur

 

 

 

 

 

 

 

 

A República das Ilhas Maurício é um arquipélago próximo à costa sudeste do continente africano. Suas tradições e modernidades refletem o caldeirão cultural que funda o lugar: indianos, africanos de diversas regiões, europeus e chineses. O hinduísmo é a religião mais praticada e o inglês a língua mais falada, embora também fale-se francês e crioulo mauriciano. Eis um lado do mundo que pouco ouvimos falar no Brasil. 

 

Na tentativa de reduzir as distâncias, entrevistamos o bailarino e coreógrafo Jean-Renat Anamah, cuja trajetória na arte e na educação conta um tanto sobre a intrincada realidade do país. 

 

Durante a conversa coreografamos memórias familiares e históricas, pessoais e coletivas, acessando a rica e complexa tessitura social da ilha. Das danças, conhecemos as estéticas tradicionais, as influências modernas e contemporâneas, assim como a presença das artes do corpo em escolas primárias e secundárias da ilha. Discutimos a pasteurização da arte,  as relações com o turismo extrativista, as políticas de estado e a presença de instituições francesas na formação em artes no país.

 

O discurso local na ilha é de afirmação de  uma cultura  “mestiça”, com múltiplas configurações linguísticas, raciais, históricas e onde tempo, espaço e línguas se entrelaçam, mostrando-nos uma construção de racialidade ímpar. Pudera, esse país africano está no seio do Oceano Índico, conhecido historicamente como “mar cultural”. Alí, o termo “mestiço” precisa ser localmente compreendido para não escorregarmos em comparações fáceis ou projeções inadequadas. Nas Ilhas Maurício, o corpo que dança parece reconfigurar identidades sociais complexas. 

 

 

 

 

O bailarino e coreógrafo mauriciano Jean-Renat Anamah

 

 

 

OMENELICK2ATO:  Você pode contar um pouco sobre o seu país para o público brasileiro?
JEAN-RENAT ANAMAH: As Ilhas Maurício são um pequeno território pós-colonial no Oceano Índico. Primeiro teve a presença francesa, depois inglesa, com uma população multiétnica vindo de África e da Índia como escravos para trabalhar em plantações de índigo, e posteriormente  de cana-de-açúcar.

 

Até à abolição da escravatura, durante longos anos as populações escravizadas sofreram por serem possuídas, dominadas, violentadas, por seus senhores. Quando, em meio a muito trauma, fugiram e se recusaram a trabalhar lá, a mão de obra indiana foi importada para continuar os trabalhos nas plantações.

 

Os chineses vieram para o comércio, instalando lojas em lugares específicos na capital Port-Louis a “Cidade da China”. Durante o início dos anos 1960, a população teve de se misturar enquanto vivia nos mesmos lugares, cidades ou aldeias, umas ao lado das outras, e isto deu origem à partilha das suas culturas, orações, danças, músicas…

 

Ao deixar a ilha, o governador britânico negociou a independência em 1968, com o acordo de deixar a ocupação da terra à comunidade francesa e assim foi  estabelecido um primeiro governo. O assaltante  francês, detentor do monopólio econômico, foi o chefe da maioria das decisões políticas e econômicas ao longo de um governo bastante dependente da produção de cana-de-açúcar. Depois da cana veio a indústria têxtil.

 

“Temos educação, saúde, transportes públicos gratuitos para estudantes e idosos, uma média razoável de empregabilidade. A população é mista, mas muito sensível à injustiça e à falta de direitos. Houve tensões ao longo da história em relação aos encontros entre culturas e etnias diferentes, mas com encontros e casamentos entre as etnias, a “nova mestiçagem” ajudou a manter a paz social”.

A “explosão econômica” aconteceu no início dos anos 1970, com a criação da “indústria do turismo” e o nascimento da mágica Ilhas Maurício . A ilha era chamada de paraíso por causa das suas praias douradas e da sua lagoa azul. Foi estabelecido um padrão de turismo vip e isto trouxe  muito dinheiro a esta indústria. A ilha tornou-se  muito próspera… Novos edifícios, novas estradas, grandes centros comerciais, um novo aeroporto internacional, a nova cidade cibernética.

 

Temos educação, saúde, transportes públicos gratuitos para estudantes e cidadãos idosos. Temos uma média razoável de empregabilidade. A população é mista, mas muito sensível à injustiça e à falta de direitos. Houve tensões ao longo da história em relação aos encontros entre culturas e etnias diferentes, mas com encontros e casamentos entre as etnias, a “nova mestiçagem” ajudou a manter a paz social, o que facilitou a conexão de músicas e danças, contribuindo para o surgimento de novas manifestações a partir dessas fusões culturais.

 

Há algum tempo vemos movimentos para misturar a dança contemporânea com a sega (manifestação folclórica dos escravizados africanos e que agrupa música e dança), e  a cultura indiana (música e dança). Desde o início dos anos 1980, o departamento cultural do Ministério das Artes reúne as diferentes culturas em eventos oficiais. Um terreno para se encontrar, partilhar e criar novas formas de arte.

 

 

 

Jean-Renat Anamah

 

 

 

OM2ATO: Quais são as influências da sua pesquisa artística?
JRA: A dança entrou na minha vida ainda na primeira infância, de maneira inocente, e foi mantida, iluminada por um incrível quintal vivo, onde quatro famílias compartilhavam um cotidiano humilde, mas agradável através de tarefas contínuas de casa como limpeza, cozinha e plantio.

 

Vivíamos ainda uma espécie de tempo de proibição. Nos reuníamos, mas não podíamos ver ou descobrir mais do que nosso entorno em Port-Louis. E este desejo de descobrir mais da Ilha era muito sensato. Então, tempos mais tarde, em passeios muitas vezes à beira-mar com meu tio favorito, descobrimos alguns lugares costeiros e florestas interiores.

 

Anos mais tarde, em 1997, durante a finalização do meu curso de dança, em Montpellier, na França, fui  motivado a criar um ensino pessoal, um ensino com minha própria identidade. Assim, quando voltei para a Ilha, encontrei muitas incertezas, notícias falsas, como se quisessem esconder a maioria dos acontecimentos ruins daqueles tempos. Então decidi fazer minha própria pesquisa.

 

Nas Ilhas Maurício, já com o conjunto da minha nova escola de dança e os primeiros passos para criar minha companhia, comecei a elaborar alguns escritos para sinopses de peças autorais. Naturalmente, minhas inspirações vieram de todos os lugares ao redor, vegetação, paisagens, rios, oceano, montanhas, toda esta natureza que testemunhou nossa história desde o início.

 

“Trabalhei para encontrar uma nova dança contemporânea, e minhas melhores referências foram as danças tradicionais e línguas existentes, especialmente a sega e a dança indiana, que deram sentido a novos gestos e sons, quando os diálogos acompanharam as criações da dança”.

A partir destas inocentes pesquisas, descobri aspectos naturais que trouxeram pistas mais precisas sobre a história da minha ilha. Confio em meu trabalho de dança para ampliar estas investigações, para questionar e transmitir através de músicas e movimentos para o público que busca o debate.

 

Esta motivação reuniu muitos elementos locais: a dança sega, por exemplo,  que durante muito tempo não foi valorizada ou reconhecida por algumas comunidades ricas da Ilha, que a qualificavam como “dança vulgar e de classe baixa”. Quando se tratava de comercializá-la por dinheiro e oferecer entretenimento exótico ao turismo vip, a sega, por sua vez, era trazida à luz do dia em hotéis. Depois foi também exposta com a língua crioula, que um dia também foi negada.

 

Trabalhei para encontrar uma nova dança contemporânea, e minhas melhores referências foram as danças tradicionais e línguas existentes, especialmente a sega e a dança indiana, que deram sentido a novos gestos e sons, quando os diálogos acompanharam as criações da dança.

 

A dança está em paralelo a novos escritos, novas formulações, novo vocabulário. Elas são sempre minhas ferramentas importantes para trazer novos gestos, novos movimentos, novas músicas… Jorrando da fonte para a recriação da minha arte.

 

 

Jean-Renat Anamah

 

 

 

OM2ATO: Qual a situação da formação em dança e como isso afeta os diversos setores da sociedade mauriciana?
JRA: Houve uma primeira escola de dança em balé clássico, que manteve o seu caminho até hoje, desde a fundadora, uma mulher inglesa casada com um mauriciano, até as irmãs dela. No final da década de 1970 houve uma outra mulher branca, a sul-africana Val Cheung Chak, também casada com um mauriciano, que foi a primeira a trazer as aulas de dança moderna para a Ilha.

 

Em 1995, após uma oficina de dança com Madam Anne Marie Porras, da Epse Danse, em Montpellier, beneficiei-me de uma bolsa de estudos para participar de uma formação de três anos para obtenção do diploma de professor. Voltei em 1999 para montar minha escola de dança com uma nova pedagogia. Eu estou em pé, em meio a um novo e jovem povo mauriciano (crianças, adolescentes e adultos) que nunca frequentaram nenhuma aula de dança.

 

“Há alguns anos, os jovens não estão mostrando interesse em receber treinamento em dança. Por isso, foi com surpresa que, depois de anos, recebi uma resposta do Ministério da Educação para treinar professores e ensinar dança básica em escolas e faculdades estaduais primárias e secundárias. Este é um primeiro passo”.

Foram alguns anos de experiências, de exploração para encontrar o ensino certo, os gestos certos para o público mauriciano, que tem corpos bastante limitados. Além disso, como acontece em países com falta de informação e treinamento, alguns fingiam ser professores, enquanto eles próprios nunca frequentaram nenhuma aula de dança.

 

A arte ainda não é importante para parte do nosso povo. Somos uma população pequena, uma nova geração em ascensão, frequentando escolas, faculdades gratuitas, concentrando-se principalmente nos estudos para ter uma boa posição profissional.

 

Há alguns anos, os jovens não estão mostrando interesse em receber treinamento em dança. Por isso, foi com surpresa que, depois de anos, recebi uma resposta do Ministério da Educação para treinar professores e ensinar dança básica em escolas e faculdades estaduais primárias e secundárias. Este é um primeiro passo.

 

O turismo na Ilha propõe muito entretenimento amador em hotéis. Há tempos existem trupes amadoras de dançarinos de dança moderna indiana e de sega que costumam trabalhar nesses espaços com frequência. Esta é uma grande questão, já que alguns diretores de hotéis só lidam com o amadorismo.

 

 

 

“Naturalmente, minhas inspirações vieram de todos os lugares ao redor, vegetação, paisagens, rios, oceano, montanhas, toda esta natureza que testemunhou nossa história desde o início”.

 

 

 

OM2ATO: Conte um pouco sobre a construção da racialidade no seu país.
JRA: Sendo muito miscigenado, de pai tamil heist, e mãe francesa heist, eu sou uma pessoa mestiça. A maioria das pessoas fica confusa quando eu viajo ao exterior. Não sou considerado negro, mas asiático. As pessoas ficam sempre encantadas com minha “mestiçagem”. Mas confusas também porque não conseguem colocar uma verdadeira etnicidade em minha pessoa. Nas Ilhas Maurício é um orgulho ser mestiço. Nosso povo tem essa mistura específica que é muito apreciada.

 

 

OM2ATO: Existe uma importante história de comunidades escravizadas fugidas. Você se interessa por essas histórias?
JRA: Esta história tem sido uma marca na Ilha e também no exterior, já que tem sido continuamente abordada em pesquisas, debates, exposições, notícias e etc. Muitos pesquisadores, especialmente jornalistas e escritores, continuaram procurando por detalhes, informações, vestígios, arquivos… Muitos foram escritos através de revistas, romances e outras publicações espalhadas pelo exterior.

 

Na Ilha, em alguns cantos, a sega e as danças alertaram a população sobre este assunto. Mas a nova geração não se mostra curiosa sobre essa história que, talvez, não seja importante para eles, ou seja muito dura. Assim, eles simplesmente não se aproximam dela.

 

Mas tenho tido o prazer de trabalhar hoje em dia neste campo patrimonial específico com os jovens da Universidade de Arquitetura, sempre aproveito a oportunidade para levá-los a olhar, pesquisar, questionar e ter opiniões sobre o assunto.

 

 

 

“Eu estou em pé, em meio a um novo e jovem povo mauriciano (crianças, adolescentes e adultos) que nunca frequentaram nenhuma aula de dança”.

 

 

 

OM2ATO: Hoje, quais seus maiores desafios e interesses?
JRA: Depois de anos de experiências em dança, tanto nos palcos como no ensino, sinto uma espécie de desmoronamento. Continuo com minha presença internacional atuando e participando de conversas, mas, mais do que gestos, há um verdadeiro discurso de dança e uma maturidade na minha forma de expor. Então quero continuar a persuadir as pessoas a se aproximarem da arte da dança. Interessante observar que tem havido esta associação da história à minha dança, que trouxe gestos, que trouxe uma assinatura, e quero aprofundar ainda mais essa relação nas realidades da minha ilha como apoio à minha arte. Quero criar mais e mais no contexto mauriciano.

 

 

OM2ATO:Quais artistas daí você nos recomendaria?
JRA: 

 

 

 

 

 

 

 

Luciane Ramos Silva

Luciane Ramos Silva é antropóloga, artista da dança e mobilizadora cultural. Doutora em Artes da Cena e mestre em antropologia pela UNICAMP. Bacharel em Ciências Sociais pela USP. Atua nas áreas de artes da cena, estudos africanos e educação.

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.